Lagarde desce da "torre de marfim" do BCE e pede mais investimento à Alemanha e à Holanda

Os países que podem "precisam de investir mais para apoiar o crescimento". "Até agora, eles não fizeram realmente os esforços necessários", diz a nova líder do BCE.
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Nesta quinta-feira termina o mandato de oito anos de Mario Draghi como presidente do Banco Central Europeu (BCE) e amanhã pode começar um novo estilo na instituição, sob a tutela de Christine Lagarde, que transita do Fundo Monetário Internacional (FMI). Mais verbal, mais virado para os governos, para pressionar os governos, designadamente.

Nesta nova era, os banqueiros centrais do euro têm de descer da sua "torre de marfim", como disse o vice-presidente do BCE, Luis de Guindos, numa entrevista ao El País, e interpelar diretamente os Estados porque alguns estão em falta há já algum tempo. É preciso agir contra uma eventual crise. Algo de mau está-se a formar no horizonte, dizem algumas instituições de peso.

A nova era de Lagarde terá como mote inicial a necessidade imperiosa de completar a resposta política (com a parte orçamental), como lembrou Mario Draghi, nas suas últimas intervenções como presidente do BCE.

A autoridade monetária garante que fez a sua parte (juros historicamente baixos, estando virtualmente no limite das suas capacidades, com fraturas internas já visíveis). Assim, diz que a bola está do lado dos governos: os que podem, e muitos já podem porque não têm défices nem dívidas monumentais, têm de gastar e de investir mais.

A conjuntura económica até parecia encaminhada: dinheiro abundante e barato não falta, havia algum investimento, as exportações estavam a crescer, mas em setembro tornou-se claro que o ciclo inverteu para pior. Guerras comerciais, guerras de facto, o Brexit que nunca mais se resolve.

Lagarde foi direta à questão e até trouxe nomes de alguns maus alunos no papel. "Os países com excedentes [orçamentais] crónicos no orçamento, como Holanda e Alemanha, precisam de investir mais para apoiar o crescimento. Eles não fizeram realmente os esforços necessários", atirou a nova chefe máxima do BCE.

"Partilhamos uma moeda, mas não muita da política orçamental, por enquanto", lamentou a ex-ministra das Finanças francesa.

A maior pressão do BCE sobre os governos tem muitas razões de ser. Desde 2015 que está em marcha um enorme programa de compra de obrigações, muitos países endividam-se a taxas de juro de quase zero, quando não mesmo negativas.

Dívida causa fraturas no BCE

Mas isso significa que o BCE está a carregar com dívidas nacionais no seu balanço, o que pode pôr em causa a independência da instituição, além de representar um risco financeiro substancial se alguma coisa correr pelo pior. Isto já está a levar a dissidências internas graves.

"A retoma de um programa de compra de ativos, adotada por uma maioria clara, ainda foi fortemente criticada. E, notavelmente, pela primeira vez na história do BCE, surgiram fugas a revelar que o Comité de Política Monetária (o corpo técnico de especialistas do BCE e dos bancos centrais nacionais) se tinha posicionado contra qualquer nova flexibilização quantitativa (QE)", observa Franck Dixmier, chefe da divisão de obrigações da Allianz Global Investors.

Sabine Lautenschläger, a alemã que fazia parte do comité executivo do BCE, anunciou a sua demissão (também hoje é o seu último dia na cúpula de Frankfurt) por causa da segunda vaga de compra de ativos, anunciada em setembro. Esteve contra essa decisão, tal como o seu colega e compatriota Jens Weidmann, que governa o maior banco central da zona euro, o Bundesbank.

Weidmann foi mais longe e disse mesmo que o governo alemão não tem nada que gastar mais dinheiro, como anda a pedir Lagarde.

Clemens Fuest, o presidente do Ifo, também faz parte deste clube. Também ele é um crítico das compras de obrigações. "Não se espera que essas compras tenham um impacto percetível na inflação." Pelo contrário, "elas reforçam distorções no mercado de capitais e também implicam riscos de formação de bolhas especulativas".

"O BCE está a tentar aumentar a inflação com um pé-de-cabra", atira o economista do influente instituto de estudos económicos sediado em Munique.

Draghi discorda. "Infelizmente, tudo o que aconteceu em setembro, mostra que as nossas decisões de política monetária eram justificadas."

O Bundesbank está contra planos públicos de investimento contra a crise, mas aceita que algo vai mal na maior economia do euro. A economia alemã pode ter registado "uma nova contração" no terceiro trimestre, o que, a verificar-se, significa que a Alemanha está oficialmente em recessão técnica, embora este banco central diga que ainda não é uma coisa severa. Seja como for é a primeira vez que a Alemanha entra em recessão desde a crise de 2012-2013.

Christine Lagarde vai descer da torre de marfim e constar isso com os seus próprios olhos, diariamente, em e a partir de Frankfurt.

OITO ANOS DA ERA DRAGHI

1 de novembro de 2011. Mario Draghi, italiano, assume a presidência do Banco Central Europeu, sucedendo ao francês Jean-Claude Trichet.

3 de novembro e 8 de dezembro de 2011. O BCE reduz as taxas de referência em 0,25 pontos percentuais em cada uma das duas primeiras reuniões lideradas por Draghi. A Europa estava mergulhada numa grave crise de dívida pública e privada. Recorde-se que Draghi assume os comandos do BCE já o primeiro resgate da Grécia tinha começado, em maio de 2010; o resgate da Irlanda, em dezembro de 2010; e o resgate de Portugal, em maio de 2011.

21 de fevereiro de 2012. Segundo resgate da Grécia.

26 de julho de 2012. Com a crise das dívidas soberanas cada vez mais descontrolada e a zona euro numa grande recessão, Draghi diz numa conferência em Londres que "o BCE está pronto para fazer o que for necessário para preservar o euro. E acreditem, isso será suficiente". As taxas de juro dos países começam a descer de forma notória a partir deste dia.

6 de setembro de 2012. Draghi continua a prometer compras ilimitadas de obrigações de países da zona euro caso estes enfrentem taxas de juro excessivas. Itália estava a ser dos países mais pressionados nos mercados e as palavras de Draghi como que salvam o país da bancarrota. Os mercados recuam.

5 de junho de 2014. O BCE reduz a taxa de juro dos depósito para níveis negativos, pela primeira vez na sua História: -0,1%.

22 de agosto de 2014. Durante um discurso em Jackson Hole, o encontro anual da Fed nos Estados Unidos, Draghi sinaliza pela primeira vez que o BCE pode avançar com um programa de quantitative easing (QE), como os EUA já tinham em prática há anos. Promete um programa de enorme calibre para comprar dívida pública aos bancos comerciais da zona euro, o que fará descer ainda mais os juros das obrigações do Tesouro.

9 de março de 2015. O BCE começa o QE, a compra de obrigações do Tesouro e outros títulos.

10 de março de 2016. O BCE reduz as taxas de juro principais para novos mínimos de sempre: taxa de depósito cai para -0,4% e a taxa de refinanciamento para 0%.

31 de dezembro de 2018. O banco encerra a primeira vaga do seu programa de estímulos (QE). Injetou na economia do euro dinheiro novo e muito barato num volume superior a 2,6 biliões de euros (2,6 milhões de milhões).

12 de setembro de 2019. Por causa das guerras comerciais e da inflação muito baixa, até negativa, o BCE decide avançar para uma segunda vaga de compra de obrigações e dívida privada. Esta segunda vaga começa amanhã, 1 de novembro. Nesse dia, a taxa de depósito volta a ser reduzida, agora para -0,5%.

31 de outubro de 2019. Draghi termina o seu mandato, sendo sucedido pela antiga diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI) Christine Lagarde.

jornalista do Dinheiro Vivo

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