Com as apertadas metas para a descarbonização do mundo até 2050, em nome da sustentabilidade do planeta, a digitalização das economias parece ser a solução milagrosa. Quando pensamos no impacto ambiental da extração de minérios, como o ouro e prata, ou até as matérias-primas e recursos usados para a cunhagem de moeda física concordamos que os ativos digitais são, de facto, mais ecológicos. Ou talvez não. Neste tema da sustentabilidade, há muita subjetividade implícita e tudo depende da perspetiva de quem divulga os dados e dos interesses que tem no assunto..Em relação ao impacto ambiental da produção de criptomoedas, sobretudo a bitcoin, a mais procurada entre as mais de mil e seiscentas listadas desde 2009, a guerra de argumentos e contra-argumentos está instalada. Enquanto uns defendem que a mineração de bitcoin tem uma pegada ambiental maior do que a extração do minério de ouro, por exemplo, os defensores deste ativo digital desvalorizam a questão, que consideram falsa, e referem que existem outros motivos para usar o tema da sustentabilidade como arma de arremesso - e um deles é o facto das criptomoedas estarem fora do controlo dos sistemas financeiros tradicionais. Dois pontos de vista, cada um com os seus argumentos..Vejamos alguns números: com a pandemia, em 2020, os investimentos em ouro e bitcoin foram mais procurados como forma de fugir à volatilidade dos mercados. Ainda que a performance da bitcoin tenha sido muito superior - valor cresceu em mais de 500% entre maio de 2020 e maio de 2021 - o mercado do ouro, que apenas valorizou 4,7% no mesmo período, tem um valor, em dólares, muitíssimo superior. Segundo dados compilados pelo site americano Visual Capitalist (www.visualcapitalist.com), o mercado do ouro ascendia a 11,67 biliões de dólares e o da bitcoin valia 1,05 biliões em maio deste ano. Em 2020, os investidores colocaram 5,6 mil milhões de dólares em criptomoedas, num crescimento de 600% face ao valor do ano anterior..Ora, segundo a comparação feita pelo Visual Capitalist, o problema está na utilização de energia necessária para a mineração de bitcoin: são necessários 17 megajoules (unidade de energia despendida para determinado trabalho) para produzir um dólar de bitcoin (valor unitário está atualmente nos 50 mil dólares), contra 5 megajoules para produzir um dólar de ouro. Este consumo traduz-se num sério problema de consumo de eletricidade e consequentemente nas emissões de carbono. Ou seja, a produção de uma bitcoin gera cerca de 191 toneladas de CO2, contra 13 toneladas para extrair o mesmo valor em ouro, ou seja, um impacto quase 15 vezes superior. A infografia do Visual Capitalist mostra que produzir uma bitcoin equivale à mesma emissão de carbono do que 126.728 horas a assistir a vídeos no Youtube ou 1,68 milhões de transações na rede Visa..O Centro de Finanças Alternativas (CCAF) da Universidade de Cambridge, desenvolveu recentemente uma ferramenta, designada de Cambridge Bitcoin Electricity Consumption Index (https://cbeci.org/), que vai atualizando os dados de consumo de energia necessária para produzir bitcoin. Nos últimos dias, envolveu um consumo de energia elétrica médio de 90 terawatts-hora (TWh) por ano, ou seja, cerca de 0,41% de toda a energia consumida no mundo (cerca de 22.315 TWh). Ao fazer diversas comparações, o índice mostra que, se fosse um país, esta atividade estaria entre os 36 maiores consumidores do mundo, sendo equivalente a países como a Finlândia e o Cazaquistão. Porém, este índice também mostra que toda a eletricidade perdida nos Estados Unidos, nomeadamente em equipamentos em stand-by, daria para alimentar toda a rede de mineração de bitcoin duas vezes e meia. E este é um dos argumentos que agrada aos defensores da criptomoeda..Em março deste ano, Elon Musk anunciou que a Tesla passaria a aceitar bitcoin como forma de pagamento. Pouco depois veio dizer que, tomando consciência do impacto ambiental da sua produção, através do Cambridge Bitcoin Electricity Consumption Index, a utilização desta moeda ia contra os valores ambientais da empresa de veículos elétricos. Agora voltou a dar o dito por não dito e afirma que volta a aceitar a bitcoin como forma de pagamento quando esta utilizar mais de 50% de energia oriunda de fontes renováveis..Os defensores da criptomoeda dizem que é tão verde produzir bitcoin como os carros elétricos e que nada na moeda digital provoca emissões de carbono. O ónus está no lado da energia, e quando toda a energia for verde, a criptomoeda também o será. Ou seja, para os mineiros o argumento é simples: a produção de bitcoin usa a mesma eletricidade que tudo o resto no mundo, o problema é que, de forma geral, esta é ainda dominada pelos combustíveis fósseis..Rudá Pellini, fundador da Wise&Trust, fintech americana especializada em gestão de investimentos alternativos e autor do livro «O Futuro do Dinheiro», escreve que são necessários alguns milhões de dólares alocados em infraestruturas de energia, data centers e supercomputadores para iniciar uma operação economicamente viável. O consumo de energia elétrica é exorbitante, não só para manter estes equipamentos a funcionar 24 horas por dia, mas sobretudo para refrigerar estas gigantescas instalações de equipamentos. Ora, como o principal gasto é a eletricidade, os mineiros precisam estar próximos de fontes baratas e abundantes de energia. Segundo este especialista, há estudos em que se demonstra que cerca de 74% da energia gasta nesta indústria provém de fontes renováveis, seja hidroelétrica, seja solar ou eólica..Hugo Voltz Oliveira, do recém-criado Instituto New Economy, uma associação entre vários interessados na transformação digital da economia, refere que esta questão ambiental é uma falsa questão, já que «a mineração de bitcoin consome a mesma energia que outras indústrias equivalentes, mas as comparações que vemos são retiradas do contexto», afirma. "Estamos a falar de eletricidade, em primeiro, de origem renovável, e em segundo, se não fosse usada para a bitcoin seria desperdiçada", garante. Hugo Voltz Oliveira explica que para a mineração ser competitiva, os grandes mineradores fazem acordos com fornecedores de eletricidade para reduzirem o custo, e acabam por usar a chamada eletricidade do vazio ou o excesso da rede, que de outra forma não seria utilizada..As estatísticas mostram que 70% da mineração mundial ocorria, até recentemente, na China, onde a eletricidade é mais barata, mas onde a produção elétrica é feita essencialmente com recurso a combustíveis fósseis como o carvão - e desse número, mais de 80% estavam localizados na província de Sichuan. No início deste ano a China proibiu a mineração nesta província, e posteriormente em outras regiões, em nome da sustentabilidade ambiental. O país tem forte compromisso internacional com a neutralidade carbónica e foi este o argumento usado para "expulsar" os mineiros para outras regiões. "Ainda não há dados concretos que mostrem para onde foram transferidas essas instalações, mas será com certeza para regiões onde a energia é mais acessível", diz Hugo Voltz Oliveira..Porém, alguns críticos da utilidade das criptomoedas referem mesmo que a sua produção é a antítese da eficiência, como David Gerard, autor do livro «Attack of the 50 Foot Blockchain». E é aqui que reside o problema, pois o aumento do preço da bitcoin é um incentivo à entrada de novos players. No entanto, como a oferta é a mesma, apenas se divide o bolo por todos, a consequência principal é que para minerar a mesma quantidade, todo o esforço computacional se traduz em mais energia consumida e hardware cada vez mais potente. Além das grandes pools de mineiros internacionais, também os fornecedores de semicondutores para a atividade de mineração, como a TSMC e a Samsung estão a fazer investimentos - a Samsung, por exemplo, vai investir 17 mil milhões de dólares (cerca de 14,3 mil milhões de euros) numa nova fábrica de chips nos Estados Unidos. E também a indústria de energia se está a posicionar para otimizar as suas operações. A CleanSpark Inc., empresa americana especializada em redes energéticas, está a realizar um investimento de mais de 20 milhões de dólares (16,8 mil milhões de euros) para ampliar a estrutura de mineração de bitcoin..Uma famosa frase no século XIX dizia que na corrida ao ouro, ganha mais dinheiro quem vende pás e picaretas. Na corrida ao ouro moderno, os vendedores de pás são aqueles que comercializam hardware e serviços, como a energia. A mineração pode não compensar para todos os interessados, mas os vendedores de pás vão sempre ganhar.