"Dizem que há males que vêm por bem e que há sempre algo a aprender na experiência humana”.Estas palavras, de Lou Reed (álbum New York, de 1989), vêm a propósito de um cenário que ganha agora corpo e de forma acelerada, na sequência das decisões potencialmente destrutivas e recessivas de Donald Trump nas tarifas comerciais. Os juros podem descer mais.Vários observadores estão a modificar, dia a dia, hora a hora, os planos que previam para as decisões dos bancos centrais nas taxas de juro. A situação agora é: os grandes decisores de política monetária (BCE, Fed) estão a sentir uma nova pressão para reduzir o custo da dívida mais do que queriam inicialmente.O perigo de recessão parece que está a superar o da inflação. Aliás, os preços estão a sinalizar isso mesmo: incerteza ampla e galopante na economia e nos destinos do tão celebrado comércio global, paralisação de muitos investimentos de ambos os lados do oceano Atântico, bolsas a afundar, petróleo a recuar, confiança a vacilar.No caso da Europa (Zona Euro, onde quem manda é o BCE - Banco Central Europeu), a leitura que ganha força agora é que o assombro da recessão e da incerteza nos negócios é tão grande e crescente, que o roteiro preconizado até há escassas semanas (antes da bomba tarifária do Presidente dos EUA, anunciada a 2 de abril passado) -- descer juros com calma, a par e passo, e talvez pausar e terminar este ano no desejado limiar dos 2% -- está comprometido.Vários responsáveis de topo da instituição de Frankfurt, como Mário Centeno, do Banco de Portugal, Piero Cipollone (de Itália, membro executivo do BCE), François Villeroy de Galhau (governador do banco central de França) ou Yannis Stournaras (Grécia) defendem que as descidas, neste ambiente hostil, têm mesmo de continuar, sendo que muitos analistas acompanham a opinião. Pelo menos até ver se a inflação reaparece ou não.Em junho, volta a analisar-se o problema, não vá a inflação disparar, mas os mercados apontam para uma nova descida de 0,25 pontos percentuais, dos atuais 2,5% para 2,25%. Mesmo que venha inflação daqui a umas semanas ou meses, como teme a maioria dos economistas, até agora, os sinais são todos depressores.Mas “há males que vêm por bem”, como na canção, porque uma descida mais ampla ou acelerada das taxas de juro na Zona Euro, nesta fase do ciclo, pode dar mais algum oxigénio a milhões de endividados, governos, famílias ou empresas. No caso de Portugal, isso seria de valor, como se sabe.“Relativamente ao BCE, os mercados de futuros reduziram ligeiramente as expectativas para o nível [de chegada] no final de 2025 da taxa de juro e descontam agora uma maior probabilidade de uma descida até 1,75%”, observou ontem o departamento de estudos do Banco BPI.Há escassas semanas, o cenário mais consensual entre os economias apontava para uma descida dos juros do BCE para 2% no mesmo horizonte.Ou seja, a autoridade presidida por Christine Lagarde estará prestes a adotar um ritmo mais acelerado no alívio do custo dos empréstimos face ao que se dizia -- o ponto de chegada para os juros, dizia-se, era 2%, no final de 2025.A taxa principal do banco central do euro desceu 0,25 pontos percentuais em março último e está agora em 2,5%, o valor mais baixo desde o início de 2023, quando a Europa estava a receber o impacto avassalador da subida da inflação na sequência da guerra da Ucrânia.Taxas de juro baixam mais“Têm [o BCE] de fazer cortes em todas as reuniões, quanto mais não seja por causa da incerteza”, diz Frederik Ducrozet, dono e gestor da Pictet Wealth Management. Para mais, “não há sinais de aumento da pressão inflacionista a longo prazo”, disse à Reuters.Marieke Blom, economista-chefe do grupo financeiro ING, sediado nos Países Baixos, reforça, relembrando que o “efeito direto na Europa [UE a 27 países] é de cerca de menos 2% do Produto Interno Bruto (PIB), dependendo da procura dos EUA”.Mas “com tarifas aduaneiras de 20%, é provável que os volumes para os EUA diminuam cerca de 15%”. Por isso, “estimamos um efeito direto de -0,3% no PIB a curto prazo”. “Os países mais expostos são Irlanda, Alemanha e Itália”, aponta a economista.“A redução das exportações, o aumento da concorrência das importações asiáticas e a maior incerteza conduzirão a um recuo dos investimentos e dos aumentos salariais, o que pode levar a perdas de postos de trabalho na Europa, efeitos negativos que far-se-ão sentir em 2025 e 2026”.Por outro lado, soma a mesma responsável do ING, “um euro mais forte também reduz a procura externa” por produtos e exportações com origem na Europa, avisa Blom.No final de março, em vésperas do anúncio do ‘dia da libertação’ (nome de batismo dado pelo Presidente Trump), o das “tarifas recíprocas”, Mário Centeno disse ao site de economia Econostream que não via “razão para fazer uma pausa [na descida antecipada das taxas de juro do BCE] mais cedo do que o previsto”.“Na Europa, a taxa de câmbio subiu, e isso não é inflacionista. Além disso, os preços da energia e de outras matérias-primas têm vindo a cair devido à incerteza e à fraqueza económica a nível mundial”, donde, acrescentou, “não vejo qualquer força recente na economia europeia que possa alterar materialmente a minha avaliação do que vai acontecer nos próximos trimestres e não vejo razões para alterar o caminho que estávamos a seguir. Mas, claro, vejo razões para alargar o espetro da nossa análise e sermos cautelosos”, argumenta o governador português.O futuro chega a 17 de abrilO BCE reune para decidir sobre taxas de juro e outros instrumentos (não convencionais, como programas direcionados de compra de ativos, como obrigações/dívida) daqui a pouco mais de uma semana, a 17 de abril .Da leitura dos mercados, há nova descida, para 2,25%. Mas se a situação económica se degradar , a taxa de depósito do BCE pode ser empurrada mais para baixo. Ou então o custo do crédito (cedido aos bancos comerciais), também pode descer de outras formas menos ortodoxas.“Estamos agora num território de correção severa nos mercados, não num colapso, embora exista a possibilidade de isto se transformar num colapso em grande escala”, diz Carsten Brzeski, um dos economistas principais do ING.“Se for esse o caso no BCE, voltamos aos instrumentos normais de gestão de crise, como a injeção de liquidez através da compra de obrigações, as ORPA (LTRO, linhas de crédito de longo prazo para os bancos) ou, talvez, uma linha de swap em dólares reforçada”.Seria algo já na linha do que aconteceu nos antípodas da famigerada crise do subprime, em 2007, quando começou o processo de implosão dos mercados financeiros globais. Mas, nessa altura, as razões eram diferentes, não foi por causa da rutura na ordem mundial do comércio patrocinada pelo governo Trump.A disrupção continuaOntem, segunda-feira, dia 7, o Presidente americano aproveitou uns minutos a bordo do avião oficial (Air Force 1) para deitar mais achas na fogueira da guerra comercial, claro.Voltou a atacar a China com tarifas comerciais adicionais de 50% caso o governo de Pequim não recue no anúncio de retaliação de 34% de Washington.Se esta ameaça retaliatória de Trump se tornar verdade, haverá empresas norte-americanas importadoras de produtos produzidos e expedidos pela que “poderão ter de pagar um imposto de 104%”, acenou Trump.Bruxelas: patamar "zero por zero"Deste lado, a Comissão Europeia (CE) está a medir as medidas e a temperatura da guerra comercial. Continua a preparar uma resposta. Ontem, segunda-feira, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, explicou um pouco mais do plano, em todo o caso.“Estes direitos aduaneiros representam, antes de mais, custos enormes para os consumidores e as empresas dos EUA. Mas, ao mesmo tempo, têm um enorme impacto na economia mundial. Os países em desenvolvimento são especialmente afetados".No entanto, continuou líder da CE, "estamos prontos a negociar com os EUA". "Propusemos tarifas zero por zero para os bens industriais, tal como fizemos com sucesso com muitos outros parceiros comerciais. Porque a Europa está sempre pronta para um bom acordo. Por isso, mantemo-lo em cima da mesa.”De acordo com fontes diplomáticas contactadas pelo DN, os Estados Unidos recusaram tudo. Aliás, no avião, Trump já tinha dito que “não vamos reduzir nada” nas tarifas aplicadas à UE.Von der Leyen reforçou, como tem feito, que “estamos preparados para responder através de contramedidas e defender os nossos interesses” e que “vamos proteger-nos contra os efeitos indiretos do desvio de comércio".Para o efeito, criaremos um grupo de trabalho de vigilância das importações e trabalharemos com a indústria [empresas, setores] para garantir que temos os dados necessários para formarmos as nossas medidas políticas”, revelou a chefe do executivo europeu.Esta segunda-feira, Von der Leyen reuniu-se com a estrutura europeia das pequenas e médias empresas SME United, com a grande confederação dos patrões (onde está a CIP) Business Europe, com os representantes empresariais do setor do aço e da indústria automóvel.Esta terça, reúne-se com a indústria farmacêutica europeia e com Malte Lohan, o presidente da Câmara de Comércio dos EUA para a UE (AmCham EU).