João Cepeda: "Tornei-me um patriota bacoco"
Brunch com o presidente e diretor criativo do Time Out Market, que confessa o orgulho português que leva além-fronteiras.
Sentar-se à mesa com alguém que chega a provar comida em oito dos melhores restaurantes do mundo por dia é um desafio - que garante uma experiência gastronómica à medida. O que vai chegando à mesa do Time Out Market da Ribeira, saído das diferentes cozinhas que ali fazem convergir a mais deliciosa comida de Lisboa, está bem à altura das expectativas, garantindo que não há fraqueza até bem depois de o sol se pôr. À boa maneira portuguesa, de que o homem por trás de um conceito que já está em sete cidades do mundo, de Nova Iorque ao Dubai, é um acérrimo defensor.
Relacionados
"Tornei-me um patriota bacoco", diz, enquanto abrimos hostilidades pelos fantásticos ovos benedict, brincando com a realidade de uma missão que assume: a de promover o nosso incrível país por todos os cantos onde chega. "É importante haver este lado de missão quando de está constantemente a pensar e em novos projetos; é a única forma de garantir que nos dedicamos verdadeiramente."
Do outro lado da mesa alta corrida - made in Paços de Ferreira, como todo o mobiliário que chega aos mercados Time Out que João Cepeda vai abrindo a convite da casa-mãe -, agora amachucada pelas divisórias que lhe estragam a função de juntar estranhos, o presidente e diretor criativo do Time Out Market vai desfiando o novelo que o levou ali. Sem grande planeamento mas com as grandes convicções de quem aos 8 anos já ambicionava ser jornalista e chegado à universidade estava certo de querer escrever Política no Diário de Notícias. "Era o jornal que eu lia no comboio de Cascais para Lisboa, onde estudava." Confessa que acabou por ser mais feliz na área de Justiça, mas foi a ideia original que o levou nos voos de estreia, primeiro a Macau, para cobrir a passagem administrativa de Portugal para a China, em 1999, e mais tarde para uma temporada de cinco anos como correspondente em Londres.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
"Quando se cumpre metas muito cedo, queremos ver mais. Eu tinha 25 anos quando decidi mudar tudo; o meu objetivo era estudar Ciência Política e seria correspondente do grupo para pagar o resto. Mas o trabalho era tanto que acabei por deixar de lado a ideia de aprender - cobria tudo o que acontecia para o DN e para a TSF e ainda tinha uma crónica de Desporto no JN. Foram anos muito preenchidos em que aprendi e descobri imensas coisas, e que adorei."
Já então, porém, o amor por Portugal fê-lo ter de tomar uma decisão difícil: cortar as amarras que já se firmavam do lado de lá do Canal da Mancha e voltar antes que as raízes fossem mais fortes do que as que o prendem ainda à praia da Adraga da sua Porto natal - agora partilhadas com as que enterrou na Lisboa que o acolhe desde os dez anos. De Londres, trouxe um primeiro casamento que se esfumou e uma paixão que havia de lhe mudar a vida, como me conta enquanto o sumo de espinafres e citrinos nos refresca a alma.
"Quando lá vivia, lia sempre a revista Time Out e adorava. Então vi um anúncio em que convidavam a apresentar propostas para se lançarem noutras cidades e pensei que era por ali que faria o meu regresso." Foi-lhes bater à porta e para parecer mais sério levou uma amiga portuguesa que trabalhava na City e tinha o lado de conhecimento financeiro que a ele ainda faltava - soube mais tarde, já amigo dos criadores da publicação, que o engodo foi descoberto em segundos, mas venceu pelo atrevimento e conquistou a sua oportunidade. Em Lisboa arranjou financiamento, "um grupo de luxo" que juntava o parceiro de media Luís Delgado, o talento de João Miguel Tavares, Sónia Morais Santos e outros jornalistas e foi à caça de patrocinadores como a Super Bock e a Delta, para dar vida à versão portuguesa da revista. O êxito quase imediato marcou-lhe a vida e imprimiu-se na cidade, trouxe-lhe a mulher da sua vida e extravasou, valendo-lhe dois anos consecutivos a ser considerado a melhor Time Out do mundo. Daí ao mercado, foi um saltinho para quem mantém que até hoje se vê como jornalista.
Lisboa-âncora
"Começámos a fazer umas festas em Lisboa e correram muito bem, depois veio o Porto e a ideia de ativar a marca nas três dimensões surgiu naturalmente." Ao início, a ideia do mercado assustou a casa-mãe , sobretudo pelo tamanho da empreitada - em vez de um projeto pensado para cerca de mil metros quadrados, estava prestes a concretizar-se nos 7 mil metros quadrados da Ribeira... "Nunca imaginámos que se tornasse nisto", confessa, a abarcar todo o espaço onde se vão cruzando conversas em vários idiomas e pessoas de mochila às costas.
Os poucos turistas que por aí andam passam por ali. Mesmo com a lotação reduzida a um terço dos cerca de 900 lugares originais, sete anos depois de ser inaugurado o mercado Time Out Ribeira está marcado a fogo nos mapas dos estrangeiros. Mesmo dos que vêm de cidades que já têm um em casa - Miami, Nova Iorque, Boston, Montreal e Chicago e o recém-inaugurado Dubai. Até porque Lisboa continua a ser a âncora de todos aqueles espaços e dos que hão de vir - há três com data marcada, a crescer no Porto (outubro), em Londres (2022) e em Praga (2023) e mais duas dezenas de espaços em estudo. Mas toda a expansão não apaga Lisboa: "Continua a ser o motor da empresa, onde tudo nasce. O projeto de Lisboa é de longe o mais poderoso a todos os níveis - tamanho, faturação -, é fundamental."
Ponto de viragem
Croquetes de carne com maionese de alho e gyosas chegam para animar o final da manhã a explodir de sabor, enquanto João Cepeda explica o sucesso instantâneo do mercado original: "Abrimos em maio e um ano depois estava a assinar a venda da operação à Time Out; os acionistas olharam para o que fazíamos e recrutaram-me para ajudar a replicar o conceito. Andamos nisto há seis anos, mas num único, 2019, abrimos cinco mercados, cada um com o melhor que a cidade onde está fixado tem para oferecer concentrado num espaço." Hoje olha para esses tempos "com arrepios": "Fizemos coisas completamente loucas, chegámos a estar em três fusos horários numa só semana. Mas foi uma experiência incrível, uma oportunidade fantástica e sempre, até hoje, com a bandeira de Portugal e do Cais do Sodré às costas."
Diz que tem "um lado provinciano assumido" e orgulha-se de que não saia uma cadeira de Paços de Ferreira sem o carimbo made in Portugal: "Se um português num sítio qualquer do mundo virar a cadeira vai sentir esse orgulho."
Vêm mais sumos e sanduíches de presunto e de presunto com abacate. João recorda que a Ribeira foi um "acidente de percurso", concretizável pela boa vontade de conviver com os tradicionais vendedores do mercado - opção que uma imobiliária não veria com tanto entusiasmo - e porque surgiu à beira de uma crise, quando pouco havia que mexesse no país, trazendo um conceito inovador e beneficiando de uma economia muito abalada que permitiu cumprir o desígnio com cerca de 7 milhões de investimento. O mesmo valor que Cepeda estima que rondará o do Porto, apesar de nascer num espaço muito mais pequeno.
Lisboa continua a ser o motor da empresa, onde tudo nasce.
O Dubai, que estreou há mês e meio depois de um ano "devastador, profissional e pessoalmente", representa o ponto de viragem que também já se adivinha em Lisboa, depois de uma ameaça de reabertura no último verão que fez mais mal do que bem - "foi péssimo porque foi um falso arranque", explica, para acrescentar o tempero: "Na semana passada faturámos mais do que em qualquer semana do verão de 2020." O turismo local ainda assustado não trouxe mais do que migalhas a uma infraestrutura turística criada para a oferta que se foi solidificando durante oito anos, explica, para vincar que ainda não conhecemos o tamanho do buraco que a covid trouxe ao setor. "O mercado esteve dez meses fechado e foi um tempo horrível. Aqui e lá fora, dei o ombro a muita gente, vi muitos chefs a chorar." A brutalidade da crise pandémica deprimiu-o, obrigou-o a encontrar forma de ocupar a cabeça a ajudar no que fosse, mas não lhe tirou vontade de inovar e tentou sempre ajustar a oferta às adaptações exigidas pela pandemia - se o obrigavam a ter separadores nas mesas, fá-los-ia bonitos, com design e frases notáveis sobre a sua Lisboa.
Se a covid obrigou João a travar a fundo, admite que isso também o ajudou - não só porque nunca abrandaria de outra forma, e hoje sabe manter o ritmo, mas também porque lhe permitiu compensar a prolongada ausência dos outros tempos com uma aproximação à vida dos filhos, de 2, 6, 8 e 12 anos. "Tenho de começar a levá-los a viajar", diz, mais para si próprio, justificando que com a mulher, Ana, diretora-geral do Time Out Market de Lisboa, foi sempre conseguindo manter esses momentos de descoberta.
O Time Out Market de Lisboa é de longe o mais poderoso a todos os níveis: tamanho, faturação... é fundamental.
Porque sempre fez a defesa do seu país, não tem dificuldades em identificar o que mais gozo lhe deu viver nesta aventura. "Há seis anos, nós, portugueses, ainda éramos uns tipos que vinham de um país de terceira dimensão mediática e assisti à mudança de perceção das pessoas, de repente entravamos num restaurante e as pessoas estavam a falar de Portugal." O momento mais emocionante foi ver a palavra "saudade" tatuada numa rapariga em Miami, escolhida pela experiência vivida numa viagem pela Europa. "Quando é que houve esta paixão por nós?"
O melhor do mundo
Por agora, diz que gosta de "ter as rédeas da vida mais controladas", mas isso não significa que não vibre ao contar-me que no primeiro fim de semana desta reabertura já foi preciso fechar portas por alguns períodos para controlar o número de pessoas que ali queriam estar. O que lhe dá confiança no que será o verão, depois desta primeira semana no patamar dos 30% a 35% do resultado que o mercado fazia pré-pandemia. "Aqui, ninguém perde dinheiro, mas há quem esteja no top cinco da faturação da Europa", garante.
Os queijos e presuntos na tábua, com tostinhas a apetecer dão o mote para revelar onde acredita que está o próximo maná português: os produtos de grande qualidade. "O presunto português é do melhor do mundo, de porco preto, mas as marcas são detidas por espanhóis. Os porcos que dão um dos cinco melhores produtos do mundo são nossos e não temos uma única marca de qualidade", lamenta. "A qualidade do que levamos para fora ainda não está nada ao nível que devia e essa será a next big thing. Ainda pensamos nos produtos com leveza e por isso falhamos e é uma pena, porque podíamos ter produtos em todo o lado à prova de bala. Já temos chefs bons mas ainda não começámos a guerra dos produtos. Escondemo-nos na escala, mas são balelas. É preciso haver quem pense diferente, com ambição, e faça esse caminho." Assume o seu papel de agente privado - todos os mercados têm vinho português - mas reconhece as grandes dificuldades que permanecem.
Na semana passada, faturámos mais do que em qualquer semana do verão de 2020.
Até lá, vai fazendo a sua parte com o que apresenta no Time Out Ribeira: "Com 4 milhões de pessoas por ano a passar por aqui, acredito que ajudei a melhorar a opinião sobre Portugal sobre a nossa comida, sobre aquilo em que somos bons." O próximo passo é recuperar a característica de que mais gosta no mercado: o lado social. "Todos os projetos de futuro serão assim, feitos para combater os problemas das pessoas, que incluem a solidão e o isolamento."
Vêm cafés e pastéis de nata a anunciar que a conversa está perto do fim e confidencia que a pandemia também lhe roubou projetos pessoais, todos ligados ao turismo, onde não tem dúvidas que está o futuro do país - "Há problemas a resolver, temos de dignificar-nos, mas podemos fazer coisas únicas e tem de se apostar no turismo; não há país sem ele e até é perigoso o que se diz contra este setor." -, muitos à restauração. Mantém apenas um projeto na ideia, que ainda não sabe se irá gerar e por isso não se alarga no tema.
O presunto português é do melhor do mundo, mas as marcas são detidas por espanhóis. Os produtos vão ser a next big thing.
"Deitei fora as pedras da mochila, mas perdi muito dinheiro." Também se foi alguma paz de espírito, mas não a vontade de fazer mais - por ele e pelo país. "É devastador vermos desaparecer património que custou a construir e acho que isso acho que vai ter custos na forma de os empreendedores encararem o risco. Há muita gente traumatizada. Eu aprendi que o investidor tem de ter cuidado para a carolice não exceder os valores do negócio, mas sou tão obcecado pela onda de valorizar a marca Portugal que às vezes perco esse fio", assume.
Quanto ao que o futuro lhe reserva, diz que gostava de continuar em Portugal - "não sei se consigo". Há muito interesse em fazer projetos inovadores, diferentes, e João Cepeda, criador de conceitos nato, é frequentemente aliciado num mundo em profunda transformação. Verá como pode ajudar a levar Portugal mais longe. Por agora, os mercados ainda lhe ocupam 80% do tempo. E o resto dedica a fazer o que lhe dá mais prazer, sem pôr de parte nenhum desafio. "Tenho idade e energia para muito mais." Viveria noutra cidade? "Talvez em Londres, mas ainda não engoli o brexit; magoou-me muito. Nenhuma cidade do mundo bate Lisboa e Porto."