"A CMVM deveria centrar a sua regulação nos auditores de empresas 
de interesse público”
Gerardo Santos

"A CMVM deveria centrar a sua regulação nos auditores de empresas de interesse público”

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É raro, mas às vezes acontece uma entrevista sair aos tiros logo após a primeira pergunta. Foi assim na conversa entre o Bastonário da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, Virgílio Macedo, e o DN/Dinheiro Vivo. Baterias apontadas aos supervisores, a quem pede outra atitude a bem da economia. A regulação é uma parte importantíssima da atividade económica e do negócio dos seus associados e Virgílio Macedo não esconde que atravessa problemas graves. A começar pelas  tarefas que a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) exige aos revisores e auditores, que está a obrigar as empresas a destacar equipas inteiras para cumprir. Uma conversa que começou na visão purista do regulador e que acabou nas instituições que criam burocracia para se auto-alimentar.

Acha que em 2015 se colocam problemas maiores à regulação do que em anos anteriores, nas áreas que tocam aos revisores oficiais de contas?

Eu sempre fui e eu sou a favor de uma supervisão pública independente da atividade da revisão de contas. Portanto, não está em causa que haja uma uma supervisão pública. No entanto, no nosso entender, essa supervisão só será útil se for feita de forma proporcional e equilibrada, ou seja, tratando de igual aquilo que é igual, mas tratando diferente aquilo que é diferente.

Dê-nos um exemplo, por favor.

Já darei exemplos. O que digo é que, muitas vezes, existe uma perspetiva extremamente fechada por parte do nosso regulador na forma como faz a supervisão. Ou seja, a CMVM está a ir por caminhos em termos de supervisão que são únicos a nível europeu. A supervisão que está a tentar implementar em Portugal não tem muitas vezes paralelo na maior parte dos países europeus.

Pelo alcance? Pela abordagem?

Pelo alcance excessivo. Pelo excesso de pedidos de informações que estão a fazer aos revisores e que, na nossa ótica, em nada contribui para a melhoria do trabalhos de auditoria e revisão de contas em Portugal. Ou seja, todas as iniciativas que visem a melhoria da qualidade têm sempre de acordo. Totalmente de acordo. Agora, por exemplo, quando queremos implementar indicadores de qualidade de auditoria para a esmagadora maioria das sociedades de revisores e auditores penso que isso é trabalho burocrático administrativo. Hoje temos sociedades de revisores que têm equipas inteiras adstritas a dar informações à CMVM. Quatro, cinco, seis pessoas.

E o faz depois a CMVM com essa informação? 

O que faz é o seu trabalho de supervisão, de análise, e verificar se os trabalhos de auditoria e revisão estão de acordo com o normativo internacional. E questionam de acordo com o normativo internacional, ou seja, são extremamente puristas em termos teóricos. Nós somos, obviamente, defensores do cumprimento das normas internacionais de auditoria. Isso não está em causa.

Mas disse que daria um exemplo.

Portugal, por exemplo, esteve sempre alinhado com as normas internacionais de auditoria e é uma boa prática. As normas de auditoria em Portugal são as normas internacionais. Mas vai haver agora a transposição da Directiva da Sustentabilidade para o Direito Português. Isso vai implicar uma alteração substancial ao nível dos estatutos da Ordem, ao nível da supervisão. A CMVM também vai ficar com a supervisão dos auditores de sustentabilidade. E eu concordo inteiramente. Aquilo com que eu não concordo é que a reboque dessa alteração estatutária, a CMVM queira introduzir uma uma norma que diz que ela própria pode emitir diretrizes de auditoria para os auditores. 

Portanto, a Ordem contesta o que considera uma interferência na atividade, no negócio?

Interferir no normativo. Ou seja, em vez de ser só o normativo internacional, também pode haver algum tipo normativo emitido pela CMVM para o mercado português. E nós sabemos o que é que poderá estar na origem dessa situação.

Como assim?

É que estão a ser implementadas normas de auditoria para as entidades menos complexas (LCE, em inglês). Que é tudo aquilo de que o mercado português precisa, porque a esmagadora maioria das empresas portuguesas não tem complexidade e as próprias normas de auditoria extremamente densas, muitas vezes não tem aderência [à nossa realidade]. E nós sabemos que a CMVM sempre questionou muito, de forma indireta, a aplicação das normas dessas entidades menos complexas no mercado português, o que não faz sentido nenhum.

“A Ordem não aceita a dúvida sistemática da CMVM à qualidade do trabalho dos revisores oficiais de contas”

Virgílio Macedo

Mas está a dizer que para a CMVM todas as entidades são complexas? 

Para a CMVM todas são complexas! Para eles, fazer uma auditoria à Sonae requer exatamente os mesmos cuidados do que para uma empresa que está a fazer um simples parqueamento de imóveis. Não faz sentido. Nós sabemos que as normas são aplicadas a todas as empresas, sem exceção. Mas temos de ter alguma proporcionalidade na aplicação das normas. Eu não posso exigir a um auditor que leva 200 ou 300 mil euros  por uma auditoria ou por uma revisão de contas num ano que faça exatamente o mesmo trabalho que um auditor que leva 3000 euros.

E como é que tem sido o diálogo da Ordem com a CMVM nesse sentido? Há conversa sobre isso? 

Nós temos dialogado com a CMVM. Da nossa parte, existe sempre uma abertura para o diálogo. A CMVM muitas vezes não tem essa mesma visão. E está a ter uma visão muito fechada relativamente à forma como deve fazer a supervisão. Algo tem de mudar também na atitude da CMVM. Houve uma alteração da lei das associações profissionais e hoje todas as ordens profissionais já têm elementos externos à Ordem, no seu Conselho disciplinar, no seu Conselho Superior. E mesmo depois de haver essa alteração na lei das associações profissionais, para a CMVM, nada se alterou. 

Mas há aqui um conflito?

A CMVM e a Ordem dos Revisores não podem estar... não têm interesses antagónicos nesta matéria. Têm interesses comuns, mas quando vemos que, sistematicamente, existe uma dúvida da CMVM relativamente à qualidade que é prestada pelos revisores e pelos auditores em Portugal, essa atitude de dúvida sistemática nós não aceitámos. Nós emitimos cerca de 32.000 certificações de contas e relatórios de auditoria por ano. E muitas vezes, o que sai para as notícias nos jornais – por parte da própria CMVM – são questões que possam ter acontecido menos bem.

“Todos os supervisores têm um pouco a filosofia de polícia. Pensam que são polícias e não são polícias. São reguladores, supervisores da atividade”

Virgílio Macedo

No vosso entender qual deveria ser o foco da atenção da CMVM?

Na nossa opinião, a CMVM deveria centrar a sua regulação nos auditores de empresas de interesse público. São essas que têm uma grande capacidade de contágio na economia. E não andar, sistematicamente, também a tentar fazer controlo de qualidade direto nas outras pequenas empresas. Porque efetivamente nós fazemos, e temos feito, um trabalho notável. Fazemos cerca de 150 controlos de qualidade por ano, o que significa que cerca de 20% dos nossos inscritos são objeto de controlo de qualidade. Os nossos relatórios de controlo de qualidade vão todos para a CMVM para serem revistos. Portanto, não temos nada a esconder perante a CMVM, que deveria concentrar as suas atenções em termos de supervisão nas empresas de interesse público. Aí sim, é onde poderá haver problemas.

Portanto, a Ordem acha que a CMVM está a apanhar a fruta nos ramos mais baixos da árvore?

(Risos). Sim, a outra é mais difícil de apanhar. Tecnicamente é muito mais exigente, muito mais complexo. Imagine o que é a CMVM fazer um controlo a um banco. Será que a CMVM tem quadros que estejam habilitados a fazer um controlo de qualidade eficaz a uma instituição financeira? Do ponto de vista técnico?

Sobre essas entidades a CMVM tem de confiar no supervisor bancário, no Banco de Portugal...

Sim, mas aí é uma parte. E continuamos sempre disponíveis para trabalhar em conjunto com a CMVM, para haver aqui um equilíbrio entre a Ordem e a CMVM. Nisso estamos sempre disponíveis. Agora penso que a atitude da CMVM terá de ser uma atitude muito mais construtiva e não uma atitude de dúvida sistemática relativamente à qualidade do trabalho dos auditores.

A Ordem dos Contabilistas queixou-se da imensa informação desnecessária exigida por parte do Estado. Está a dizer-me que a CMVM exige aos revisores oficiais de contas imensa informação, mas poderia aplicar melhor o seu tempo noutras áreas. Temos, no seu entender, um problema na regulação?

A regulação está mal calibrada. E agora não estou a falar especificamente da CMVM, mas todos os supervisores têm um pouco a filosofia de polícia. Pensam que são polícias e não são polícias. São reguladores, são supervisores da atividade, certo? São coisas diferentes. Há um excesso de burocracia e  eu começo a assistir à necessidade de burocracia para as instituições se alimentarem a elas próprias. Isso acontece no próprio Estado. Cria-se burocracia – acontece no Estado, a nível europeu, na UE – e é burocracia sistemática para alimentar a máquina. É um excesso de burocracia que existe. E os pedidos de informações que os auditores hoje em dia estão obrigados a fazer junto da CMVM, e cuja quantidade a CMVM quer sistematicamente aumentar, é burocraciapura e dura. E todos nós devíamos interrogar-nos sobre a necessidade e a utilidade de continuarmos a ter essa carga burocrática a todos os níveis.

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