Quase 30% dos empregos do setor privado em Portugal estão em “elevado risco de serem substituídos pelas tecnologias de digitalização”, como a Inteligência Artificial (IA), conclui o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos ‘Automação e Inteligência Artificial no Mercado de Trabalho, Desafios e Oportunidades’, a que o DN teve acesso. Em contrapartida, “só menos de um quarto dos empregos têm potencial para beneficiar dos ganhos de produtividade relacionados com esta tecnologia e ficar a salvo dos seus efeitos destrutivos”, aponta o mesmo estudo.Em face destas conclusões, “a sociedade portuguesa vai ter de se preparar para um número muito, mas muito maior de desempregados e antecipar rapidamente estratégias de requalificação da mão-de-obra atual”, disse Rui Baptista, professor e investigador do Instituto Superior Técnico e co-autor do estudo que é apresentado publicamente esta sexta-feira.O desafio é gigante e vai sobrecarregar a Segurança Social, com uma fatura pesada em subsídios de desemprego, assume o investigador. Essencialmente, porque os trabalhadores de setores em risco que serão mais negativamente impactados pela IA ou conseguem fazer uma requalificação em massa bem sucedida para setores em ascensão ou quase só poderão ser absorvidos pelas profissões relacionadas com os cuidados pessoais, das poucas em que o efeito destrutivo da IA não se vai fazer sentir e que surgem no estudo categorizadas no “terreno dos humanos”. O problema, como assinala Rui Baptista, é que “nem todos poderão ou quererão fazer essa transição para os serviços de apoio à infância e terceira idade”.Os empregos mais ameaçados pelo efeito destrutivo da IA estão classificados no estudo como “profissões em colapso” e, em regra, são alguns dos pior remunerados, mas não só, os salários e qualificações médias também são impactados. Em causa estão, por exemplo, trabalhadores do setor das vendas, sejam caixas de supermercado ou operadores de televendas e call centers, entre outros, que tendem a ser substituídos pelas máquinas. Uma parte dessa transformação já começou, de resto, com a introdução do pagamento automático nos supermercados ou do atendimento telefónico por máquinas, mas é uma tendência que vai acelerar rapidamente. “E, nesta área do comércio, estamos a falar de cerca de 5% do emprego”, disse o investigador. Das dez profissões com mais empregados em Portugal, três estão em colapso. Para além do comércio, destacam-se ainda “outras profissões elementares”, que abrangem 3,5% dos empregos, e os empregados de mesa e de bar, que representam 2,5% dos postos de trabalho.Maioria da mão-de-obra poupadaApesar do efeito destrutivo da IA no emprego ser real, ele deverá poupar a maioria da mão-de-obra portuguesa. Isto acontece porque “35,7% do emprego encontra-se no chamado ‘terreno dos humanos’, caracterizado por baixa exposição tanto aos efeitos transformativos como aos efeitos destrutivos”. Enquadram-se aqui não apenas os cuidados pessoais acima referidos, incluindo os serviços de cabeleireiro e estética, mas também trabalhadores qualificados da construção ou serviços similares, por exemplo. Estas estimativas foram feitas com base nos Quadros de Pessoal do Ministério do Trabalho e Segurança Social referentes a 2021 e envolveram 120 profissões, incluindo apenas o setor privado.Os autores do estudo estimam igualmente um impacto muito significativo no grupo de profissões que colocam no ‘terreno das máquinas’. Aqui encontram-se, por exemplo, os empregados de escritório. “Dada a prevalência do uso de tecnologia no ‘terreno das máquinas’, poderá haver, nesta categoria, relativamente poucas oportunidades para o trabalho humano no futuro. Aliás, essa realidade pode já estar presente, uma vez que neste terreno se encontram apenas 13% dos trabalhadores”, aponta o relatório.Apesar de haver relativamente poucas profissões no ‘terreno das máquinas’, “encontram-se neste domínio três das dez maiores profissões em termos de número de trabalhadores (por ordem decrescente, ‘empregado de escritório em geral’, ‘empregados de aprovisionamento, armazém, de serviços de apoio à produção e transportes’ e ‘pessoal de receção e de informação a clientes’, correspondendo a 9% do emprego total (e a mais de dois terços do emprego neste terreno)”.Os autores do estudo notam ainda que “os empregados de escritório têm uma muito elevada exposição a ambos os lados da digitalização”. Muitos ainda desempenham tarefas rotineiras que, com as capacidades atuais da tecnologia, são já facilmente automatizadas. Na perspetiva mais otimista, “ Tal poderá significar que as tecnologias de automação libertam os trabalhadores destas tarefas, podendo, com o auxílio da inteligência artificial, dedicar o seu tempo de trabalho a tarefas onde acrescentam maior valor”, acreditam os investigadores.Norte é mais vulnerávelOs efeitos colaterais da IA, se bem que tenham o potencial para se fazer sentir em todo o país, vão ser mais destrutivos a Norte do que a Sul. Segundo o estudo da FFMS, os distritos mais expostos à automação e com pouca exposição aos efeitos transformativos da IA são Braga, Aveiro, Viana do Castelo e Viseu. Nos três primeiros, o setor da manufatura tem um papel muito importante, com grande número de trabalhadores. A concentração de profissões em colapso em Braga é de 45,6%, em Aveiro é de 44,8% e em Viseu supera os 41%. Por isso, e para garantir que todas as regiões possam lidar eficazmente com os impactos da digitalização, “são necessárias estratégias de desenvolvimento específicas para cada distrito, focadas na inovação e na diversificação setorial”, recomendam os autores. Já a região de Lisboa é a menos exposta aos efeitos destrutivos da IA, porque tem uma elevada concentração de empresas que já integram as tecnologias de informação nas suas atividades e tem menos manufatura. Quase 33% do emprego em Lisboa enquadra-se nas profissões em ascensão, enquanto isso é verdade para cerca de 26% do emprego nas regiões do Porto e de Coimbra. Apesar das dores da transição digital, também se anteveem aspetos positivos. Os modelos de linguagem de IA, como o ChatGPT, terão implicações generalizadas em muitas profissões. “Embora alguns empregos possam ser substituídos, muitos beneficiarão da complementaridade entre a IA e o trabalho humano, particularmente em profissões que exigem competências cognitivas avançadas”, lembra o estudo. "Os médicos de medicina geral, por exemplo, podem ver a tarefa de primeiro diagnóstico ser transferida para a inteligência artificial, que pode ser muito precisa, ficando com espaço para melhorar a sua formação no sentido de uma maior especialização", assinalou Rui Baptista, na pré-apresentação da investigação.Rendimentos refletem futuroSe olharmos para os rendimentos dos grupos em função do seu grau de exposição à IA, vemos que os trabalhadores das profissões em colapso são os que têm os rendimentos médios mais baixos, da ordem dos 827 euros. Os que se inserem dentro do «terreno dos humanos» (927 euros) e do «terreno das máquinas» (1063 euros) apresentam rendimentos médios semelhantes. Já as «profissões em ascensão» são, compreensivelmente, as que que apresentam rendimentos médios mais altos, em torno dos 1987 euros. “Estas são as profissões mais promissoras para o futuro, de elevado valor acrescentado, altamente expostas aos efeitos transformativos da IA e essenciais para alavancar o crescimento económico”.Em causa estão, por exemplo, as qualificações ligadas às tecnologias de informação e engenharias, como por exemplo, na área da economia verde. O estudo aponta que “um maior investimento na aquisição de competências de comunicação, colaboração e criatividade por parte dos trabalhadores pode facilitar o acesso a algumas «profissões em ascensão» de menor dimensão.Os autores consideram que “estas disparidades podem ser mitigadas através de incentivos à requalificação e aquisição de competências que permitam aos trabalhadores nas «profissões em colapso» transitar para profissões menos vulneráveis”. O processo de requalificação e transição “deve ser acompanhado de medidas de proteção social que assegurem a estabilidade financeira dos trabalhadores durante o período de adaptação, minimizando o impacto da perda de rendimentos e incentivando a participação em programas de formação”.Por outro lado, alertam que “as lacunas na formação académica e na aquisição de competências representam um grande desafio”. Mais, “é essencial alinhar os currículos académicos com o uso e a aplicação das tecnologias de IA e automação, fomentando parcerias entre a indústria e as instituições académicas para dotar os trabalhadores com as competências necessárias para o mercado de trabalho do futuro”.