"Temos de fazer com que a energia limpa seja a opção mais fácil para os consumidores"

Em entrevista ao DN, Melissa Stark fala da necessidade de facilitar um uso eficiente por parte dos consumidores no dia-a-dia e da importância de fazer progredir o mercado de hidrogénio durante a próxima década.

"A melhor forma de instituir o recurso a energias limpas no dia-a-dia das pessoas é "fazer que esse seja o caminho mais fácil para os consumidores". Diretora-geral e líder global da Accenture para a área das Energias Renováveis e Transição Energética, Melissa Stark aponta exemplos: "Nas cidades, os edifícios precisam de ser equipados com telhados solares e têm de ser construídos para oferecer conforto térmico e eficiência energética. O carregamento de veículos elétricos precisa de estar disponível e funcional. Enfim, os sistemas têm de ser digitais, automatizados e fáceis de utilizar. Temos de facilitar um comportamento do consumidor que minimize os custos gerais do sistema de energia e aumente a sua eficiência."

Há mais de duas décadas ligada ao setor da energia e dos serviços públicos, Melissa Stark vê já um bom caminho percorrido na transição energética, refletido no facto de as energias renováveis "estarem a caminho de se tornarem a principal fonte de eletricidade em muitos mercados". "Reino Unido, Irlanda, Espanha, Portugal, Alemanha, Dinamarca, CAISO (sistema independente da Califórnia) e Brasil têm momentos em que as energias renováveis ​​constituem mais de 60% do sistema elétrico hoje em dia", aponta. Mas, claro, há ainda uma longa parte do caminho por percorrer rumo à ambicionada neutralidade carbónica em 2050. Desde o "planeamento de Sistemas Integrados de Energia muito mais eficientes e habilitados pelo digital", até ao "desenvolvimento de fontes alternativas como o hidrogénio para setores que não podem ser eletrificados".

A líder global da Accenture para as Energias Renováveis, uma das oradoras na recente conferência "Como gerar energia e preservar o planeta", organizada pelo Clube de Lisboa, diz que o "investimento em energia limpa já está a superar o investimento em combustíveis fósseis", atualmente, a nível global. "Sabemos que a eletricidade vai ser a espinha dorsal do futuro sistema de energia, aumentando a oportunidade para as energias renováveis. A eletricidade representará pelo menos 50% do nosso sistema de energia na maioria dos cenários futuros traçados e, em alguns outros, até mais de 70%. Ora, isso é entre duas e quatro vezes mais do que as renováveis representam hoje na matriz energética", realça.

A importância de acelerar uma indústria do hidrogénio

No entanto, há desafios ainda por ultrapassar e indústrias que precisam de outras soluções que vão além da eletricidade, como "os setores com processos de alta temperatura (como a siderurgia ou as cimenteiras), a aviação, a marinha". "Aí, ainda não chegámos lá. Existem desafios, com a expectativa de que a bioenergia e o hidrogénio venham a desemprenhar um papel maior", refere Melissa, que aponta para a necessidade de "um grande progresso nesta década". "Até 2030, essas soluções precisam de chegar à dimensão que as energias eólica, solar e eólica offshore têm hoje, isto é, prontas para ganhar escala".

O hidrogénio pode mesmo vir a ser o próximo pilar da transição energética. "Precisamos de criar uma indústria para o hidrogénio, dos aproximadamente 100 milhões de toneladas anuais de hidrogénio cinzento atuais para 400-600 milhões de toneladas anuais de hidrogénio verde. E nesta fase são precisos estímulos financeiros, com o objetivo de semear e escalar uma indústria que estimule o investimento privado", diz Melissa Stark. E se hoje o foco ainda está centrado nos custos de produção de hidrogénio verde (a partir da eletrólise da água), a especialista lembra que "os problemas com armazenamento e transporte de hidrogénio também requerem um esforço considerável".

"É por isso que trabalhamos com o Fórum Económico Mundial e a IRENA - Agência Internacional de Energia Renovável - num conjunto de medidas facilitadoras para um roteiro de hidrogénio verde que se focam no desenvolvimento de mercado. O hidrogénio precisa de aumentar significativamente na década de 2030, caso contrário provavelmente representará menos de 5% da matriz energética global na década de 2050. Foram necessários 30 anos para que os mercados internacionais de GNL e biocombustíveis se desenvolvessem. E agora não temos esse tipo de tempo", reforça.

Entre outras medidas importantes a implementar para chegar a um sistema de energia Net Zero (neutro em emissões), Melissa Stark sublinha ainda a necessidade de "um sistema de energia mais eficiente": "Por exemplo, nos EUA, dois terços da energia produzida é "desperdiçada" normalmente na forma de calor residual. Análises da equipa de Doug Arent, diretor executivo para as parcerias público-privadas estratégicas na NREL, o setor do transporte nos EUA usa 5 quads [unidade de medida] de energia, mas são necessários 24 quads - na maioria petróleo - para fornecer essa energia. Com motores elétricos mais eficientes, precisaríamos de apenas de 6 quads."

Impor custos sobre o carbono e garantir uma transição inclusiva

Importante também é colocar um custo sobre as emissões de gases de efeito estufa, quer seja no preço do carbono ou em taxas sobre o carbono. "Tem de haver uma forma estruturada e socialmente aceite de o risco climático ser refletido nos preços dos investimentos."

Um roteiro que ainda encontra barreiras várias a nível global, da política interna de vários países aos desafios geoestratégicos. Desde logo, falta ver o impacto da invasão russa na Ucrânia para a transição energética global. E nos EUA, por exemplo, a administração Biden ainda aguarda que o Congresso dê luz verde ao programa Build Back Better, onde está substanciada a mais ambiciosa proposta climática do presidente norte-americano. Melissa salienta, no entanto, que "está já em vigor o IIJA (Infrastructure Investment and Jobs Act), que foi aprovado em novembro passado e investe cerca de 60 mil milhões de dólares - o maior investimento na história americana - em transmissão de energia limpa, projetos de demonstração e centros de investigação para tecnologias de próxima geração, como reatores nucleares avançados, captura de carbono e hidrogénio limpo".

O maior desafio atual, diz, "é garantir que a transição energética seja inclusiva e justa, e inclua as economias em desenvolvimento (onde a maior parte do consumo energético ainda vem do carvão), ajudando a criar oportunidades para novas indústrias e empregos nesses mercados. Para muitas economias em desenvolvimento, é preciso aumentar a produtividade energética ao mesmo tempo que se abandonam os fósseis e encontrar financiamento para apoiar essa transição. Nesses mercados, o crescimento de energias renováveis ​​e novas indústrias associadas - por exemplo, fabricação de baterias - serão importantes", resume Melissa Stark.

rui.frias@dn.pt

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