Da recessão alemã ao Brexit: as nuvens negras que Costa enfrenta

Conjuntura internacional dificulta as contas e ameaça a expansão da economia portuguesa. Crises na Europa e no resto do mundo podem esfriar muito o ambiente e tornar bem difícil a vida ao novo governo.
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No final de 2017, quando as economias do euro pareciam voltar a andar com facilidade, com crescimento em alta e criação de emprego, já se sentia que algo mau estava prestes a rebentar, que a bonança não ia durar muito. Ano e meio depois, a economia mundial está de novo em maus lençóis, num dos momentos mais adversos desde a última grande crise.

Com o PS reforçado, o novo governo ganhará alguma margem mas ter falhado a maioria absoluta implica que haverá cedências a que António Costa não poderá escapar, ainda que tudo indique que Mário Centeno, ministro das Finanças e líder do Eurogrupo, não planeie abrir os cordões à bolsa numa altura em que o contexto internacional acumula nuvens negras no horizonte. Portugal aguentou-se bem nos últimos quatro anos, com a economia a crescer sobretudo à boleia das exportações e do consumo. Mas os países com os quais temos negócios estão entre o arrefecimento e a instabilidade económica, política, social.

Espanha continua a não ser capaz de estabilizar um governo, o Reino Unido está à beira de um Brexit que ainda ninguém sabe como vai acontecer, a Alemanha está a meio caminho de uma recessão - que terá efeitos diretos e indiretos brutais -, de Itália só chegam incertezas. E de fora da Europa, a par de Brasil e Angola a travar a fundo, há ainda a ameaça das sanções de Donald Trump, num momento em que a economia americana entrou para o top 5 dos destinos das exportações portuguesas.

Se nos últimos quatro anos o caminho estava facilitado por uma conjuntura económica florescente, hoje a realidade é bem diferente. É este o cenário negro que o novo governo enfrenta. E pode Portugal aguentar um novo embate, quando passaram apenas cinco anos da saída do programa de austeridade?

O problema europeu

Os dados referentes ao segundo trimestre do ano ainda não permitem ter um retrato fidedigno do que está a suportar a economia portuguesa, mas uma coisa é certa: o perigo já está à espreita. De acordo com o INE, o produto interno bruto (PIB) conseguiu manter um crescimento homólogo trimestral de 1,8% igual aos primeiros três meses do ano, mas com as nuvens de uma possível recessão na Alemanha, o ciclo pode inverter-se dada a forte interligação entre as duas economias.

Alemanha doente. O motor da economia europeia parece estar a gripar, mas ainda não é certa a dimensão dos estragos. As campainhas soaram com os avisos do banco central alemão (Bundesbank) de uma possível recessão no terceiro trimestre deste ano. As previsões apontam para um crescimento anémico de 0,5% do PIB este ano, mas a cifra pode ser revista em baixa para valores entre 0,2% e 0,3% no conjunto do ano. Berlim admite uma injeção massiva de estímulos de 50 mil milhões de euros para despertar a maior economia europeia, mas ainda se desconhecem o âmbito e a extensão do pacote de incentivos. A Alemanha tem capacidade orçamental para enfrentar qualquer crise económica futura com "força total", afirmou o ministro alemão das Finanças, Olaf Scholz, mas o Bundesbank já veio afastar a necessidade de estímulos imediatos. É o terceiro maior cliente das exportações portuguesas.

E se Berlim espirrar, vai contagiar outros. Se por enquanto França (segundo destino das nossas vendas) está fora de perigo, é preciso lembrar que a economia gaulesa pode sofrer com o abrandamento da vizinha, já que é para a Alemanha que segue a maioria das exportações francesas: vale mais de 70 mil milhões de euros. Além disso, mais de 2700 companhias gaulesas estão na Alemanha, empregando 363 mil pessoas.

A Itália em crise. Naquele que é o nosso sexto destino de exportação, o 66º governo desde a Segunda Guerra Mundial não resistiu às tensões internas e desfez-se no final de agosto. De acordo com o jornal económico Il Sole 24 Ore, a incerteza política italiana vai custar mais cinco mil milhões de euros em juros da dívida ao longo de dois anos. E a dívida pública italiana é colossal, correspondendo a 134% do produto interno bruto. A variação trimestral do PIB em cadeia no segundo trimestre foi zero (0%).

A incógnita espanhola. O principal cliente das exportações portuguesas está também mergulhado numa crise política com os sucessivos falhanços na investidura do socialista Pedro Sanchez (PSOE) no cargo de presidente do governo. Apesar de manter um crescimento acima da zona euro - tal como Portugal - o segundo trimestre deste ano deu sinais de abrandamento. A Alemanha é o segundo destino das exportações espanholas, logo a seguir a França, com vendas que superam os 30,7 mil milhões de euros, correspondendo a 10,8% do valor das vendas ao exterior, em 2018.

A incógnita do Reino Unido

E depois há o elefante na sala: um Brexit que se arrasta há mais de três anos mas nem por isso oferece mais certezas hoje sobre como acontecerá ou que efeitos terá do que oferecia no dia da votação do referendo. Ontem mesmo, a S&P antecipava uma contração do PIB do Reino Unido de 2,8% no próximo ano, em caso de saída sem acordo - o cenário que ganhou força com Boris Johnson à frente do governo.

Desde que os britânicos votaram pela saída do Reino Unido da União Europeia, em junho de 2016, Portugal já terá perdido dois mil milhões de euros em oportunidades de exportação, segundo contas da Euler Hermes.

Dos EUA a Angola, com petróleo à mistura

Fora da Europa, as coisas também estão complicadas. A começar pelos EUA, que são já o quinto destino de vendas de Portugal e que conseguiram há dias a autorização da Organização Mundial do Comércio para agravar tarifas alfandegárias sobre os produtos europeus. Dessa lista constam produtos que Portugal vende aos EUA - incluindo vinhos verdes, queijos e azeites. (Leia mais aqui)

O Brasil, o 9.º maior cliente das vendas de Portugal, ia crescer 1,4%, mas a OCDE cortou agora a previsão para quase metade (0,8%). O crescimento de Angola, o décimo maior no ranking das exportações portuguesas, quase desaparece: 0,4% em 2019, segundo o FMI. Há um ano dizia 2,5%.

Até ao momento, as ameaças - escalada no clima de guerra comercial entre Estados Unidos e concorrentes como China e Europa, travagem a fundo da economia alemã, total incógnita sobre o desfecho do Brexit, incidentes violentos que afetam o mercado do petróleo, crescente hostilidade em relação ao Irão, fim do ciclo mais explosivo do turismo - parecem não estar a materializar-se de forma negativa e irreversível na economia portuguesa. Por exemplo, a agência de rating Standard & Poor's decidiu manter a nota da dívida de Portugal no mesmo patamar de investimento, mas subiu a perspetiva de estável para positiva, mesmo neste contexto externo adverso.

No entanto, os analistas da S&P que seguem a economia portuguesa deixam um aviso à navegação: "O enfraquecimento do comércio e do crescimento global deverá pesar sobre algumas partes da economia portuguesa, não apenas na indústria." Portugal é um polo industrial muito importante da Alemanha, país que já sofre diretamente o embate dos embargos e dos agravamentos tarifários decididos pelos EUA.

Marion Amiot, economista principal da S&P, acredita que "a fraqueza económica da zona euro vai prolongar-se". "Não vemos recuperação na procura externa. O crescimento do comércio global está a oscilar à volta de zero, as tensões comerciais persistem e o crescimento do PIB chinês deve abrandar para menos de 6% ao ano." A especialista acrescenta que as economias europeias "estão a começar a sentir lentamente os efeitos no abrandamento na produção industrial relacionados com o comércio".

Do lado da Moody"s, o tom é parecido. Isto tenderá a piorar antes de melhorar. "As nossas previsões de crescimento já incorporavam a expectativa de deterioração do crescimento global e alguma escalada das tensões comerciais." Mas agora "também refletem uma fraqueza cíclica mais profunda do que o esperado nas economias individuais". "Reduzimos as nossas previsões de crescimento para países como China, Austrália, Japão, Coreia, Índia, México, Brasil, Arábia Saudita, África do Sul, Rússia, Alemanha e Itália." Aqui pontuam, uma vez mais, muitos dos grandes parceiros comerciais de Portugal.

"As tensões podem aumentar se os EUA impuserem tarifas de 25% sobre todas as importações da China, além de impor tarifas sobre automóveis e peças importados" antecipa Madhavi Bokil, analista de crédito principal da Moody"s. "Qualquer um destes movimentos pode desencadear uma reação desordenada nos mercados financeiros globais e ter um impacto negativo no crescimento. A disputa comercial entre os EUA e a China também aumentou o suficiente para incluir já tensões cambiais, que podem migrar para os preços dos ativos."

Agências de rating dividem-se

Nas últimas semanas, o DN/Dinheiro Vivo ouviu economistas que seguem a República nas agências de rating e especialistas domésticos. E a divisão está a par da incerteza: o país pode ser apanhado na curva e ter problemas, admitem alguns, até porque Portugal não tem flexibilidade orçamental para compensar impactos negativos da crise externa. Há obstáculos consideráveis, mas as reformas cumpridas fortaleceram o país, que está muito mais capaz de aguentar o embate, garantem outros.

Jason Graffam é o analista principal que segue Portugal na agência de rating DBRS, a tal que nunca atirou a República para o "lixo", que manteve o país ligado à máquina do dinheiro barato do BCE durante e depois do ajustamento. Mas hoje está confiante. "É verdade que existem obstáculos consideráveis à economia portuguesa decorrentes da desaceleração da zona euro e da incerteza mundial", "um ambiente externo mais fraco irá inevitavelmente ser um empecilho para a economia portuguesa". Mas "devido às reformas realizadas, ao fortalecimento do setor financeiro e à eliminação de grandes desequilíbrios económicos, o Orçamento do Estado português está hoje numa posição muito mais forte para absorver choques externos, se for confrontado com uma recessão".

"Embora a ocorrência de choques externos possa induzir uma deterioração orçamental e abrandar o declínio esperado no rácio da dívida, vemos que a trajetória atual já é de redução e saudável", acrescenta Graffam. Razões que ajudaram a DBRS a decidir melhorar a perspetiva do país na última semana (leia mais aqui) .

A Standard & Poor"s (S&P) tem uma visão menos benigna. A equipa de analistas chefiada por Frank Gill, o homem que avalia Portugal, diz que as previsões "sugerem claramente que a materialização de riscos negativos mencionados tem, provavelmente, um impacto negativo no crescimento em Portugal". "Tendo em conta o nível elevado de dívida pública, na nossa opinião, Portugal não tem flexibilidade orçamental para compensar totalmente o impacto negativo potencial desses riscos quando eles se materializarem", acrescenta. Diz no entanto, que o rating do país está OK [BBB] na medida em que Portugal "possui uma capacidade adequada para honrar os seus compromissos financeiros".

Sarah Carlson, da Moody"s, observa que tal como outros países do euro, "Portugal está a experimentar uma desaceleração económica devido a um ambiente externo bem mais fraco". A economista ainda acredita que "Portugal atinge a meta de défice de 0,2% do PIB" este ano, mas avisa que há "riscos para o alcance dessas e outras metas, tendo em conta as nossas expectativas de desaceleração".

E é semelhante a opinião de economistas nacionais. António Mendonça, professor do ISEG, não se "atreve a dizer que Portugal está mais bem preparado para fazer face a uma eventual crise", sublinhando que a "economia perdeu mais graus de autonomia face à situação pré-crise e está mais dependente do que se passar no espaço da UE e do euro". E a economista Cátia Batista, da Nova SBE, refere a "pouca margem de manobra [do País] para respostas eficazes a uma nova recessão", muito por culpa do "acréscimo nos encargos permanentes do setor público, da redução do IVA na restauração" ou da "redução do horário de trabalho no setor público para as 35 horas sem reforço de meios", pressionando serviços que têm maior procura em momentos de recessão.

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