Pausas para café e cigarros? Empresas portuguesas podem descontar no salário

O Código do Trabalho não contempla pausas e as empresas podem descontar o tempo gasto desta forma. A pausa em Portugal é uma prática generalizada e a "batata quente" poderia passar para a mão dos tribunais. A Galp, em Espanha, quer descontar estes intervalos.
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A Galp Energia Espanha quer obrigar os seus funcionários a registarem os tempos de pausa - para tomar um café, o pequeno-almoço ou para fumar um cigarro - e avisou que irá começar a descontar estes intervalos, uma vez que não são considerados tempo de trabalho efetivo. Um tribunal espanhol deu razão à empresa. Em Portugal, como seria?

O Código do Trabalho é claro: os trabalhadores portugueses só têm direito a uma pausa ao final de cinco horas consecutivas de jornada (ou ao final de seis horas de trabalho consecutivo caso o período de trabalho seja superior a 10 horas) e a única ressalva, além desta, é a obrigatoriedade de um período de descanso de 11 horas seguidas entre dois dias de trabalho consecutivos. Tudo o mais são exceções, ou práticas adquiridas ao longo dos anos e que podem, no entanto, tornar-se direitos.

A pausa nos locais de trabalho portugueses "é algo tão comum que nunca ninguém se lembrou de legislar", diz a advogada Lúcia Gomes. "Esta decisão de um tribunal - ainda que espanhol - vem alertar para a necessidade de incluir estas pausas, sem perda de remuneração, na lei", salienta.

Normalmente, os próprios contratos de trabalho não preveem essas pausas, mas estas podem estar previstas em contratos coletivos de trabalho ou no regulamento interno da empresa.

Não estão previstas as pausas, como não estão previstas as compensações de tempo no final do dia de trabalho, caso o funcionário queira compensar o tempo que gastou a beber um café ou a fumar um cigarro.

"Terá de existir sempre a autorização da entidade empregadora - o horário do trabalhador é aquele que está fixado no contrato de trabalho e esta maleabilidade depende sempre da autorização da empresa", alerta Lúcia Gomes.

"Em Portugal, o uso é fonte do Direito"

"No entanto, se for um uso da empresa, passa a ser um direito do trabalhador e as pausas não podem ser descontadas do salário. Em Portugal o uso é fonte de Direito", sublinha a advogada.

"O trabalhador pode sempre alegar que há anos que é assim e nunca descontaram", exemplifica a advogada, que dá como exemplo a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que obrigou a Caixa Geral de Depósitos a devolver o subsídio de refeição relativo ao mês de férias, isto depois de a administração do banco ter cortado esta "remuneração" aos trabalhadores em 2017 e 2018.

A CGD queria passar a pagar o subsídio de refeição apenas nos dias de trabalho efetivo, alterando uma prática que vigorava no banco há 40 anos e que consistia no pagamento do subsídio nos 12 meses do ano (incluindo, por isso, o mês de férias). A decisão do Supremo Tribunal de Justiça do final de novembro de 2018 veio dar razão à ação interposta pelo Sindicato dos Trabalhadores das Empresas do Grupo CGD (STEC): o subsídio de almoço pago pelo banco público no mês de férias é parte integrante da retribuição.

"Está na lei que o subsídio de refeição não é pago durante as férias porque não se trabalha, mas o Supremo Tribunal considerou que como os trabalhadores sempre o receberiam este já fazia parte da remuneração", diz Lúcia Gomes.

No artigo 197ª do Código do Trabalho, que diz respeito ao "Tempo de Trabalho", o artigo 2 contempla, na alínea a: "A interrupção de trabalho como tal considerada em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, em regulamento interno de empresa ou resultante de uso da empresa; e na alínea b: "A interrupção ocasional do período de trabalho diário inerente à satisfação de necessidades pessoais inadiáveis do trabalhador ou resultante de consentimento do empregador.

Para o advogado Garcia Pereira, o problema está precisamente na alínea b do artigo 197 do Código do Trabalho.

"Todo o trabalho tem de ter pausas"

"Há um problema de interpretação no que é que quer dizer exatamente essa expressão das 'necessidades pessoais inadiáveis do trabalhador' e normalmente isso tem sido interpretado como as necessidades fisiológicas, e a necessidade de alimentação por questões de saúde, por exemplo.

Para o advogado, o que aconteceu em Espanha foi uma "interpretação estritamente literal desta parte da alínea b.

"Se pensarmos um pouco somos forçados a concluir que todo o trabalho tem de ter pausas, mesmo que não sejam as formalmente designadas como tais".

A acontecer algo semelhante em Portugal - uma empresa decidir descontar o tempo de pausa dos trabalhadores -, existiria uma divisão de entendimento entre os tribunais.

"A jurisprudência iria dividir-se no sentido de as pausas serem consideradas uso ou não", vaticina Lúcia Gomes, uma vez já existirem, em Portugal, decisões contrárias sobre o que pode ou não ser considerado "uso".

"Estas pausas para café e cigarro são uma prática muito enraizada nas empresas portuguesas", sublinha Lúcia Gomes que defende: "A lei deveria há muito incluir como direito dos trabalhadores pausas regulares durante o dia de trabalho muito além do previsto. É uma questão de proteção da saúde e da dignidade de quem trabalha".

Ainda que uma empresa portuguesa possa decidir descontar as pausas dos seus trabalhadores, não seria uma decisão automática - em Portugal, os tribunais seriam chamados a decidir.

O que diz o Código do Trabalho?

- O tempo de trabalho é o período no qual um trabalhador exerce a sua atividade, ou está adstrito a fazê-lo. Este tempo inclui as pausas ocasionais, dirigidas à satisfação de necessidades pessoais e inadiáveis do trabalhador ou resultantes do consentimento do empregador.

O período normal de trabalho é o número de horas que um trabalhador se obriga a prestar, quer diárias, quer semanais. Legalmente não pode exceder as 8 horas diárias nem as 48 semanais, salvo exceções. Após estabelecido em acordo, não pode ser alterado unilateralmente, a menos que a alteração parta do empregador e represente uma redução mínima (do horário) e por necessidade imperativa da empresa.

Há tolerância de quinze minutos para transações, operações ou outras tarefas começadas e não acabadas na hora estabelecida para o termo do período normal de trabalho diário, tendo tal tolerância caráter excecional e devendo o acréscimo de trabalho ser pago ao perfazer quatro horas ou no termo do ano civil (artigo 203º).

No entanto, em cada período de trabalho existe a obrigação de um intervalo de descanso. O trabalhador não pode prestar mais de 5 horas seguidas de trabalho sem uma pausa, que não pode ser inferior a 1 hora. Nos casos em que o período seja superior a 10 horas, o trabalhador tem direito a esta mesma pausa de modo a que não cumpra 6 horas de trabalho consecutivas.

Pode, no entanto, invocar-se o uso, sendo este uma prática reiterada, da existência de pausas diárias (não confundir com costume, que se traduz numa prática reiterada com convicção de obrigatoriedade).

(Atualização às 20:45, com declarações do advogado Garcia Pereira).

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