El Salvador aceita bitcoins. "Não é exemplo para ninguém" 

Economistas Abel Mateus e Pedro Brinca analisam a decisão pioneira de El Salvador de aceitar a bitcoin como moeda legal no país. As vantagens (num país com 70% de pessoas sem conta bancária) e os riscos da criptomoeda da moda que "sobe e desce como uma montanha-russa".
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El Salvador. O pequeno país de 6,4 milhões de pessoas da América Central com vista para o Pacífico foi notícia nesta quarta-feira por se tornar o primeiro do mundo a aceitar oficialmente uma criptomoeda como moeda legal. O objetivo? Dinamizar a economia, garante o seu jovem presidente de 39 anos, Nayib Bukele, eleito em março e conhecido pelas políticas (e roupas) arrojadas.

A bitcoin e as criptomoedas têm estado na ordem do dia, num ano onde já ganharam e perderam valor "ao estilo de uma montanha-russa louca", diz Abel Mateus, conhecido autor e economista português. O professor de Economia que passou pelo Banco de Portugal, pelo Banco Mundial e pela Comissão Europeia admite que apesar de haver um lado histórico na decisão de El Salvador, "as implicações mundiais são mínimas não só por ser uma pequena economia, mas porque dificilmente países de maior dimensão e destaque mundial a irão aceitar".
Pedro Brinca, economista da Nova SBE, concorda e admite que o impacto para já, "até na própria cotação da bitcoin, foi limitado". O facto de estarmos perante "um ativo de enormíssima volatilidade histórica" que desde abril "perdeu metade do seu valor depois de ganhos enormes" mostra a sua possível ineficácia como moeda, sublinha.

O que diz a Lei Bitcoin aprovada por El Salvador? "A presente lei tem como objeto a regulamentação da bitcoin como moeda de curso legal, irrestrito, com poder liberatório, ilimitado em qualquer transação." O presidente Bukele, que irá agora promulgar a lei aprovada no parlamento (tem 16 artigos) com votos de 62 de 84 deputados (mais do que os 56 da bancada do partido de Bukele), cumpre assim a estratégia de aprovar algo que "colocará El Salvador no radar do mundo". "Seremos mais atrativos para o investimento estrangeiro", afirmou.

Abel Mateus alerta, ainda assim, que há riscos, porque o maior problema da bitcoin e das criptomoedas (além dos problemas de sustentabilidade e esforço sobre as redes de energia) é que "facilitam o branqueamento de capitais e com o país a permitir a bitcoin pode estar a facilitar precisamente isso mesmo". Desta forma, "enquanto não houver um controlo no processo de transmissão e propriedade que é anonimizado (só o próprio tem a chave), será uma boa ferramenta para grupos criminosos" no cada vez mais praticado ransomware (controlo dos dados de empresas ou instituições para pedir resgates, muitas vezes pagos em criptomoedas). Esse tipo de problemas, bem como a volatilidade frenética das criptomoedas, "enquanto não se resolverem, não irão permitir que sejam aceites de forma generalizada pelos Estados".

Existem críticas em El Salvador à nova lei, como a do ex-presidente do banco central do país, Carlos Acevedo, que admite que "as criptomoedas são muito voláteis e arriscadas para que possam cumprir as suas funções básicas de dinheiro como reserva de valor e meio de troca". Mas o seu jovem presidente justifica a decisão pelas características do país, com "70% da população sem conta bancária e a trabalhar na economia informal". Esta pode ser uma forma, diz o presidente salvadorenho, de se pagar impostos, "gerar empregos e fomentar a inclusão financeira de milhares de pessoas fora da economia formal". O presidente espera também que aumente o envio de remessas de salvadorenhos que trabalham fora do país, nomeadamente nos EUA.

Pedro Brinca admite que é "difícil imaginar que a adoção da bitcoin como moeda de troca possa pôr em causa o papel da moeda tradicional nas transações do dia-a-dia num futuro próximo". Existem três fatores que fazem com que alguém queira deter uma moeda. Os motivos de transação - mas mesmo que El Salvador queira assim facilitar o pagamento de impostos "é bom lembrar que estamos a falar de transações que implicam custos e algum grau de conhecimento informático". Como reserva de valor, "mas para isto seria importante que fosse uma moeda com valor bastante estável, "o oposto da bitcoin". E a terceira razão é "o motivo de especulação". "É por isso que a bitcoin tem ganho popularidade, pelo crescimento vertiginoso e especulativo de valor, mas se toda a base de valor é puramente especulativa, é uma bolha que pode rebentar a qualquer momento e já houve sinais nesse sentido."

Gina Pieters, investigadora na área de criptomoedas e blockchain da Universidade de Chicago, explica que a bitcoin (de 2009) tem feito história como primeira criptomoeda descentralizada e ela e a tecnologia que a alimenta (blockchain) "têm enorme potencial no futuro" para quebrar barreiras, seja em reduzir as comissões em transações a nível mundial e facilitar pagamentos planetários ou até melhorar os mercados financeiros (facilitando em rapidez e agilidade) as liquidações de ações. Ainda assim, admite que há problemas que devem ser resolvidos, mas "a componente descentralizada dos estados deve manter-se, senão vai diminuir em muito o valor desta tecnologia".
Brinca explica ainda que uma vez que "a valorização da bitcoin é essencialmente por motivos de especulação", "não deverá ser o reconhecimento por parte do governo de El Salvador que vai mudar alguma coisa". O que pode fazer a diferença? "Seria mais importante para uma maior universalidade da bitcoin (ou das criptomoedas) que houvesse maior segurança e facilidade nas transações e uma maior estabilidade do seu valor."

Na calha estão moedas digitais em vários países, algo com que Abel Mateus concorda, mas que serão sempre controladas pelos bancos centrais, uma situação bem diferente do cenário (mais livre e volátil) das criptomoedas "sem dono", mas com "influenciadores óbvios do seu valor, como Elon Musk". Isso também demonstra a falta de maturidade das criptomoedas, "não há fundamento económico claro para que o valor suba ou desça de forma louca por causa de um boato, notícia ou tweet como se tem visto" - nesse aspeto aproxima-se do ouro e bem menos do dólar, não só pela volatilidade, mas por ser um bem escasso, puramente especulativo e que serve como investimento.

Portugal, tal como o resto da Europa e a América do Norte , não deverão adotar de forma generalizada as criptomoedas, antevê Pedro Brinca: "Não acredito que estejam dispostos a abdicar da política monetária enquanto instrumento de política económica". Além disso, acrescenta, "a bitcoin tem uma limitação muito importante: a emissão é limitada no tempo e não tem uma relação direta com o crescimento real das economias." O instrumento, à medida que as economias crescem, de criar mais moeda "mantém a estabilidade do sistema monetário", diz. "Se a oferta de moeda não acompanhar a procura o seu valor aumenta, o que pode ser perigoso, porque leva a que as pessoas não usem a moeda e a economia entre em estagnação."

joao.tome@dinheirovivo.pt

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