António Comprido: “Sem as petrolíferas dificilmente se fará a transição energética”
Reinaldo Rodrigues / Global Imagens

António Comprido: “Sem as petrolíferas dificilmente se fará a transição energética”

Para o secretário-geral da Associação das Empresas Portuguesas de Combustíveis e Lubrificantes (Epcol) “é um erro” impor a eletrificação como “via única” para a descarbonização. O setor está “empenhado” na transformação, através de combustíveis de baixo teor de carbono.
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A transição energética é uma das grandes prioridades na Europa. Qual é o papel das petrolíferas neste caminho?
As petrolíferas são cada vez mais empresas de energia. Embora o petróleo e o gás continue a ser o seu principal negócio, elas têm diversificado o portefólio, com investimentos muito significativos em renováveis. Produzem combustíveis com menor teor de carbono, como os biocombustíveis, nomeadamente os avançados, que são adicionados aos de origem fóssil, contribuindo para a sua descarbonização, os combustíveis sintéticos, já em uso no Campeonato Mundial de Rallies  e na Fórmula 1, mas também em eletricidade renovável, no fotovoltaico, nas eólicas depende da estratégia de cada um. E estas empresas têm três características essenciais para esta transição.

Quais são?
Têm quadros altamente qualificados, recursos técnicos indispensáveis, têm músculo financeiro, que lhes permite gerar os fundos necessários aos novos investimentos, e têm resiliência. Já cá estão há mais de um século e têm intenções de ficar por mais outro. Não são empresas que aparecem e desaparecem ao sabor das marés, aprenderam a viver e a ultrapassar grandes crises, e isso é um fator também a ter em conta. Por fim, grande parte da energia que hoje consumimos é fornecida por esta indústria - dizer que ela não faz parte da transição parece uma contradição. Se queremos que ela aconteça temos de ter esta indústria comprometida e envolvida nessa discussão e não ostracizada e hostilizada como acontece com algumas visões menos realistas do que deve ser a transição energética.

E está envolvida?
Está bastante empenhada nessa transformação, designadamente descarbonizando as suas próprias emissões, com o sequestro de CO2, com a redução das emissões de metano ou substituindo hidrogénio cinzento por hidrogénio verde. Há imensa coisa que está a ser feita. Há que não esquecer que esta indústria fornece todos os setores económicos. No caso específico dos transportes, falar da sua descarbonização ignorando o setor que fornece 97% da energia consumida é um erro crasso.

Porquê?
O esforço de descarbonização nos transportes tem sido basicamente à custa da incorporação, nos combustíveis de origem fóssil, de biocombustíveis cada vez mais avançados, obtidos a partir de resíduos, dando um impulso à economia circular. Temos de fazer parte da transição energética porque, sem esta indústria, dificilmente se conseguirá fazer essa transição. Um dado adicional: só 25% da energia final consumida no mundo é eletricidade. E ela é inaplicável a muitos setores, nomeadamente nos transportes de longa distância, seja aéreo ou rodoviário. Não nos devemos deixar enganar ou criar mitos de que vamos resolver tudo apenas eletrificando os consumos, porque é um caminho que se vai continuar a fazer, com passos seguros e concretos, mas não é o único.

Há preconceitos contra as petrolíferas? É possível viver-se sem combustíveis fósseis?
É, podemos voltar à idade das cavernas se quisermos. Nós advogamos uma transição e não uma disrupção. Uma disrupção, como alguns advogam, que levasse a uma paragem imediata da exploração de novas bacias de hidrocarbonetos para a produção de combustíveis fósseis iria provocar um choque tão grande na economia mundial que ia trazer atrás de si conflitos sociais, problemas graves alimentares, doenças... é impensável. Nós vamos ter de continuar a usar combustíveis fósseis, mas com o grande objetivo de eles serem cada vez menos de origem fóssil e mais de origens diferentes, ou biológica, a partir de resíduos, de várias espécies, ou de origem sintética, combinando o CO2 com hidrogénio, produzindo combustíveis com moléculas muito semelhantes. Com uma outra grande vantagem, que é aproveitar grande parte das infraestruturas existentes.

É possível reconverter as refinarias?
É preciso investir, mas é possível. Todo o sistema de armazenagem e distribuição de combustíveis pode ser aproveitado. Repare que a segurança para acudir a períodos de interrupção de fornecimento, seja por razões políticas, desastres naturais, conflitos armados, etc., é hoje garantida através dos combustíveis líquidos. De acordo com as regras da Agência Internacional de Energia e as próprias diretivas da Comissão Europeia, os países têm de ter 90 dias assegurados de consumo em combustíveis líquidos, não é possível tê-lo em mais nenhuma outra fonte de energia. Esse é um papel muito importante [que temos] e isso consegue-se com as instalações atuais, com a estrutura atual, com os empregos atuais e, muito importante, dando liberdade de escolha aos consumidores. Há uma década tínhamos combustíveis 100% fósseis, agora já têm 10% de energia renovável incorporada e essa fatia pode ir aumentando até chegar aos 100%, não sendo preciso mudar de carro ou os equipamentos que temos em casa. Isto sem prejuízo do desenvolvimento de novas tecnologias, sejam elas a eletrificação, o uso do hidrogénio, e outras que vão aparecendo. Mas numa lógica de transição e não de disrupção.

Por que é que só há 10% de incorporação de biocombustíveis e não 50% ou mais?
Já há no mercado combustíveis 100% renováveis. Mesmo em Portugal já são disponibilizados equivalentes ao gasóleo que são 100% renováveis, de origem biológica, que é o caso do B100 e do HVO, mas que, devido à regulamentação, só podem ser utilizados em frotas dedicadas, não podem ser abastecidos livremente pelo público. A Alemanha, há poucas semanas, democratizou o uso do HVO para ser comercializado em todos os postos de combustível. Às vezes há entraves regulamentares, mas a tecnologia já existe. Depois há uma questão de escala, de preço, questões que vão ter de ser resolvidas com tempo.

Há capacidade para abastecer o mundo de combustíveis sintéticos ? Qual o custo da sua produção em massa?
A massificação traz escala e reduções de preços. A política europeia tem dito que os combustíveis sintéticos e os biocombustíveis devem ser reservados para a aviação e para a Marinha, onde é difícil eletrificar. Mas temos um problema de escala. O grande consumidor de energia nos transportes é o transporte rodoviário. Se não o usamos para criar escala, vamos produzir esses combustíveis a um preço completamente irracional. O que é que vai acontecer à aviação internacional? Ou se proíbe que voem para a Europa ou eles vão-se abastecer fora da Europa. Nos navios a mesma coisa. Depois há a questão da medição das emissões. Ao dizer que as emissões têm de ser zero no tubo de escape, a Comissão Europeia está a dizer aos construtores automóveis e de camiões que tem de ser tudo a baterias elétricas. É uma falácia. As emissões deviam ser contabilizadas em ciclo de vida completo, incluindo as emissões na produção da energia, no seu consumo, mas também as emissões resultantes da procura e da mineração dos materiais necessários à construção dos veículos, o processo de construção e até do posterior desmantelamento dos veículos.

É um entrave?
É, porque os combustíveis sintéticos vão ter emissões no tubo de escape, embora possam ser praticamente nulas em ciclo de vida completo. Se vão proibir veículos que tenham emissões no tubo de escape, os investidores pensam que não vale a pena estar a desenvolver combustíveis sintéticos. Há aqui um erro de visão, de definição de estratégias. As decisões deviam ser mais neutras do ponto de vista tecnológico. Deviam respeitar a neutralidade tecnológica e depois deixar à economia e aos consumidores a escolha das melhores soluções. Nunca alienando o objetivo de chegar a emissões líquidas zero em 2050, mas não impondo um caminho.

O da mobilidade elétrica?
A eletrificação vai ter um papel crescente, mas é uma via que tem que ser complementada com outras. Ter uma via única é perigoso. Isto é utópico, mas suponhamos que temos uma economia completamente baseada na eletricidade e há um apagão, como acontece de vez em quando. A própria Comissão Europeia reconhece isso dizendo que há exceções à obrigatoriedade de usar veículos com zero emissões à saída do tubo de escape para os bombeiros, proteção civil, forças militares, forças de segurança, etc.. Precisamos de criar condições que permitam que haja escala para se reduzirem os preços, senão, haverá, tecnologicamente, a possibilidade de os produzir, mas porque só se destinam a setores específicos, terão um preço brutal. Ou, então, deixa de haver condições para os produzir na Europa e vamos importá-los. Que já foi o que aconteceu com muitas das nossas indústrias. Continuamos a consumir aço e muitas outras coisas que antigamente eram produzidas na Europa e agora são produzidas fora. Com benefício para o clima? Para os direitos humanos? Para o ambiente?  A Europa não se importa que haja lixo, quer é que seja feito no quintal dos outros.

Acredita que os motores de combustão terminam em 2035?
Não, até porque há uma interpretação errada do que diz a legislação. A legislação o que diz é que a partir de 2035 todos os veículos introduzidos no mercado têm de ter emissões zero à saída do tubo de escape, que é uma maneira errada de tratar o problema das emissões, porque deve olhar-se para o ciclo de vida completo. Há uma recomendação da própria regulamentação para a Comissão Europeia analisar isso, fazer um estudo e ver como é que poderiam ser utilizados combustíveis que levassem a emissões zero nos motores de combustão interna. Já há testes que põem um motor de combustão interna a trabalhar com hidrogénio. Nesse caso, as emissões à saída do tubo de escape são vapor de água.

Tem dito que faltam incentivos para a descarbonização das petrolíferas. De que tipo?
Não estamos a falar de apoios, estamos a pedir que não nos criem obstáculos. Ainda há dias alguém dizia que a banca não deve emprestar nem mais um tostão às empresas petrolíferas,  quando todos nós sabemos que, para manter a segurança do abastecimento, tem de se substituir reservas. É impossível parar o investimento, as empresas vão ter de continuar a aceder a fontes de financiamento. Não nos criarem obstáculos. Queremos incentivar a utilização de misturas cada vez mais ricas, seja de biocombustíveis ou combustíveis sintéticos com os fósseis, para fazer a transição de uma maneira progressiva e segura, mas porque se continua a utilizar uma parte fóssil não tem direito a ter financiamentos? Não estamos a pedir subsídios, estamos a pedir que não sejamos discriminados negativamente e que não nos proíbam de aceder a fontes de financiamento.

Que medidas gostaria de ver no Orçamento do Estado?
Que se facilitasse a venda generalizada de combustíveis de baixo carbono, com misturas mais ricas na gasolina e no gasóleo. E que não se discrimine, no aspeto fiscal, alguns produtos, como as botijas de gás, que são a forma mais democrática de levar energia às populações que não têm gás natural. A redução do IVA devia abranger todas as formas de energia e não apenas algumas. E gostávamos que houvesse um Plano Nacional para os Combustíveis de Baixo Carbono.

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