Um homem de pessoas, que não teve de ser engenheiro para construir pontes
Instalados nos sofás mais confortáveis da sua segunda casa, a sede da Confederação Empresarial de Portugal, com chá e café a caminho para nos alimentar a conversa, vamos pondo em dia os temas da atualidade e trocando ideias sobre a crise que se instalou à boleia da guerra na Europa ainda antes de ultrapassarmos as consequências da pandemia e dos confinamentos. Está preocupado sobretudo com a força de trabalho que vai faltando às empresas quer por via do quase pleno emprego quer pela nova atitude dos trabalhadores, muitos dos quais já não vestem a camisola. "Vai ser precisa qualquer coisa disruptiva, de privação, para as pessoas voltarem... temos uma sociedade de abundância, consumista, é uma sociedade de facilitismo..." Essa nova postura de muitos direitos reconhecidos e poucos deveres assumidos leva-o a tempos em que a vida era bem diferente, em que "tínhamos aquela solidariedade do poucochinho".
"Quando os meus pais e eu viemos para Lisboa, vivíamos os três num quarto; e quantas vezes eu tive de escapar à polícia porque não se podia jogar à bola na rua... Tínhamos pouco e os bairros populares eram quase estruturas de família, as pessoas conheciam-se, eram solidárias. Eu andei naquela escola no Largo do Contador Mor, ao pé do Miradouro de Santa Luzia e do Centro de Estudos Judiciários, que era nessa altura a Prisão do Limoeiro, e quando alguém gritava "Creme Nívea!" lá ia a rapaziada toda a fugir e a esconder-se pelas ruelas de Alfama." Não era código, é que o tejadilho dos VW Carocha da polícia brilhavam como as tradicionais latas azuis e tinham os fundilhos alvos como o dito creme.
Já falei muitas vezes com António Saraiva, mas a sua voz era quase sempre a daqueles que representa, era por eles que ali estava, a trazer-me as ideias e argumentos daqueles a quem se dedica desde que, há 12 anos, assumiu a liderança da CIP. Hoje é dele que quero saber, mas isso não lhe traz desconforto - não mede mais as palavras nem oculta a limpidez do olhar alentejano.
É fácil conversar com António Saraiva. É assim, mesmo para quem acaba de o conhecer - "um animal social", como o próprio se descreve. Talvez lhe venha da veia alentejana a que os pais renunciaram para garantir melhores oportunidades para o único filho, que sonhavam ver licenciado e orientado. "Nasci em 1953, a cinco de novembro, já agora, em Ervidel, concelho de Aljustrel, distrito de Beja", situa-me, a explicar que a chegada a Lisboa - a sua estreia num barco, então com seis anos - levou a mãe a trabalhar a dias e o pai a uma breve carreira na GNR, onde fora integrado a partir da banda, a enorme estatura a dar-lhe o lugar de tocador de bombo. "Eram tempos estranhos porque quando o meu pai estava em diligências era como se eu fosse órfão, desaparecia um mês de cada vez, era colocado em zonas diferentes do país... mas não aguentou muito, cinco anos, e depois foi eletricista toda a vida."
Foram tempos duros e assume que talvez tenha "ao longo de toda a vida lutado contra preconceitos sociais". "Era um saloio a chegar à cidade grande, que teve de se afirmar naquele ambiente que, ao início, foi hostil. Acho que isso também me deu este espírito de guerreiro - sempre defini horizontes maiores do que aqueles que a minha vista alcançava e tem sido assim que tenho vivido. As minhas origens são humildes e o elevador social que apanhei não tem sido fácil porque a sociedade portuguesa ainda é muito preconceituosa", diz, assumindo que levou tempo a superar "alguma vergonha e medo, algum complexo de inferioridade". Mas foi precisamente isso que lhe trouxe a grande vontade, o grande querer que o levou a superar-se. "Foi assim que entrei para a Lisnave muito novo, contra a vontade dos meus pais. Assim que acabei o curso industrial, anunciei-lhes que ia inscrever-me na Lisnave."
Os pais viam-no engenheiro, um doutor, fora para isso que tinham trocado o Alentejo por Lisboa, para lhe dar as ferramentas que a eles lhes haviam faltado. Mas António tinha sangue na guelra e atrevimento suficiente para, aos 15 anos, pedir namoro à mulher com quem está casado ainda hoje. Maria Ana tinha então 20 anos e o seu jovem pretendente sabia que para a agarrar tinha de encontrar forma de crescer e se sustentar, ainda que o medo de um destino semelhante ao de um amigo que morrera em Angola o fizesse adiar o casamento - "não podia correr o risco de assumir responsabilidades diferentes e de repente ser chamado para o Ultramar". Namoraram seis anos e António acabou por ser chamado para a tropa já a trabalhar e quando o risco já se fora, a 22 de abril de 1974 e o seu quartel não seria mais longe do que as Caldas da Rainha - onde a Revolução demorou dois dias a chegar. Ano e meio depois, já casado com Ana Maria, era eleito delegado do MFA pelos milicianos.
"Entrei para a Margueira em janeiro de 1971, quando se inaugurou a Doca 13, na altura a maior do mundo, que docava até um milhão de toneladas, aqueles navios de grande porte que entretanto desapareceram com a reabertura do Canal do Suez. E quando regressei, depois da tropa, aquilo não era a mesma Lisnave, passara de uma empresa modelo, com responsabilidade social e a pagar 15 salários por ano - tínhamos mais um na Páscoa, tínhamos infantário, tínhamos escola de formação - para uma célula revolucionária, onde praticamente nasceria a UDP."
Fora criada uma comissão de trabalhadores com elementos todos afetos à CGTP, saneamentos, greves e paralisações em causa própria e alheia e a empresa começou a afundar: os 2 milhões de contos de capital social tornaram-se 2,2 milhões de buraco, os salários em atraso dos 10 mil trabalhadores acumulavam-se ("eu ganhava 2600 escudos, mas no final do mês só recebia 200 ou 300") e a falência era mais que certa. Entretanto, António e Maria Ana tinham dois filhos (Andreia nasceu em 1976, João em 1980) e ele decidira voltar a estudar, inscrevendo-se na Marquês de Pombal, em Belém, à noite, para fazer "as complementares". E consegui-o com brilhantismo: "Fiquei com média de 18 e estava tão bem preparado que, como já tinha 25 anos, decidi inscrevi-me no Instituto Superior Técnico, em Engenharia Mecânica." Nesse mesmo ano de 1980, Elisa Damião, sindicalista da UGT e militante do PS, desafia-o a fazer uma lista de oposição à comissão de trabalhadores para tentar salvar a Lisnave. "Achei um desafio interessante e então entreguei a alma ao criador... até ali, era um anónimo e tinha a simpatia de toda aquela gente, porque era muito novo e tinha crescido ali, mas nesse dia passei a ser amarelo, traidor, nem imagina o que me chamaram, cuspiam-me... enfim, todas essas coisas me deram a tal couraça de resiliência."
Acabou por ganhar a liderança da comissão de trabalhadores em 1983, por voto secreto. E começou a desenhar um acordo social com oito pontos. "Marquei a assembleia geral para o aprovar e quando ponho à votação vejo que havia uma pessoa com dois braços no ar; aquilo deu-se três vezes e eu ameacei anular a assembleia e fazer um referendo. E fiz. Nem sei como saí dali vivo", ri-se. Três dias antes do referendo, a célula da CGTP levou-lhe dois pontos e garantiu que aprovaria o acordo se ele concordasse com essas condições. "Dormi tranquilo e no dia seguinte disse que aceitava. Foi aprovado por unanimidade de braço no ar. Fizemos o primeiro acordo social deste país e que salvou a empresa."
A pressão do lugar e a falta de idade para o ocupar haviam de encurtar-lhe a permanência por ali. Ao fim de três anos bateu com a porta e regressou ao seu anterior posto de trabalho, no planeamento de cargas. Seis meses depois, em junho, a administração da Lisnave oferecia-lhe o cargo de diretor comercial de uma empresa associada, de torneiras, e conseguiu que concordassem testá-lo: "Disse-lhes que eu usava torneiras, mas não percebia nada de torneiras, portanto que me deixassem perceber primeiro e se em janeiro do ano seguinte sentisse que tinha unhas para aquela guitarra, então me fariam diretor, se não, regressava ao meu posto de trabalho. Apertámos as mãos e foi até hoje."
Entrou assim para a metalúrgica luso-italiana, onde chegaria a administrador e que depois compraria. "Eles queriam vender, eu disse que queria comprar. Avaliou-se a empresa, negociei o valor e condições de pagamento e fui pagando com o pelo do cão. Eu não tinha dinheiro, por isso deram-me 15 anos para pagar, mas exigiram-me 50 mil contos para passar as ações para meu nome. Pensei ir a dez dos nossos melhores clientes para ver se me adiantavam X por adiantamento de compras. Os primeiros cinco resolveram-me o problema", conta. "Hoje, aqueles que gostam de inventar, dizem que os Mello me pagaram os serviços de ter ganho a comissão de trabalhadores e que me terão dado a empresa..." Malícia pura, que ainda o magoa.
Seriam as torneiras que levariam António Saraiva à CIP. Mas adianto-me. Então como dono da empresa (que viria a vender anos mais tarde), ganhava o estatuto de industrial e José Manuel Fernandes, que não deixava passar oportunidades, convidou-o para seu vice, na Associação dos Metalúrgicos de Portugal. Viria a substituí-lo na saída e ficaria na liderança da AIMMAP mais seis anos, durante os quais Francisco van Zeller o puxaria para vice-presidente da CIP. O resto, era o mais natural: era visto como o homem certo para presidente da então Confederação dos Industriais Portugueses (de onde a sigla se mantém até hoje, apesar de se ter alargado a todo o género de empresas). Mas evitou o destino durante meses - até não poder fugir, com mais de 80% dos membros a apontá-lo à liderança.
Porque é que não queria? "Tinha receio. Apesar desta minha determinação me ter dado provas de que consigo superar os desafios, tinha a perceção de que estar na liderança desta casa era uma dimensão que eu não tinha, são 200 mil empresas de todos os tamanhos, áreas e regiões... Nem tinha condições pessoais, nem conhecimentos suficientes." E só quando aceitou que podia reunir conhecimento e que as suas características eram ideais para os requisitos diplomáticos do cargo é que disse sim. "Esse trabalho diplomático eu sabia fazer, por isso me chamam construtor de pontes", orgulha-se, assumindo que foi capaz de unir margens e assim ir gerindo tamanha heterogeneidade. "Modéstia à parte, hoje vejo que, com os esforços de toda uma equipa, dei a esta casa a visibilidade e o posicionamento que esta confederação tem em Portugal e na Europa (a CIP tem relações internacionais quer na Business Europe quer na OIE, na OIT, na OCDE). Mas sempre a lutar contra o preconceito: lá atrás era o sindicalista (sem perceberem que o que eu fiz foi salvar a empresa dos que, como sindicalistas, a iam matar), era o de origens humildes, o que não tinha pedigree."
Em 2012, viveria o episódio que o fez mudar. Uma infeção urinária levou-o ao hospital e num exame de rotina descobriram-lhe uma massa tumoral no pâncreas. Esteve 45 dias hospitalizado, fez três operações em 15 dias e na terceira esteve morto. Mas reviveu e diz que isso o suavizou. "Fiquei muito mais tolerante, posicionei-me de uma forma serena... fiz as pazes. Alimentar vinganças e ódios só provoca tumores. Hoje só tenho pena daqueles que vivem de dizer mal." Se noutros tempos era "o sindicalista", agora é o "patrão dos patrões"...
"Serei o quinto presidente da CIP e herdei esse título", encolhe os ombros a recordar que os seus mandatos foram mais de parceiro social, entre a crise das dívidas soberanas - o momento mais difícil que viveu, com a austeridade, a troika e a necessidade de estabelecer um acordo em 2012, que obrigou a enorme moderação das partes -; a covid, agora a guerra. Reflete e conclui: "Acho que, a cada tempo, a CIP teve o homem certo. E olhando hoje para trás, estou grato à vida por me ter dado a oportunidade destes dois grandes desafios que aceitei. O primeiro foi liderar a comissão de trabalhadores da Lisnave com as várias dimensões que isso me permitiu, na idade que me encontrava, e em tudo aquilo que tive de superar. Depois, a liderança da CIP, que me deu a oportunidade de ver o mundo em várias dimensões."
É por isso que, aos 69 anos, perspetiva o resto do seu tempo com "qualidade de vida interior e um conhecimento da vida e da realidade empresarial portuguesa e europeia que me dão uma serenidade e um sentimento de missão cumprida". O mandato na CIP termina em março. É o fim. "Acho que há tempo para tudo na vida e sabermos quando chega esse tempo é uma característica que deve presidir aos seres humanos e estar presente nas nossas escolhas. No meu tempo, que espero tão longo quanto possível e com a qualidade que me seja permitida, quero ter outras realidades, desafios, tempo para a família, amigos e as minhas tertúlias", diz, ainda que admita que não vai ficar parado. "A inquietude cívica não mo permitiria; como dizia Santana Lopes, vou andar por aí, honrar os desafios que aceitei (no Taguspark, na SPAL...) e outros que alinhei."A política? "Gosto muito de política, os meus amigos dizem que tenho algum jeito, mas depois de 12 como presidente da CIP, acho que já fiz a minha parte política." Agora, o tempo é outro, é de aproveitar a família, os cinco netos de que é avô dedicado (entre os 5 e os 17 anos), os mergulhos em Monte Gordo que garante que lhe salvaram a vida quando estava semiconsciente e repetia para si que voltaria a nadar naquele mar. A andar por ali de calções e chinelos, a comer bom peixe, a ver filmes e a ler. "E ir voltando ao meu Alentejo, que me energiza."