Ana Jacinto, secretária-geral da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP)
Ana Jacinto, secretária-geral da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP)LEONARDO NEGRÃO / GLOBAL IMAGENS

Ana Jacinto: “Empresas estão asfixiadas e endividamento não é solução. Temos de voltar ao fundo perdido”

Apesar dos bons números do turismo, a secretária-geral da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) alerta para as dificuldades das empresas de restauração que, dependentes do mercado interno, estão sem margem para subir preços por causa da inflação.
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Como está a saúde do setor que representa?

Os resultados são extraordinários e isso é muito positivo. Mas também é verdade que na atividade turística temos muitos setores de atividade e, no que respeita à restauração, existem muitas microempresas. É importante estarmos atentos porque as microempresas, sobretudo da restauração, dependem mais do mercado interno, que perdeu algum poder de compra e, desde a pandemia, que não têm tido dias muito felizes. Sofremos a inflação, sobretudo a alimentar, os custos energéticos, as taxas de juro e os empréstimos covid - que sempre dissemos que não eram um benefício para as empresas. Estávamos só a empurrar com a barriga e agora estamos a pagá-los. Não é possível, na maioria dos casos, renegociar nada, porque não há condições nem disponibilidade da parte da banca para essa renegociação. Houve ainda um esforço muito grande destas empresas para aumentar salários. Tudo isso tem um impacto grande, as empresas estão a trabalhar para pagar custos e aquilo que deveriam estar a fazer era trabalhar para criar riqueza.

Tem dados em relação às que já manifestaram dificuldade em cumprir o pagamento dos empréstimos covid?

Os dados são difíceis de obter porque grande parte do setor não são sociedades financeiras e, portanto, os dados depois não são conhecidos, porque são empresários em nome individual. E muitas, quando se sentem em situação difícil, não entram na estatística dos encerramentos, simplesmente fecham a porta. São os tais encerramentos silenciosos de que não damos conta e de que ninguém fala porque que não entram na estatística.

As insolvências no país aumentaram 28% no primeiro trimestre deste ano e o número de empresas criadas também caiu cerca de 9,2%, segundo dados para Portugal da consultora Crédito y Caución. Como se comportou o setor da restauração? 

Continuamos com um número substancial de aberturas de estabelecimentos porque o setor é muito dinâmico. Fecham, mas também abrem muitas empresas. Estamos a falar de um setor que também é uma importante almofada social, de empresas que são o sustento de famílias inteiras e é problemático desse ponto de vista. Por mais micro que sejam as empresas, são todas importantes, não só para o turismo, mas para a economia e para o país. E às vezes estamos a falar de empresas muito pequeninas, em sítios que não são sítios prováveis, que fazem gastronomia extraordinária e que são importantes para aquele território. Vamos continuar a crescer certamente de forma sustentável e temos de ter condições para continuar a crescer de forma sustentável. 

Quando o atual governo tomou posse, a AHRESP apresentou 14 medidas para a sustentabilidade da atividade para os primeiros 100 dias do novo executivo assentes em quatro eixos: fiscalidade, emprego, investimento e coesão. Já teve oportunidades de as apresentar ao novo executivo?

O Governo já tem as medidas. Estamos a falar com o secretário de Estado que conhece muitíssimo bem o setor e que conhece muitíssimo bem as empresas que a AHRESP representa. Há muito tempo que trabalhamos com o senhor secretário de Estado noutras funções, mas é uma pessoa que conhece muito bem o setor. E isso facilita, desse ponto de vista, a nossa vida. 

No pacote de medidas, por exemplo, ao nível da fiscalidade, defende a reposição, sem exceção, da taxa intermédia de IVA. 

Sempre defendemos a taxa intermédia para todos os serviços de alimentação e bebidas. O governo anterior deixou para trás as bebidas, depois, neste último orçamento, estendeu a mais algumas, mas ficaram de fora ainda os refrigerantes e as bebidas alcoólicas. Não faz sentido nenhum, causa imensa confusão, não se percebe esta diferenciação, é confuso para os empresários e para os consumidores. Mas houve por três orçamentos do Estado uma autorização legislativa em que isto poderia ser feito ao longo do ano. Nunca aconteceu, até que esta autorização caiu mesmo, inexplicavelmente. Isto foi sempre um pressuposto que estávamos à espera que acontecesse, até porque quando se fez a reposição do IVA a 13%, houve uma condição colocada na altura pelo governo, que foi a criação de uma comissão interministerial, que deveria fazer um relatório para percebermos qual foi o efeito dessa reposição. Aquilo com que a AHRESP se comprometeu na altura foi com a criação de postos de trabalho, porque era preciso na altura e era uma preocupação do governo. E a verdade é que criámos os postos de trabalho que estavam previstos e até superámos, portanto, a medida cumpriu aquilo que era o seu objetivo.

Entrevista a Ana Jacinto, secretária-geral da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP).
(Leonardo Negrão / Global Imagens)
Leonardo Negrão / Global Imagens | Leonardo Negrão

Ainda no âmbito fiscal, qual o valor que consideram aceitável para a redução da TSU?

O que dissemos sempre, nas conversas com o anterior Governo e agora vamos voltar a insistir, é que precisamos de uma descida, de um sinal, de uma reforma do nosso quadro contributivo e fiscal em baixa, rapidamente. As empresas estão tremendamente asfixiadas, estamos a trabalhar basicamente para pagar custos. E quando digo custos, engloba também esta parte fiscal e contributiva. A questão dos salários é um exemplo gritante. Tivemos o aumento do salário mínimo, mas não ficámos por aqui, porque as empresas do setor fizeram um aumento em cima do salário mínimo. Isto é um esforço tremendo, mas que depois, na prática, em rendimento líquido para o trabalhador, pouco se traduz, porque os encargos fiscais mantiveram-se exatamente na mesma. Não houve um esforço mínimo do governo anterior para assumir a sua responsabilidade também neste triângulo. É preciso rever em baixa toda esta carga contributiva, sobretudo nos rendimentos do trabalho. Somos um setor de pessoas e para pessoas e temos mão-de-obra intensiva e esta componente é muito relevante para nós e precisamos de olhar para este tema com olhos de ver.

E quanto à revisão dos escalões de tributação do IRS?

É exatamente a mesma coisa. Sabemos que o governo já interveio nessa matéria, e bem, toda a descida é bem-vinda. O que é importante é que há descida no sentido de aumentar o rendimento das famílias. E isso para nós é positivo e é esse caminho que deve ser tido em conta: a revisão em baixa para permitir às empresas maior capacidade, não só de distribuir a riqueza que produzem, mas também investir, que é bem preciso. Não devemos esquecer que ninguém, ninguém mesmo, vai constituir uma empresa só para pagar impostos.

O que propõem para a redução da carga fiscal sobre a atividade do alojamento local (AL)?

Sobre o AL já tivemos boas notícias. Este governo já avançou com algumas das propostas que a AHRESP tinha definido, e bem, uma delas é a revogação da contribuição extraordinária sobre o AL. Eram os empresários e as empresas que estavam a avaliar a desistência deste negócio, porque os encargos fiscais eram tremendos. E não nos devemos esquecer que fomos todos nós que incentivámos estes empresários a criarem estas empresas, porque quando era preciso reabilitação urbana, recuperar os bairros, dinamizar o comércio, dinamizar as cidades, toda a gente incentivou os empresários a criar empresas e agora já não é bom criar empresas de AL. Isto é um contrassenso tremendo e foi uma medida inteligente da parte do governo e obviamente que aplaudimos.

O governo deve ir mais longe na matéria do AL?

Há outra questão na fiscalidade que ainda não foi mexida e que também é importante, que é o agravamento do IRS nas zonas de contenção e que precisa de ser desagravado. E há outras medidas que também propomos que têm de ser desagravadas e que também precisam ser revistas, embora o governo também tenha atuado na caducidade das licenças. É importante diminuir a carga fiscal, o governo já deu um sinal. É importante que os condóminos não possam, com a ligeireza que têm, de pôr termo às licenças, como podem ter na atual legislação resultante do pacote Mais Habitação. É importante que se permitam a estas empresas existir e que possam funcionar e que não venham dizer que agora não as queremos a funcionar, porque elas impactam diretamente com a falta de habitação. Isto não é verdade, é preciso não embarcarmos em populismos, em demagogias e analisarmos as coisas com frieza. Agora, se há zonas mais saturadas que têm AL certamente que sim, e por isso é que há zonas de contenção. Se temos de avaliar de forma séria o que existe, certamente que sim. Não vamos é tomar medidas que matem este setor de uma vez por todas. 

O turismo continua a somar recordes nos principais indicadores. No entanto, tem alertado para a descapitalização das empresas da restauração e para a fragilidade das tesourarias. O que está a falhar? 

No caso do alojamento turístico, que recebe mais turismo internacional, as empresas tiveram maior facilidade em ajustar os preços face às contingências da inflação e taxas de juro. Conseguimos elevar o preço e isso permitiu equilibrar as estruturas financeiras. No caso da restauração, que não é toda a restauração, depende do cliente interno e se mexer no preço perde o cliente porque este também é confrontado com a inflação nos supermercados, com custos de eletricidade, dos combustíveis e, portanto, foi mais difícil fazer esse ajuste. Isto está a engolir esta capacidade de fazer ajustes e as empresas estão a trabalhar basicamente para pagar custos. A rentabilidade é muito diminuta, as margens são muito pequenas e as dificuldades são maiores, e por isso é que falamos na falta de tesouraria destas empresas. E estas empresas acabaram por não se conseguirem recapitalizar ou capitalizar. 

Apesar do impacto da inflação no poder de compra, os portugueses não têm abdicado de viajar, conforme tem confirmado a Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo. A restauração mantém-se como uma prioridade e ou é por aí que os portugueses começam a cortar? 

Aquilo que sabemos, até porque foi apresentado um estudo da Nielsen há pouco tempo com a AHRESP, é que, de facto, os portugueses estão a comer menos nos nossos restaurantes. Mas estão a escolher restaurantes de ticket maior, portanto, o que significa que quando escolhem, escolhem experiências e aquele consumo diário é evitado.

E há alterações no consumo?

Sim, há uma procura maior pela divisão dos pratos, pelo delivery, pelo consumo de refeições de serviço rápido. 

Ao nível do investimento, que medidas devem ser tomadas para reforçar a capitalização das empresas? Linhas de financiamento, por exemplo?

Exatamente. Existem algumas linhas de financiamento, só que não podemos cair sempre no erro de pensar que estamos a falar para um setor que é letrado e que consegue facilmente recorrer a instrumentos financeiros de um Banco de Fomento. É um tecido empresarial muito micro e tudo isto tem de ser muito ágil. O melhor exemplo que temos foi na altura da covid, as linhas de apoio do Turismo Portugal eram linhas muito fáceis, muito ágeis, muito rápidas, mas as linhas covid associadas à banca eram um constrangimento para as empresas. A AHRESP teve de ajudar todo este tecido empresarial. Temos de olhar para aquilo que temos, não podemos esquecer que o setor continua a ter empresários que nem sequer um e-mail têm, esta é a realidade. E se queremos que estas empresas sejam elegíveis temos de dar condições para estas recorrerem, porque senão é a mesma coisa que não termos linhas de apoio.

Essas empresas têm capacidade para contrair mais endividamento? Este incentivo deverá ser feito exclusivamente através destas linhas de crédito ou poderá haver outras formas de ajudar o setor?

Terá de haver outras formas, porque não podemos estar a falar sempre em endividamento. Teria de haver aqui, por exemplo, o voltar ao fundo perdido. Se é possível, se não é possível, temos de discutir com o governo quais são os melhores instrumentos. Não podemos estar a fingir que temos instrumentos para o setor, porque não podemos anunciar milhões de linhas, milhões de euros de apoio, quando depois, na prática, as empresas não conseguem recorrer a esses apoios. Se é financiamento, é problemático porque, obviamente, voltamos outra vez a endividar empresas e as empresas não estão a capitalizar-se e não têm capacidade para isso. Temos de encontrar outras formas de apoio. O endividamento não é, de todo, a solução.

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