Carla Salsinha: “Taxa Turística pode ser usada na construção   de habitação para trazer as pessoas de volta à cidade”
Gerardo Santos / Global Imagens

Carla Salsinha: “Taxa Turística pode ser usada na construção de habitação para trazer as pessoas de volta à cidade”

A presidente da Entidade Regional de Turismoda Região de Lisboa alerta para a descaracterização da cidade e defende a criação de habitação a preços para os residentes. Carla Salsinha pede transparência à câmara de Carlos Moedas relativamente à aplicação do imposto sobre as dormidas.
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Concorda com a duplicação do valor da taxa turísticaem Lisboa, para quatro euros?
Não somos contra, porque percebemos que há uma pressão enorme sobre a cidade, mas tem de haver uma transparência total em relação ao propósito da taxa. Deve estar contemplada a aplicação na requalificação do património turístico e nas questões de mobilidade e, depois, que haja um benefício direto para os cidadãos na requalificação do espaço público, na limpeza, na higiene e na segurança. Neste momento, os lisboetas não percebem o que o turista paga, não tem sido transparente. Acredito que 90% dos cidadãos de Lisboa não sabem que da Taxa Turística que é cobrada por ano, 7,6 milhões de euros são utilizados para a higiene e segurança na cidade, por exemplo.

Transparência com os lisboetas?
E não só, mesmo para com os operadores turísticos. Por exemplo, grande parte do financiamento da Web Summit faz-se com Taxa Turística e não com verbas da câmara. O Museu do Tesouro Real, o Pilar 7 ou o Festival da Eurovisão 2018 foram financiados com a Taxa Turística. A câmara deveria, anualmente, dizer em que é que aplicou esta taxa para que os próprios operadores sintam que esse esforço adicional que se está a pedir aos turistas está a ser reconvertido para o próprio turismo e para a cidade. Lisboa recebeu, em 2023, 40,3 milhões de euros da Taxa Turística. Onde é que estas verbas foram aplicadas? Isso tem de ser dito claramente ao país e à cidade de Lisboa.

O Fundo de Desenvolvimento Turístico de Lisboa (FDTL) tem um excedente de 70 milhões de euros, provenientes da Taxa Turística. Justifica-se um novo aumento deste imposto quando há dinheiro parado?
No fundo, de facto, há sempre um excedente, e Lisboa tem esse excedente que não sabe onde será aplicado. Mas esta será uma tendência [a cobrança da taxa] que é uma das formas que as autarquias estão a encontrar de tentar criar o tal equilíbrio do turismo, porque fala-se muito no overtourism.

É um travão?
Não, porque o turista não deixará de vir por causa da taxa. É mais uma das formas que as câmaras encontram para tentar dizer que estão a tentar criar o dito equilíbrio. Há muito a ideia de que temos um excesso de turismo e não temos, cai bem às câmaras aplicar uma taxa para dizerem que será um travão, que não será.

O turismo tem reclamado a construção de um centro de congressos. Esta deveria ser uma prioridade na aplicação das verbas? 
Claro que sim. A Região de Lisboa perde muitos congressos a nível mundial que precisam de uma infraestrutura grande. Esta verba já deveria estar a ser utilizada para construir um centro de congressos. Há muitos congressos, com seis ou sete mil participantes, que não podem vir a Lisboa por falta de capacidade. Estes eventos permitem diminuir a sazonalidade e precisamos deles.

Que outros aspetos são urgentes e podem ser resolvidos com a taxa?
A Taxa Turística deve ser aplicada na requalificação mais célere dos equipamentos turísticos e da mobilidade. Deveria existir algo feito para o turista, por exemplo, um autocarro que o deixasse nos centros mais turísticos, permitindo-lhe essa mobilidade, que não tem. A própria Taxa Turística deverá criar estes circuitos turísticos para que seja mais fácil ao turista circular. E, claro, na higiene urbana e limpeza; junto do Terminal de Cruzeiros, no edifício da Alfândega, à entrada temos ervas quase até meio. Portanto, nós, como cidadãos de Lisboa, perguntamos: mas a Taxa Turística rende milhões de euros anuais e não se limpa isto, num sítio em que os autocarros fazem a tomada e largada de turistas?

Não é justificável com este excedente de 70 milhões de euros?
De todo, de todo.

O que está a falhar na aplicação das verbas?
Tem a ver com a própria organização da higiene urbana dentro da cidade com as freguesias. Faz falta a criação de um conselho estratégico. Não é fazer estudos, porque já existem muitos, já todos os levantamentos foram feitos. Temos é de sentar a câmara municipal, as freguesias, a PSP e todas as estruturas, para encontrar soluções. Outro dos grandes problema da cidade de Lisboa é a gestão de fluxos turísticos. A nossa cidade tem a dimensão que tem, mas depois os equipamentos de interesse turístico estão centrados em quatro freguesias: Belém, Misericórdia, Santo António e Santa Maria Maior. Ou seja, temos 540 mil habitantes, cerca de 360 mil pessoas que vêm diariamente para a cidade de Lisboa trabalhar e, por dia, 30 mil turistas - que não estão espalhados na cidade, estão concentrados. Claro que a pressão é muita. É preciso criar novas centralidades e dispersar estes turistas pela região.

Como?
É um absurdo termos turistas duas horas à espera para entrarem na Torre de Belém. Se conseguirmos ter uma plataforma onde o turista saiba que hoje não pode visitar a Torre de Belém, porque há já muita ocupação, mas que pode visitar outro museu estamos a dispersar as pessoas. Isso é uma gestão simples de fazer. Temos os unicórnios e novos empreendedores e, de certeza, que qualquer um cria uma plataforma. É criar, como nos aeroportos, slots para os monumentos mais procurados.

Que papel deve caber ao Governo?
O secretário de Estado do Turismo tem de nos ajudar e temos de perceber que há um problema de coesão na Região de Lisboa. Só para se ter uma ideia, 80% das dormidas turísticas estão em duas zonas da região e 84% dos turistas dormem em Lisboa, Cascais e Sintra, o que é, de facto, uma pressão. Precisamos que nos deem meios para a coesão, a que o Governo tanto apela. Muitas vezes, muitos dos apoios para as empresas de turismo não chegam a zonas como Vila Franca, Moita ou Montijo e as empresas estão limitadas.

A Taxa Turística de Lisboa deveria excluir residentes?
Acredito que sim, tem toda a lógica. Como tem lógica que eu, como lisboeta, não tenha de ficar numa fila duas horas e meia para entrar no Mosteiro dos Jerónimos.

Uma discriminação positiva também para aceder às infraestruturas?
Exatamente. Acima de tudo, o turismo tem de ser para benefício dos próprios cidadãos. Temos de fazer com que o turismo requalifique e valorize a vida das pessoas, de quem aqui vive. Teria todo o sentido nós, como portugueses, estarmos isentos dessas taxas, tal como existir, nas entradas nos monumentos, uma discriminação positiva para quem é português.

Falava em overtourism, mas rejeita que Lisboa tenha turistas a mais?
Lisboa tem capacidade para crescer, o problema é que estamos concentrados nas mesmas freguesias. Lisboa é o que é, tem a dimensão que tem, mas os nossos pontos de atração turística estão praticamente todos centrados no mesmo eixo. Se temos uns 25 mil turistas nesta mesma zona, claro que cria esta pressão. E aqui tem de ser a autarquia a tentar criar estas novas centralidades.

Em Sintra, por exemplo, têm crescido os movimentos antiturismo.
Os próprios presidentes das câmaras têm de tentar dispersar os turistas, porque obviamente que o turista quer ir a Sintra e ao Palácio Nacional de Queluz. Compreendo que o turista que vai à Moita não tem grande património para ver, mas tem outras hipóteses. Temos de criar, mesmo em Sintra, outras opções para que o centro não seja pressionado. Corremos o risco de descaracterizar, é um perigo. Houve o desaparecimento de muitas lojas com história, por exemplo. Não é travar o Alojamento Local (AL), é manter o equilíbrio. E as câmaras que dão as autorizações e as licenças conseguem fazer isso. Não tem lógica que surja um hotel num quarteirão e que desapareçam as lojas todas - o próprio turista começa a sentir que não é apelativo. Temos de ter os hotéis com as lojas, não podem ser só restaurantes ou cafés, tem de haver o outro comércio normal, para que as pessoas sintam que a cidade continua a viver. A câmara tem de ter uma estratégia para o turismo e muitas não têm, vão vivendo com o crescimento. Temos de manter as pessoas a viver nas cidades.

Como é que isso se faz?
Com equilíbrio. Não é só a contenção [do AL], é criar equilíbrio. Ou seja, os edifícios não podem passar todos para o AL, tem de haver habitação. Creio - e esta é uma posição pessoal - que os operadores turísticos não se importariam que parte da Taxa Turística fosse utilizada para construir habitação para as pessoas ou para  ajudar a requalificar os edifícios. A Taxa Turística também pode ter uma aplicação destas, até para trazer as pessoas a viver de novo na cidade, manter os locais e a tipicidade. Houve um aumento brutal do custo da habitação e um casal novo não consegue viver dentro da cidade, mas se calhar podemos começar a pensar como é que os atraímos, porque precisamos de ter esses casais novos que têm filhos, que compram no minimercado local. Seria um dos benefícios, ajudar a trazer as pessoas de novo a viver na sua cidade, nos seus bairros.

Seria ir além daqueles que são os propósitos, à partida, da Taxa Turística?
Creio que o receio é que se esteja a financiar outro tipo de coisas na cidade que não trazem impacto para o turismo. Todos percebemos que o turista quer estar com os locais. Se as coisas forem transparentes e se se explicar que uma parte é utilizada para trazer de novo as pessoas a viverem nos bairros, para dar vida, tudo isso é percetível. O que não queremos é que se utilize a Taxa Turística para outro tipo de coisas em que não se percebe o retorno para a cidade. Qualquer operador turístico percebe que repovoar Alfama irá atrair o turista. Se calhar, preocupa-nos que a Taxa Turística seja utilizada, por exemplo, para a Web Summit, mas temos de ver qual é o retorno ao fim destes anos todos. Claro que a Web Summit é importantíssima e a cidade tem de investir. Mas pode não ser preciso ter tanto investimento, porque o retorno para a cidade…

Há um investimento excessivo na Web Summit?
Temos de ver, temos de fazer essa avaliação. Temos a Web Summit, investiu-se durante anos, o que é que isto traz para a hotelaria, para a restauração, para a cidade, para as empresas que cá investem, para a imagem da cidade? É positivo? Vamos continuar a investir. Não é? Então temos de aplicar a taxa noutras coisas.

Como pode Lisboa crescer na próxima década, enquanto não há um novo aeroporto?
Lisboa tem de apostar no turismo de valor, não no turismo de massas. Por exemplo o turista americano, que já tem uma determinada faixa etária e que vem ao longo do ano, procura um produto com mais qualidade. Lisboa tem de apostar no valor, sem dúvida.

Há margem para aumentar ainda mais os preços na hotelaria e na restauração na cidade?
Creio que sim, desde que saibamos oferecer essa qualidade, que não passa só pela hotelaria, porque a hotelaria e os agentes estão a fazer esse esforço, mas depois o turista não está para estar três horas para entrar num monumento. Há um problema com os cruzeiros que oferecem aqueles circuitos. Os turistas estão cá uma tarde e grande parte do tempo é passada no trânsito, dentro do autocarro. Isto não tem lógica. Quem pensa no turismo da cidade, tem de pensar que temos de requalificar o turismo. Quem está a procurar Lisboa é o canadiano, o australiano e o americano, com um poder de compra diferente e com uma exigência diferente. E, portanto, são muito mais críticos. Lisboa, Cascais ou Oeiras, Sintra têm muito que apostar no valor e na qualificação do turismo. E há municípios à volta que podem beneficiar do outro turismo de valor mais baixo.

Mas com este aumento dos preços, não se cria outro problema para os tais residentes que é preciso ir buscar para repovoar a cidade?
Ao apostarmos num turista mais exigente não invalida que não possamos, em simultâneo, trazer de novo as pessoas para a cidade. Haverá os restaurantes de turismo e outros restaurantes mais acessíveis. Consegue-se fazer um equilíbrio para os diferentes públicos. Agora, claro, se não houver pessoas a viver, o que vai abrir é só para o turista. Temos de ter as pessoas que vivem e que têm a sua vida normal e que vão ao Lidl e ao Pingo Doce.

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