Carlos Neves, especialista em acessibilidade e responsável de UX (Experiência do Utilizador) na Xpand IT.
Carlos Neves, especialista em acessibilidade e responsável de UX (Experiência do Utilizador) na Xpand IT.

Diretiva. Empresas portuguesas têm menos de quatro meses para tornarem produtos digitais mais acessíveis

Lei Europeia da Acessibilidade terá de ser cumprida por todos a partir de 28 de junho e Portugal está atrasado. Falta consciencialização dos benefícios da acessibilidade e usabilidade dos sites.
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Quem entrar no site da Presidência da República Portuguesa perceberá que, além de ler, pode ouvir as últimas notícias, a biografia do Presidente, as suas iniciativas, condecorações e outras informações relativas ao Palácio de Belém. A ferramenta faz parte da estratégia de acessibilidade e usabilidade do site da Presidência, com garantia de conformidade com a Lei n.º 83/2018 que regula o tema. Uma versão áudio também está disponível no site do Parlamento. A partir de 28 de junho, não são só as instituições públicas que terão de garantir a acessibilidade dos seus produtos digitais; todas as empresas a operar na Europa terão de o fazer.

É o que ordena a Lei Europeia da Acessibilidade, uma diretiva que pretende harmonizar os requisitos nos países da União, que até agora tiveram regras mais ou menos divergentes. A Comissão Europeia defende que esta harmonização trará benefícios às empresas, já que terão menos custos a garantir a conformidade em cada país, com comércio transfronteiriço mais fácil e mais oportunidades de mercado para serviços e produtos acessíveis. Mas as empresas que não fizerem as alterações necessárias estarão sujeitas a coimas (valores ainda por definir) e a processos de utilizadores que sejam lesados. E em Portugal, o cenário não é muito animador.

O Observatório Português da Acessibilidade Web, que tem 37 diretórios e analisa 123.838 páginas, mostra que ainda há muito a fazer para chegar a níveis satisfatórios de acessibilidade - há sites que não atingem sequer o nível básico A.

Entre os privados é ainda pior, como explica ao Dinheiro Vivo o especialista em acessibilidade e responsável de UX (Experiência do Utilizador) na Xpand IT, Carlos Neves.

“O estado da acessibilidade em Portugal é bastante deficiente”, afirmou. “Claramente a evolução está por fazer. Há milhares e milhares de empresas que têm presença online para quem o tema é absolutamente inexistente”, salientou. “Nem nunca ouviram falar, nem sabem o que é, não há esta sensibilização.”

Um dos grandes problemas é a falta de visibilidade das pessoas com algum tipo de limitação, por exemplo cognitiva, motora ou visual, e a perceção de que tornar os sites acessíveis é apenas uma sobrecarga nos custos. “As pessoas pensam: ‘Mas vou gastar dinheiro nisso? Conheço os meus clientes, não tenho nenhum cliente cego’”, exemplificou Carlos Neves.

Uma das formas que a Xpand IT tem usado para mostrar a utilidade de tornar os sites mais acessíveis é um exercício que envolve vendas e voice over. Em eventos de UX, pedem à audiência que coloque uma venda nos olhos e tente usar um site a partir da descrição auditiva. “As pessoas pedem-nos para parar, para repetir, não percebem o que é que está a acontecer. É um impacto incrível”, descreveu. “Quando empatizamos com uma pessoa invisual desta forma e consumimos um site a partir da audição, com esta experiência de pôr uma venda, a consciencialização aumenta bastante.”

O exercício ilumina a necessidade de desenhar os sites de forma diferente e evitar grandes manchas de texto com jargão escrito para nichos de utilizadores. “Uma das coisas que nós encontramos com maior frequência é a inadequação dos textos”, frisou Carlos Neves. “Se estou a consultar um site com uma linguagem cheia de jargão, cheia de siglas, cheia de termos incompreensíveis, a não ser para um determinado universo, significa que não é acessível.”

Ou seja: “Qualquer um de nós, ao consultar um site com este tipo de comunicação, vai ter dificuldade em encontrar o que procura. Vamos ter dificuldade em navegar.”

O que devem fazer as empresas

Há três níveis de avaliação: A, critérios mínimos que todos os sites devem cumprir; AA, que acrescenta requisitos para melhorar a acessibilidade; e AAA, com critérios muito específicos e nível máximo de acessibilidade.

Com menos de quatro meses para entrar em conformidade, as empresas portuguesas que ainda não fizeram alterações devem começar por uma auditoria aos canais e produtos digitais e um diagnóstico das mudanças a operar. O relatório de não-conformidade será a base para os critérios a corrigir, um trabalho que pode ser feito por equipas internas ou em parceria com empresas especializadas em UX/UI.

Carlos Neves considera que é também necessária uma mudança de mentalidade, não só das empresas clientes, mas também das tecnológicas que codificam os produtos digitais.

“Isto é uma mudança de mentalidade e de consciencialização de toda a sociedade”, indicou. “Faz parte da responsabilidade das tecnológicas que desenvolvem e codificam os produtos digitais alertar os clientes para esta situação, no caso de eles não estarem conscientes dela, ou de estarem e não a entenderem muito bem.” Esse trabalho será importante para justificar o acréscimo de esforço e de preço, embora a legislação europeia venha agora a tornar a transformação obrigatória.

O que cobre a legislação

Embora haja um grande foco nos sites, portais e aplicações móveis, a Lei Europeia da Acessibilidade (2019/882) é mais abrangente que isso. Cobre “os produtos e serviços que foram identificados como sendo os mais importantes para pessoas com deficiência, ao mesmo tempo sendo os que mais provavelmente têm divergências de critérios de acessibilidade nos países da UE”, refere o documento da Comissão sobre a diretiva.

Os requisitos vão abranger computadores e sistemas operativos; caixas automáticas para levantar dinheiro, comprar bilhetes e fazer check-in; smartphones; equipamentos de TV relacionados com serviços de televisão digital; serviços e equipamentos de telefonia; acesso a serviços audiovisuais; serviços relacionados com transporte de passageiros por ar, autocarro, comboio e meios marítimos; serviços bancários; livros eletrónicos e comércio eletrónico. A partir de 28 de junho, todos os Estados-membros têm de estar em conformidade com a diretiva. A penalização por não-conformidade será acompanhada de remédios para garantir a implementação.

“As penalizações devem ser eficazes, proporcionais e dissuasivas”, lê-se no texto da lei, segundo o qual serão tidas em conta a extensão, seriedade e número de pessoas afetadas pela não-conformidade.

Além de coimas, que podem ser uma percentagem dos lucros anuais das empresas, há também consequências na competitividade, segundo defende Carlos Neves.

O especialista apontou para a consciencialização cada vez maior dos consumidores europeus em relação a questões de acessibilidade, inclusão e sustentabilidade. Disse também que o tamanho das empresas não significa necessariamente maior noção do que é preciso mudar - mas, no geral, uma empresa maior “tem pessoas de várias áreas mais sensíveis ao tema” e que, inclusive, percebem que estar online é uma jornada que deve ser fácil para todos.

Por exemplo, alguém que usa o portal de um banco entra com um objetivo específico, tal como fazer a simulação de um crédito. Essa opção tem de ser fácil de encontrar para qualquer cliente e especificamente para aqueles que precisam de recorrer a ferramentas de acessibilidade. Se a versão voice over descreve apenas um movimento de 20 euros na conta à ordem, mas não diz se é débito ou crédito, o utilizador invisual não perceberá a que se refere, porque não pode ver o “+” ou “-” que acompanha o movimento. Falta ali uma etiqueta que descreva os movimentos ao pormenor, e não apenas uma ferramenta que lê em voz alta. Olhando para o panorama português, Carlos Neves considera que a legislação vai começar a desbloquear investimentos, mas há muito por fazer.

“O caminho é bastante longo, e eu acredito, com muita pena minha, que quando as pessoas eventualmente começarem a receber multas e elas forem avultadas, vão ter de se preocupar com este tema se não se preocuparam até lá.”

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