Bruxelas reforça defesas para prevenir inverno gélido
Com a guerra na Ucrânia sem fim à vista e o inverno a chegar, a Europa vai reforçar as munições para enfrentar a crise energética. Os Estados-membros procuram possíveis soluções para evitar um inverno "gelado", numa fase em que as faturas da energia disparam e em que a Rússia vai fechando cada vez mais a torneira do gás. Em breve, vai avançar um novo pacote que deverá incluir medidas para a redução do consumo de eletricidade nas horas de pico, limites máximos para o preço do gás, bem como o famoso imposto sobre os lucros "caídos do céu" das petrolíferas. Mas será suficiente para enfrentar os próximos meses de frio que se avizinham? Em Portugal, os especialistas ouvidos pelo Dinheiro Vivo acreditam que a atual capacidade de armazenamento dá uma margem de manobra. Mas deixam o alerta que a crise demonstrou que a dependência do gás é um risco para a segurança energética e a atual seca que o país atravessa também pode complicar o cenário.
"A Rússia está a manipular os nossos mercados de energia e deparamo-nos com preços astronómicos", sublinhou esta semana Ursula von der Leyen, na apresentação das medidas que foram discutidas na sexta-feira pelos ministros europeus com a pasta da energia. O novo pacote que será implementado em breve visa "proteger consumidores e empresas" da atual crise sem precedentes numa altura crítica, com o inverno à porta, e travar os "lucros do Kremlin com o gás" que alimentam "esta guerra atroz", apontou a presidente da Comissão Europeia. No final da reunião, o ministro checo dos Negócios e Indústria, Josef Sikela, congratulou-se por se ter conseguido "definir uma direção clara para as medidas que terão de ser tomadas em breve".
Nos próximos dias deverão ser conhecidas as propostas legislativas concretas do novo pacote para travar os preços galopantes de energia que vão atuar, essencialmente, em quatro áreas. "Iremos propor medidas sem precedentes na próxima semana para uma situação sem precedentes", disse a comissária europeia da Energia, Kadri Simson, no final da reunião extraordinária dos ministros europeus da tutela, em Bruxelas.
A primeira linha de atuação passa por impor limites aos ganhos das empresas de energia "com baixos custos de produção". Como Von der Leyen tinha explicado, o objetivo de Bruxelas passa por limitar em 200 euros por megawatt/hora (MWh) a remuneração das tecnologias inframarginais usadas para a produção de eletricidade. Esta limitação das receitas destina-se aos produtores que têm custos inferiores aos das tecnologias que ditam o preço do mercado grossista [normalmente o gás natural], mas acabam por receber a remuneração de fecho do mercado. Por norma, as tecnologias inframarginais são oriundas de energias renováveis uma vez que estas não têm custos com o gás natural, beneficiando, assim, dos altos preços cobrados pelas centrais de ciclo combinado.
A avançar, a medida não terá grande impacto no mercado português segundo o presidente da associação que representa os produtores de renováveis (APREN). Pedro Amaral Jorge explicou ao Dinheiro Vivo que em Portugal a maioria da produção de renováveis está coberta com tarifas garantidas de venda de eletricidade (as feed-in tariffs que vão vigorar até 2028) ou por contratos de médio e longo prazo de venda energia. Razões pelas quais, justifica, os produtores de energia "verde" em Portugal não estão a beneficiar dos preços elevados do mercado grossista. Mas considera o limite que Bruxelas quer impor "bastante admissível".
No seguimento desta linha de ação, Clemente Pedro Nunes sublinha que a Europa cometeu um erro "colossal" ao "depender exclusivamente de uma única matéria-prima para assegurar a base do sistema elétrico'' e agora "está a pagar de forma brutal com a crise geoestratégica provocada pela guerra na Ucrânia". Assim, "o preço marginalista da eletricidade está a tornar-se proibitivo a todas as horas em que o sistema elétrico tem que recorrer ao gás natural para evitar apagões, pois todas as produções registadas nessas horas alinham pelo preço muito elevado determinado pelas centrais a gás natural", defendeu o professor do Instituto Superior Técnico. O especialista lembrou ainda que foi precisamente para "evitar esta contaminação" explosiva" do preço da eletricidade em função das tarifas do gás natural" que foi aplicada a "exceção ibérica" e será a extensão deste mecanismo implementado por Portugal e Espanha "a toda a União Europeia o que Ursula Von der Leyen estará provavelmente a pensar fazer agora" com esta nova proposta.
A segunda área que gerou consenso entre os ministros passa pela implementação de uma contribuição solidária da parte das empresas de combustíveis fósseis, que será usada para mitigar a alta dos preços da energia. Ou seja, o tão falado imposto sobre os lucros excessivos das empresas do setor volta assim a estar em cima da mesa.
Por cá, o Executivo de António Costa sempre rejeitou o "windfall tax" às elétricas, defendendo que o mecanismo ibérico de desacoplamento do custo do gás implementado a 15 de junho já faz esse efeito. Mas a possibilidade de aplicar este imposto sobre os lucros "caídos do céu" ao setor petrolífero - o que inclui empresas como a Galp - não é totalmente excluída.
A terceira solução defendida pelos ministros com a pasta da energia dos 27 foi a introdução de um mecanismo de liquidez para as empresas de produção de energia que estão a ser impactadas pela volatilidade do mercado. A medida, que deverá passar por linhas de financiamento, vai ser estudada a par com o Banco Central Europeu. Na Alemanha, por exemplo, a companhia de gás Uniper já foi alvo de ajuda pública.
Já a proposta mais polémica, e que não deverá avançar para já, foi a introdução de um preço máximo ao gás e petróleo russos. O receio de mais retaliações de Vladimir Putin terá levado os ministros a concluir que a medida precisa de ser aprofundada. Aliás, na quarta-feira, poucas horas após a presidente da Comissão Europeia ter levantado esta hipótese, o chefe de Estado da Rússia voltou a ameaçar cortar o fornecimento de petróleo e gás se os preços forem limitados. Apesar de as importações europeias do gás russo terem caído de mais de 40% para 9%, ainda há alguns países bastante dependentes da Rússia, como é o caso da Alemanha.
Por fim, a quarta linha de atuação da Europa para fazer face à alta dos preços energéticos e evitar o corte de abastecimento no inverno passa por alargar os planos de redução do consumo de energia de forma a aumentar as reservas de energia. Em cima da mesa está o corte no consumo de eletricidade nas horas de pico, ou seja, nos períodos em que há mais procura, que são tipicamente de manhã e ao final da tarde, e por esses motivos costumam levar ao aumento dos preços grossistas. O objetivo é desviar o consumo para outras horas do dia em que não haja tanta pressão no preço. Esta medida é semelhante ao corte de 15% do consumo de gás anteriormente aprovado. Nas últimas semanas, os Estados-membros têm apresentado planos de poupança de energia nesse sentido. O Governo português aprovou esta quinta-feira o esboço da estratégia nacional, mas o plano concreto ainda não foi apresentado.
A aplicação destes planos tem contribuído para a Europa aumentar as reservas de gás que hoje estão nos 83%, acima da meta de 80% estipulada para novembro. Portugal tem as reservas a 100%, mas com o inverno a chegar a capacidade armazenada, inferior face à média de outros países, será suficiente?
João Peças Lopes não antecipa que haja problemas de abastecimento "desde que os recursos primários estejam disponíveis''. No entanto, o professor catedrático da FEUP adverte que "numa situação muito extrema de continuação da seca, sem água suficiente nas albufeiras, com pouco vento, incapacidade de apoio por parte do sistema elétrico de Espanha e temperaturas muito baixas no inverno, que conduzirão ao aumento do consumo, não é de descartar que possam ocorrer problemas de abastecimento de eletricidade". Um alerta feito também pelo presidente da associação de renováveis, que aproveita para destacar que as medidas que estão a ser desenhadas por Bruxelas já devem prever estas questões de segurança de abastecimento.
Para Clemente Pedro Nunes o problema não passa por constrangimentos de abastecimento em termos físicos, mas deverá ocorrer ao nível dos preços. "Em termos de eletricidade e gás natural, as nossas redes têm muito boas interligações com Espanha. Note-se por exemplo que Portugal tem estado a importar quantidades maciças de eletricidade de Espanha nos últimos meses, pelo que o problema deverá ocorrer essencialmente ao nível dos preços. E aí sim, temo que muitas indústrias e empresas se vejam obrigadas a suspender / encerrar a sua atividade nos próximos meses por não poderem suportar os custos energéticos", referiu o especialista em energia.
Por sua vez, Artur Patuleia destaca que "a crise demonstrou que a dependência do gás é um risco para a segurança energética". Por esses motivos, o investigador do think thank E3G, especializado em alterações climáticas, avisa que "para além dos ajustamentos de curto prazo no mercado de eletricidade, é crítico que os Estados Membros assumam uma perspetiva ambiciosa e estrutural para a redução dos consumos de energia". Ou seja, a discussão não se deve restringir a intervenções pontuais no mercado no curto prazo, devendo-se também enfrentar o problema da dependência do gás. No que respeita em concreto a Portugal, salienta que "é importante que os apoios à economia protejam não só a capacidade industrial existente, mas também tenham em conta a adaptação necessária para a sua descarbonização e para desenvolver as cadeias de valor das soluções alternativas aos combustíveis fósseis".
sara.ribeiro@dinheirovivo.pt