"O que está a causar os problemas nas cidades é o capitalismo global descontrolado"
Entrevista a Charles Landry, um dos maiores especialistas em cidades, que vai estar em Carcavelos para o Portugal Mobi Summit, o evento de mobilidade da Global Media que começa esta quinta-feira na Nova SBE.
Charles Landry é um dos maiores especialistas em cidades e vai estar em Carcavelos para o Portugal Mobi Summit, o evento sobre mobilidade organizado nesta semana por Diário de Notícias/Jornal de Notícias/TSF e Dinheiro Vivo - a Global Media. Foi ele o curador do evento, e vai trazer as suas principais preocupações para os debates: o que é que quer dizer exatamente mobilidade? Temos de continuar a mover-nos ou devemos simplesmente parar um pouco? Como podem ser mais partilhadas as nossas cidades? O que devemos fazer para manter o espaço público?
São questões provocatórias que respondem a muitas das preocupações que as cidades portuguesas também têm. Landry começou por postular a ideia de cidade criativa, mas, recentemente, está cada vez mais a encaminhar-se para o estabelecimento de uma cidade cívica, onde se atenta sobretudo ao bem comum e ao estabelecimento de novas regras para uma nova situação, numa burocracia criativa que salve as cidades como as conhecemos. Uma entrevista provocatória que é uma boa preparação para o debate que decorrerá na Universidade Nova.
Nas recentes eleições em Portugal houve cerca de 45% de abstenção. Grande parte dos seus estudos sobre cidades passam por outras formas de democracia e representação - e a falta dela. Como é que as cidades que estamos a construir têm relação com a abstenção?
Até certo ponto estamos a tentar encorajar o envolvimento e a dedicação. O movimento Extinction Rebellion, por exemplo. Ainda no sábado houve uma grande angariação de fundos, centenas de pessoas num pequeno local angariaram muito dinheiro - os Radiohead deram 250 mil libras. Eles tentaram paralisar Londres porque querem que o governo leve estas questões a sério. O que estou a querer dizer é que, de alguma maneira, a crise do que era tradicional deixa alguma coisa para se desejar. Neste caso, os políticos não estão simplesmente a atuar, eles falam sobre ação mas não agem com a energia suficiente. A nível da comunidade, as cidades estão claramente mais perto dos cidadãos, mas estes também não votam muito nas eleições para as cidades. A forma de comunicação parece ter-se tornado mais da esfera privada ou, pelo menos, não é a forma política tradicional. Não sei se consigo responder a essa pergunta.
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© Gonçalo Villaverde/Global Imagens
Em Portugal um dos partidos que cresceu muito foi o partido dos animais e da natureza [PAN]. Estaremos a aumentar a empatia com os animais porque estamos a perder a empatia com as pessoas - com quem devíamos encontrar-nos e que já não vemos, nem nas nossas cidades?
Há uma grande questão em discussão que é a da cidade e a natureza. Essa é uma grande questão. As pessoas sentem-se desligadas da natureza e estão a aperceber-se cada vez mais disso. Ao mesmo tempo, há uma série de agendas sobre bem-estar, felicidade, todas essas palavras que ouvimos, e muitos desses movimentos estão ligados à natureza. Mas essa votação também pode ser porque se tivermos um cão, o cão não nos grita de volta... enquanto uma pessoa, nesta sociedade polarizada... Mas a verdade é que os partidos verdes cresceram substancialmente nas eleições europeias, por exemplo. Isto tem que ver com a questão de como se sente o lugar. É mais do que apenas os parques, é mais do que ter muito betão e uma grande extensão de relva. Tem mais que ver com a natureza, basicamente não se fazer uma distinção tão notória entre os edifícios e o natural. Os países nórdicos são um pouco assim, na Finlândia, estejamos onde se estivermos, parece que estamos na floresta mesmo no meio da cidade (estou a exagerar, claro).
Em Nova Iorque haverá uma lei que obriga os edifícios a terem jardins no topo...
Eu não sabia que era uma lei. Esse é um exemplo. Pode ser uma resposta às alterações climáticas, mas também pode ser por essas outras razões. É uma grande questão e, claramente, a natureza e os carros parecem duas coisas diferentes. É evidente que queremos a conveniência do carro, este representa, de alguma maneira, a liberdade de chegarmos até à natureza, mas na cidade acaba por ser o betão, o aço, o metal, a borracha - quer dizer, a borracha é uma coisa natural, mas uma árvore-da-borracha é diferente de uma roda de borracha...
Vê muitas cidades, entre aquelas que estudou e conheceu, que tenham resolvido esta contradição e a tenham resolvido bem?
Uma das ideias é suavizar a cidade, com natureza, verde. Isso é uma das mudanças mais importantes. Em relação às grandes cidades que o conseguiram fazer bem, se falarmos de cidades americanas temos o caso de Portland que o conseguiu bastante bem, é uma espécie de cidade-modelo. Também penso que bastantes cidades nórdicas o conseguiram. Na Finlândia, por exemplo, historicamente a maioria das pessoas veio de áreas rurais. Helsínquia fez uma coisa chamada Baana que é uma espécie de caminho através da cidade na natureza com uma ciclovia e uma faixa pedonal. Os alemães também são muito bons, em Hamburgo há várias ecovias em que o equilíbrio entre a natureza e a construção é bastante bem feito. Não se consegue essa sensação apenas com o betão.
Sim, isso é uma coisa das cidades do sul - o betão -, o tentar urbanizar tudo.
Sim, por exemplo as cidades suíças, sentimo-las mais suaves. O meu termo preferido é "suavizar as cidades", pois as coisas naturais dão-nos uma sensação de suavidade maior do que o betão. O betão e o asfalto parecem mortos e sem vida, no fundo é uma coisa de vida ou não vida.
Há uma grande questão em discussão que é a cidade e a natureza. As pessoas sentem-se desligadas da natureza.
As pessoas também podem ser muito felizes em ambientes urbanos...
São-no, sem qualquer dúvida, mas é uma questão de terem também esta outra coisa. Os ambientes urbanos podem ser ótimos, mas depende muito do tipo de urbano. Muitas vezes os ambientes urbanos parecem completamente sem vida, temos cidades no Médio Oriente sem qualquer alma. Se bem que têm um problema de clima, pode-se sempre suavizá-lo. Um café pode sempre ter qualquer coisa de verde, plantas, etc.
Em relação às eleições em Portugal, o populismo cresceu em áreas suburbanas e isso é uma tendência em muitas cidades europeias, especialmente em França. Qual é a importância da forma como as cidades são construídas nesta tendência?
Para dar um exemplo: Leicester é a cidade britânica mais multicultural. Com muitas pessoas de países diferentes. Portanto, o que aconteceu foi que na região as pessoas fizeram escolhas, basicamente mudarem-se, uma vez que o equilíbrio populacional era diferente. No Reino Unido a extrema-direita tem mais que ver com o sentimento de perda de controlo, de as pessoas se sentirem assoberbadas pelo mundo digital e pelas transformações que não compreendem. Muito frequentemente, nas áreas que votaram pelo Brexit um dos temas era a imigração, em zonas onde, na realidade, não há muita imigração. Portanto, penso que a resposta populista lida com o medo.
Quem ganhou as eleições em Portugal foi António Costa, ex-presidente da Câmara de Lisboa, o seu opositor era Rui Rio, ex-presidente da Câmara do Porto, Marcelo foi candidato à Câmara de Lisboa, e agora fala-se que o presidente da Câmara de Lisboa pode ser o sucessor de António Costa. Até que ponto a cena política é marcada por estas personagens locais?
Pode dizer-se o mesmo de Seul, o presidente da Coreia era o presidente da câmara, por isso o caminho para a presidência ou a chefia do governo é decididamente através das grandes cidades. Tem-se muito mais visibilidade como líder de uma cidade do que se tem como ministro do Interior ou da Justiça. Por vezes também é o contrário, o presidente da Câmara de Bordéus é um antigo primeiro-ministro francês [Alain Juppé]...
Deveria haver um ministério das cidades? Aconselharia o nosso governo a fazer isso?
Boa pergunta! Acho que se calhar se deveria chamar Ministério das Cidades e Áreas Rurais. Estive em Cascais que está no campo magnético de Lisboa, Oeiras está no campo magnético de Lisboa... As pessoas têm de compreender mais as cidades, obviamente, mas penso que é mais a ligação, porque já não é a cidade versus a área rural, temos de lidar com a totalidade, com tudo junto. Por exemplo Liverpool, as políticas devem ajudar a revitalizá-la, mas há muitos outros locais que estão a encolher e a morrer. Quando penso no Porto, em Braga, que não é assim tão longe, Guimarães, e em outros lugares entre essas cidades, penso numa teia em que todas se interconectam, é a dinâmica dos lugares.
Conhece muito bem Lisboa e Porto. Quais pensa que deverão ser as prioridades para os próximos anos, no que respeita à mobilidade, ao ambiente, para trabalharmos em função do seu sonho de uma cidade cívica?
Até certo ponto é ser-se menos móvel. Em certo sentido acho que Portugal é um muito bom exemplo devido a essa rede de cidades em Lisboa e no Porto. Talvez se possa manter esses lugares mais pequenos e não ter tudo sugado pelos grandes. Onde eu vivo, é um lugar pequeno mas incrivelmente internacional, global, algumas pessoas vão a Nova Iorque todas as semanas. O que eu penso que deveria tentar fazer-se, e acho que será muito difícil, é contrariar o efeito vórtice, que suga tudo, cidades como Amesterdão, Berlim, etc., sugam os recursos das oportunidades de talento. Claro que isso aconteceu com Lisboa também. Foi quando o Porto estava a enfraquecer - penso que agora o Porto esteja a fortalecer-se -, Lisboa sugava tudo. É necessário criar contrapolos, para que esses outros lugares sejam mais fortes. Obviamente que podemos trabalhar a partir de casa e tudo isso, mas isso significa mudar um pouco a natureza do trabalho. Claro que as pessoas pensam que Lisboa tem equipamentos que os lugares mais pequenos não têm, mas se se tiver como objetivo ter transportes incrivelmente bons, isso já não importa realmente. Depende, claro, se se quiser fazer uma noitada pode ser difícil regressar, mas em Londres e noutras cidades há transportes públicos noturnos. Eu tentaria parar, evitar, contrariar, o efeito vórtice. Fui pela primeira vez a Lisboa já bastante tarde, há cerca de 15 anos, e era uma cidade completamente diferente da que é hoje. No livro que escrevi, The Civic City in a Nomadic World, listei todos estes lugares onde há milhares e milhares de jovens a trabalhar digitalmente e que queriam saber onde é que era o lugar cool para se estar, e Lisboa estava obviamente muito bem cotada. Queriam saber onde é que podiam ficar em Lisboa, claro que o Airbnb se tornou um pouco excessivo, além de todas as coisas conhecidas - as lojas locais a desaparecerem, etc. Portanto, até certo ponto está a acontecer um contramovimento. Uma das tendências é a de Dimitri Hegemann, em Berlim - fundou a primeira grande discoteca onde pessoas de todo o mundo querem ir, o Tresor, e fundou uma organização que se chama Happy Locals e que tenta dizer: "Não venham todos a Berlim, tornem o vosso próprio local um pouco mais interessante, não sejam tão provincianos", etc. Tudo tem que ver com ligações, sejam físicas ou virtuais.
Este mundo nómada de que fala nos seus livros e no seu trabalho... Em Lisboa há outro mundo nómada, que é o mundo em que as pessoas saem de Lisboa, saem do centro da cidade expulsas das suas casas. Lisboa está cada vez menos provinciana. Como é que contraria isso?
[Em Nova Iorque os edifícios têm jardins no topo.] "Pode ser uma resposta às alterações climáticas. É uma grande questão."
Esta é uma situação completamente nova, porque estamos num jogo do qual não estabelecemos ainda o sistema de regras. Vamos ter de ir contra certos interesses, sejam comerciais ou outros, para controlar, guiar, ou seja qual for a palavra que vamos usar. Em termos de Airbnb, só como exemplo, tivemos um grande evento em Amesterdão chamado Cidades sob Pressão, sobre quais são as novas regras para esta situação nova. Um dos apresentadores era do Fairbnb, que divide a comissão recebida com a comunidade onde está localizado o alojamento e assim cria um fundo. O projeto agora apresentado em Amesterdão chama-se The Untourist e tenta persuadir as autoridades a dizerem: só pode vir a Amesterdão quem der alguma coisa em troca. Este dar alguma coisa em troca tem que ver com coisas como ajudar a limpar o lixo ou assim. A ideia do untourist diz, muito acertadamente, que se conhecermos um local ao fazermos alguma coisa juntos temos uma experiência turística muito melhor. Não estou a dizer que estas sejam as novas regras, mas as pessoas estão a pensar como as adaptar. Amesterdão decidiu deixar de se promover. A grande pressão é que desde há 10 ou 15 anos o turismo complicou-se com os voos baratos, 15 milhões de chineses a virem à Europa e a quererem ver tudo. Por isso tem de haver uma nova forma de controlo - não sei se lhe devemos chamar controlo, mas qualquer coisa tem de haver que exerça alguma contenção.
Nós temos dois problemas em Portugal: o turismo, as pessoas a virem e a irem e a não se ligarem à cidade, e que mudam a cidade ao estarem cá, e as pessoas que estão a comprar casas e a fechá-las, porque não moram cá. Uma espécie de nomadismo capitalista - elas vêm, deixam o seu dinheiro e deixam edifícios vazios. Penso que isso acontece bastante em Londres. Pode fazer-se alguma coisa a esse respeito?
Penso que a Nova Zelândia tem uma lei sobre isso, que tenta lidar com esta questão da compra de imobiliário. O problema é que há vários triliões de dólares a flutuar pelo mundo à procura de uma casa, e em vez de criarem uma nova revolução limpa, tecnológica, etc., estão a ser aplicados em propriedades. Esse dinheiro não é controlado globalmente, o Estado-nação também não o controla realmente e muito menos a cidade que está dois níveis abaixo. Mais uma vez, é aqui que têm de ser tomadas medidas que vão ser provavelmente impopulares. Ainda não criámos o novo sistema de regras para conter essas coisas. Fiz um pequeno livro sobre Mayfair, no centro de Londres, onde penso que 70% das propriedades foram compradas por estrangeiros. Se houver uma revolução, os ricos, sejam egípcios, russos, chineses, compram propriedades. Assim, o que acontece é a expulsão dos locais da sua própria cidade e, obviamente, os preços sobem. Tudo isto leva-nos de volta ao bem público, ao interesse comum, etc. As pessoas agora estão a olhar para sítios como Viena, porque Viena tem o controlo mais elevado da habitação social na Europa, é relativamente rígida e conseguiu evitar, até certo ponto, o pior da gentrificação.
Há 500 anos Lisboa era uma cidade completamente diferente daquilo em que se tornou depois das Descobertas. Não estaremos a criar uma nova Lisboa, um novo Porto, uma nova Oeiras, uma nova Cascais, com todas estas pessoas que estão a vir e que as transformam noutra coisa, não mais autêntica nem menos autêntica, mas apenas diferente?
Sim e não. É claro que queremos estrangeiros, a abertura... mas será que algumas destas pessoas estão mesmo envolvidas ou estão só a comprar propriedades? Estão envolvidas com Lisboa? Porque há muitas pessoas que não estão necessariamente a causar os problemas de que estamos a falar, elas vivem em Lisboa, trabalham em Lisboa e tentam contribuir para a vida de Lisboa. Claro que Lisboa deve mudar, queremos que fique mais aberta do que há 30 anos, mas as coisas que estão a causar o problema vêm do capitalismo global descontrolado que neutraliza tudo isso.
Isso não cria uma massa crítica suficiente para trazer criatividade para a cidade?
Muito frequentemente, no início destes processos, é muito interessante a pessoa jovem que vem e traz vida, novas ideias, maneiras diferentes de fazer as coisas, a fusão entre comidas diferentes, ideias diferentes sobre moda, etc. Tudo isso é bem-vindo, queremos isso e também uma parte do autêntico, queremos as duas coisas, mas o tipo de pressões de que estamos a falar estão a um nível completamente diferente daquele em que estavam. Eu tenho estado a olhar para as cidades há algum tempo e esta é uma alteração a uma velocidade sem precedentes. A próxima cidade que já está a começar a debater-se com os mesmos problemas é Atenas. Conseguem ver-se as placas e os graffiti a dizerem "turistas voltem para casa", etc. Qualquer cidade com história, num mundo onde é fácil movimentarmo-nos, tornar-se-á um hotspot. Tudo o que é preciso, idealmente, é de um pouco de sol e de história. Eu não falo português, mas as pessoas falam inglês relativamente bem. E Lisboa tem tudo isso. Além do mais, para muitas pessoas, o povo português é incrivelmente gentil, simpático e normalmente não agressivo. Então, o que querem mais?
São problemas muito difíceis de resolver. Muitas pessoas criticam os presidentes das Câmaras de Lisboa, de Cascais, do Porto, mas quando se lhes pergunta o que fariam elas não sabem, porque são problemas realmente difíceis de resolver.
Vamos chamar-lhe um problema global, mas em termos da Europa. Se eu fosse presidente da Câmara do Porto ou de Lisboa - não é que o presidente seja tudo, uma grande cidade tem mil, cinco mil, dez mil líderes - reuniria toda esta gente para discutir o assunto. Reuniria com as cidades secundárias também e diria: "Este é o problema. Como é que o poderemos resolver coletivamente?" Até certo ponto pode haver um aspeto de campanha por trás disto? Por exemplo, o Extinction Rebellion, eles querem que as pessoas tomem decisões e dizem que não é suficiente; se a outra parte ou o governo reagirem eles desistem, se é que me faço entender. Acredito na pressão criada por 20 presidentes de cidades-chave da Europa, por exemplo, a dizerem que é preciso fazer alguma coisa. Que mantêm um espírito aberto, que não estão a ser racistas nem nada do género, que querem cidades abertas, mas que precisam de definir os regulamentos e os incentivos - também há incentivos do outro lado da regulação - juntos. Muitas das ideias interessantes sobre o Airbnb, que levaram na verdade o Airbnb à mesa das negociações, surgiram porque Barcelona, Amesterdão, Berlim, Veneza, se uniram.
Vem a Lisboa para falar numa conferência sobre mobilidade e vai falar sobre não nos movermos, é isso?
[Risos] A razão por que tive a minha primeira conversa com a Global Media foi também porque disse que em função da maneira como as coisas estão definidas achei que as podíamos ampliar - há mobilidade, mas aquilo que as pessoas realmente querem é conectividade. Não tem que ver apenas com coisas físicas como carros, bicicletas, scooters e tudo isso, o que está muito certo, são tudo coisas novas que nos ajudam a movimentar-nos - bicicletas elétricas a subir as colinas de Lisboa -, tudo isso é ótimo. Mas a mobilidade é também, obviamente, a mobilidade virtual. Vou falar disso também. Também temos conectividade quando nos movimentamos, idealmente gratuita, paga por impostos ou outra coisa qualquer. Assim, uma pessoa que anda, que se movimenta, pode ser parte da cidade e trabalhar sem obstáculos. É isso que eu quero dizer, a mobilidade é tanto física como virtual. Quando escrevi Civic City in a Nomadic World estava basicamente a escrever a meu respeito obviamente. Como eu me movimento muito dentro dos lugares quero ter essa conectividade. Há os bilhetes com todas as interligações que a maioria das cidades já tem. Depois quero que os transportes públicos sejam frequentes e que eu não tenha de pensar nos horários, é isto que eu quero dizer quando falo de conectividade. Vamos até à paragem do autocarro e sabemos que o nosso autocarro chegará muito, muito em breve. Quero ir a um lugar onde tenha alguma coisa para comer ou beber, onde me possa sentar e sentir confortável, não quero que seja uma coisa complicada ligar-me à internet. Não penso que o que estou a dizer seja uma grande revelação, mas a verdade é que as cidades não são exatamente assim. Eu gostaria de ter lugares onde pudesse fazer uma reunião de trabalho, mas que não fosse complicado alugar o espaço. Estou a falar de um nível de conveniência completamente novo. Agora, podem perguntar-me o que é que eu dou em troca a este lugar que me está a facilitar a vida - é isso que quer dizer cívico.
Isso é utópico.
Eu quero dar alguma coisa em troca de alguma maneira, e se me encontrar consigo em Lisboa e me pedir para ser bom a respeito de qualquer coisa eu tento dar qualquer coisa em troca, gostaria que fosse uma troca mesmo, porque eu estou a pedir uma coisa à cidade. Acho que grande parte disto não é utópico porque há muitos lugares em que várias destas coisas são possíveis. Por exemplo, em Zurique não se tem de esperar por um elétrico, é fácil movimentarmo-nos. Há cidades que já o fazem, por exemplo o sistema de transportes em Berlim é tão bom que não se precisa realmente de ter carro. O que é que pensa que é utópico aqui?
A parte de dar qualquer coisa em troca.
Sim, concordo. Algumas coisas ditas no passado parecem completamente ridículas, mas coletivamente podemos de alguma maneira mudar a forma de pensar.
Quando as pessoas vêm a Portugal, quer sejam turistas ou compradores de casas, o dar qualquer em troca não é o que está no seu pensamento. Pensam em como aproveitar o melhor possível a experiência.
Sim, mas aí é onde entra a coisa do untourist. Na reunião em Amesterdão com o movimento e o Airbnb tivemos todos uma conversa muito boa, que foi basicamente a dizer que a mensagem tem de começar pela cidade, na maneira como a cidade comunica para lá do marketing habitual. Penso que isso tem de mudar. Tem de se dizer: "Você vai chegar à cidade, dou-lhe esse direito, mas você é um cidadão honorário." A mensagem tem de conter a ideia de dar qualquer coisa em troca, de responsabilidade: "Você tem o direito de cá vir, é bem-vindo, mas ser um cidadão honorário também tem obrigações." Por exemplo, a primeira vez que fui a Liubliana foi no primeiro voo da easyJet e nesse primeiro voo ia um britânico idiota que saltou para a água da ponte principal numa coisa de bêbedo, o que me pareceu inapropriado... É isso que eu quero dizer. Em Cracóvia vi outros britânicos a despirem-se na praça principal e a correrem para a fonte...
Fala muito sobre conectividade e a conectividade leva também aos dados e os dados levam também ao controlo e ao impacto do controlo na nossa vida quotidiana. Não é uma preocupação?
Claro. Há níveis diferentes, mas o controlo está cada vez pior e com o 5G, etc., vai provavelmente piorar ainda mais. Os dados que tenho deviam ser os meus dados. Há todo um movimento sobre os "meus dados".
Também fala um pouco sobre o controlo e as novas regras, a burocracia que pode ter de ser implementada sobre os dados que as empresas devem possuir e usar. Pensa que já devíamos estar a trabalhar nisso para preparar a revolução digital nas cidades?
Claro que sim. Penso que neste momento é tudo gratuito para todos e tudo o que fazemos é monitorizado de uma forma ou de outra. Há países que são mais rígidos, por exemplo a Alemanha está a pagar o preço por isto, porque a Alemanha é bastante controladora de uma maneira positiva, mas fez que as empresas digitais sejam menos poderosas do que as francesas ou as britânicas. Há o problema da falta de oportunidades devido ao fechamento, mas no fim imagino que não quero estar na situação chinesa em que os cidadãos são pequenos cartões, o que é a consequência de termos dados completamente gratuitos.
Diria que as cidades portuguesas se aproximam mais do seu ideal da cidade cívica, só porque são como são ou ainda têm muitas coisas para melhorar?
As pessoas que conheço em Portugal são selecionadas, e eu gosto das pessoas que conheço, o que me leva a pensar que estou a extrapolar a partir das pessoas que conheço. Em relação a estas atitudes de que falo, o dar em troca, a responsabilização, pode haver coisas da vossa história que originaram um capital social menor do que poderia ser. Às vezes sinto que num sentido familiar mais alargado o civismo é incrivelmente forte, mas no sentido mais amplo e aberto pode não se ter desenvolvido tanto como podia. Penso que todos temos dificuldades com isso, em todo o lado. Há um ano inventei uma palavra com um amigo português derivada de mingle [misturar] - vamos ser mingletive, penso que os portugueses querem ser muito mingletive, o que em parte significa dizer olá, tocar uns nos outros num sentido positivo, ser mingletive.
Entrevista originariamente publicada na edição impressa do DN de 19 de outubro