Ana Jacinto: "Forte retração no consumo e conjuntura podem levar a encerramentos e despedimentos"
Desiludido com as medidas anunciadas pelo governo para as empresas fazerem face ao contexto inflacionista, que "são insuficientes e não respondem às reais necessidades", o setor da restauração quer condições para trabalhar e valorizar salários e carreiras. Pede corte de IVA na restauração e hotelaria e de IRS para preservar rendimentos e emprego. E lamenta "oportunidade perdida" no aeroporto.
Como analisa o acordo entre governo e parceiros sociais, assinado no domingo?
Não podemos deixar de sublinhar a importância de algumas medidas que vieram a ser incorporadas no Acordo, até porque algumas são propostas da AHRESP. Em linhas gerais, o acordo incide sobre aspetos vitais para empresas e trabalhadores, nomeadamente aumento dos rendimentos, fiscalidade, financiamento, simplificação administrativa e custos de contexto, sendo as últimas mais dirigidas às empresas, mas pouco ambiciosas. Em suma, temos medidas importantes, mas insuficientes. A grande preocupação é o esforço pedido às empresas que pode não ser compensado pelas medidas acordadas.
Relacionados
Para o setor do turismo, o acordo ficou aquém do pretendido?
O acordo, que antecedeu a apresentação do OE2023, vem definir um quadro macroeconómico bastante otimista num momento de grande incerteza global. As estimativas das organizações internacionais apontam para um 2023 de forte retração no consumo, que irá impactar diretamente nas atividades económicas da restauração, bebidas e alojamento, pelo que urge um quadro de apoio robusto.
Onde tem de ser melhorado para os próximos quatro OE?
Um OE é um documento imperfeito quase por definição, há sempre mais a fazer e muito a melhorar. E no que aos quadros regulatórios respeita há um vasto conjunto de reformas que merecem especial atenção. É no quadro fiscal, contributivo e laboral que mais trabalho há a fazer. É urgente criar um ambiente propício para as empresas atingirem níveis de produtividade que as tornem mais competitivas, nacional e internacionalmente, e proporcionarem mais e melhores condições para os seus trabalhadores.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Muitas empresas têm dificuldade em fazer face ao endividamento da pandemia, ao mesmo tempo que lidam com os efeitos da guerra. O setor devia ter tido mais apoios no OE2023?
É outro tema crucial que a AHRESP há muito sinalizou. Infelizmente, nos anos de pandemia as medidas a fundo perdido para apoiar a tesouraria, com raras exceções, como o lay-off simplificado, foram insuficientes, o que obrigou a sobre-endividamento. Findos os períodos de carência e as moratórias, as empresas deparam-se agora com obrigações financeiras que terão dificuldade em cumprir perante o tremendo contexto inflacionista e de perda de poder de compra. A AHRESP propôs medidas concretas para o OE2023 no âmbito da capitalização e defende que é fundamental criar mecanismos financeiros e de subvenção com vista à redução do endividamento das empresas, além de promover a reposição dos capitais próprios aos níveis pré-pandemia.
Como perdão da dívida ou alargamento dos prazos de pagamento?
Duas questões importantes. A AHRESP sempre propôs a conversão de uma percentagem das Linhas Covid em fundo perdido, pois este sobre-endividamento estrangula qualquer atividade económica. No atual contexto, a entrar na época baixa e com a retração do consumo muito mais impactante, prolongando-se por 2023, é essencial que as empresas tenham mecanismos de alívio e prorrogação das suas obrigações financeiras.
Novas linhas de crédito podem ser um rebuçado amargo, visto que incentivam mais endividamento?
Após dois anos de pandemia, que levaram a um sobre-endividamento, por ausência de medidas robustas à tesouraria, as empresas não conseguem acomodar mais endividamento. E as medidas anunciadas pelo governo para as empresas fazerem face ao contexto inflacionista são insuficientes, não respondem às reais necessidades.
Concorda que o crescimento que o governo vende este ano como maior da UE "é ilusório" porque a base muito baixa? Pode essa "ilusão" levar a uma desilusão por efeito da guerra no turismo?
Estamos muito receosos sobre o negócio das empresas nos próximos tempos. Outubro inicia mais um período de época baixa, com menor circulação de turistas e redução do consumo. Tradicionalmente é assim e neste momento tememos que possa atingir uma dimensão mais gravosa. O último trimestre de 2022 é um desafio gigantesco para a sustentabilidade dos negócios e manutenção de postos de trabalho. As margens das empresas estão esmagadas. Uma forte retração no consumo, a par da inflação galopante, subida dos custos de energia, combustíveis e juros, escassez de trabalhadores e outros constrangimentos, pode conduzir a despedimentos e encerramentos.
Teme que tudo isso reduza de tal modo o poder de compra que o setor vá sentir forte desaceleração?
É uma das principais preocupações que a AHRESP tem vindo a sinalizar. Em resultado dos dois anos de pandemia e no atual cenário macroeconómico, prevê-se uma diminuição do poder de compra das famílias com impactos diretos na retração do consumo junto das atividades do canal HORECA. A AHRESP reforçou a sua ação e apresentou um conjunto de propostas que gostaria de ver vertidas no OE2023 - e algumas foram, mas são insuficientes. Apresentámos um conjunto de propostas, principalmente ao nível da fiscalidade e financiamento, que consideramos determinantes para que as empresas possam proporcionar mais e melhores condições salariais, sem prejuízo da produtividade e competitividade. Entre elas, destaco a aplicação temporária da taxa reduzida de IVA na alimentação e bebidas; a efetiva redução dos impostos sobre rendimentos do trabalho; e a criação de benefícios fiscais ao investimento, tendo esta rubrica grande peso nestas empresas.
Em termos de dinâmica de negócios do setor que representa, o que antevê a AHRESP para 2023?
No início do ano, e ainda antes da invasão da Ucrânia, previa-se que 2022 poderia ser já o início da retoma a níveis pré-pandémicos e ao longo do ano, ainda que moderadamente confiantes, essa previsão foi-se consolidando. Julho e agosto foram disso testemunho. No entanto, perante as previsões de recessão, mesmo com Portugal a escapar aos números mais pessimistas, a realidade é que a atividade turística está exposta a um elevado grau de incerteza, devido ao abrandar das economias dos principais mercados emissores. A dinâmica de negócios das atividades da AHRESP está atravessada por este cenário de incerteza e muito exposta aos fatores externos. Convém olhar os diversos setores com a devida prudência, porque estamos altamente dependentes de decisões que não controlamos como a guerra na Ucrânia ou a subida dos juros de referência.
Com o Reino Unido a desacelerar e a Alemanha em recessão em 2023 será preciso encontrar novos mercados emissores? Quais?
Os principais mercados para Portugal são dominados por turistas europeus, que partilham o momento recessivo ou de abrandamento. A conquista de novos mercados é um investimento de médio prazo e dificilmente produz resultados de curto prazo que compensem as perdas geradas por diminuições bruscas da procura. Nesse sentido, uma palavra de reconhecimento ao Turismo de Portugal, e às Regiões de Turismo, que ao longo da última década trabalharam de forma incansável para consolidar os principais mercados emissores e atrair novos potenciais mercados de elevado valor acrescentado. Temos hoje o crescimento de EUA/Canadá, Brasil e Ásia, que se têm vindo a consolidar como mercados cada vez mais relevantes para o país e que devem beneficiar de mais investimento nos próximos anos. Mas no curto prazo, nem estes devem escapar à crise.
Em agosto, a variação do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) nos produtos energéticos foir de 24% e nos frescos de 15,4%; a subida de preços na restauração e similares foi de 4,5%, bem inferior aos aumentos nos custos.
O vosso inquérito referiu que 60% das empresas ponderam aumentar (novamente) os preços. É a única forma de acomodar a crise?
Seguramente não é a única. Mas as nossas margens estão esmagadas e as empresas não têm condições para continuar a acomodar a subida galopante dos custos de combustível, energia e matérias-primas (sobretudo alimentares). Em agosto, diz o INE, a variação do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) relativo aos produtos energéticos situou-se em 24% e nos produtos alimentares não transformados em 15,4%; a subida de preços na restauração e similares foi de 4,5%, manifestamente inferior aos aumentos nos custos energéticos e de produtos alimentares. É inevitável que uma parte significativa das empresas pondere, se não tiver opção, aumentar preços, mas esta medida não deve ser implementada isoladamente. Adicionalmente, consideramos que existe um conjunto variado de ações da responsabilidade do governo e que podem mitigar os impactos do contexto, assumindo a contínua promoção da qualidade e inovação dos serviços prestados (na restauração como no alojamento) em prol da crescente competitividade nacional e internacional do setor.
Em maio a AHRESP revelou que 86% das empresas de restauração e 51% de alojamento tinham subido preços 15% e agora admitem fazer nova atualização. De que subidas podemos estar a falar?
Os dados preliminares do inquérito que será divulgado em breve indicam que 37% das empresas da restauração e 40% no alojamento já os atualizaram. É o reflexo da insustentabilidade do aumento dos custos, sem mais capacidade de os acomodar nas margens.
Esperava redução de IVA nos serviços de alimentação e bebidas?
A aplicação temporária da taxa reduzida de IVA é uma "medida bandeira" da AHRESP, que a tem vindo a propor desde o início da pandemia. Estamos convencidos do mérito desta medida - e a HOTREC (Confederação Europeia de Hotéis, Restaurantes e Cafés) tem sinalizado este tema variadíssimas vezes, no sentido de sensibilizar os governos dos Estados-membros a aplicar a taxa reduzida. Este é também um tema do inquérito, é a medida que as empresas continuam a sinalizar como a mais relevante. Não conseguimos entender as razões da não consideração desta medida, até porque seria temporária, permitindo às empresas reter tesouraria, o que nesta fase seria crucial.
Há ainda a reposição do IVA nas bebidas para a taxa intermédia. A 1 de julho de 2016, a reposição só se aplicou aos serviços de alimentação e em parte do serviço de bebidas, nomeadamente as de cafetaria e água natural. Todo o restante serviço de bebidas permaneceu (e está) na taxa máxima, nomeadamente as bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos, néctares e águas gaseificadas ou adicionadas de gás carbónico ou outras substâncias. No momento em que ocorreu a reposição parcial, o governo criou um Grupo de Trabalho Interministerial, em que a AHRESP participava, para avaliar em três semestres (até junho de 2017) o impacto na criação de emprego por parte da restauração e similares. E comprovou-se que os empresários honraram o compromisso com o governo e criaram, de 2015 a 2017, 50 700 postos de trabalho. Em 2017, o setor liderou a criação de novo emprego na economia.
A digitalização e a eletrificação são desafios. É exemplo disso o Hotel 4.0. Que metas traça para a transição digital e energética?
A digitalização dos setores turísticos deixou de ser opção, é obrigação para qualquer empresa se manter competitiva e conectável. E isso trouxe a lume fragilidades e desafios. Não raras vezes, as empresas investem fortemente em tecnologia mas não têm recursos humanos qualificados para a utilizar e otimizar, resultando num uso incorreto e potencialmente negativo. É deste ponto de partida que a AHRESP, ciente da importância do tema e de uma lacuna que se identificava na capacitação digital do setor, assumiu ainda pré-pandemia a necessidade de realizar o projeto Hotel 4.0. Durante dois anos muito intensos e proveitosos, foram consultadas centenas de empresas e especialistas pelo país, realizados encontros e eventos para pensar num hotel "mais digital", mas também mais humano e sustentável. Sem nos comprometermos com metas, mas sempre contribuindo para a evolução qualitativa do setor, o Hotel 4.0 desenvolveu um roadmap para os processos de transição digital, disponibilizando um trajeto para as empresas. Este torna-se ainda mais relevante porque foi desenhado para ajudar as pequenas cadeias hoteleiras independentes e o pequeno empresário, que não tem o acesso a investimento e informação dos grandes grupos. Esperamos em breve ver os frutos desse trabalho com aplicações práticas.
Foi alcançado acordo na concertação para subir o salário mínimo a 760 euros. Que impacto terá?
A AHRESP nunca contestou os aumentos do salário mínimo, todavia não é possível distribuir sem criar condições para o aumento da riqueza através de ganhos de produtividade. Compreendemos e queremos fazer parte da valorização dos salários e das profissões, mas só o conseguimos com um quadro fiscal e contributivo ajustado.
Restaurantes e hotéis têm falta de mão de obra. A subida do salário mínimo e a taxa máxima para o IRS jovem chega para reter talento?
Há muito que a AHRESP identificou o problema e já propôs uma estratégia que compreende um vasto conjunto de medidas, muito para além das questões remuneratórias, que passam por formação, incentivos à procura ativa de emprego, valorização e dignificação das profissões para que sejam vistas como atrativas e consideradas como carreiras de futuro, etc. Também a imigração pode ser uma ajuda, desde que feita através de programas organizados e que proporcionem condições dignas de vida e trabalho. O governo firmou acordos nesta matéria com vários países e a lei foi recentemente alterada para facilitar a entrada de imigrantes e a procura de trabalho. Esperamos que rapidamente possam produzir resultados positivos. Por outro lado, é preciso desmistificar a questão salarial, até porque outros fatores são hoje tão ou mais valorizados pelos trabalhadores, como é o caso da conciliação com a vida pessoal e familiar ou das progressões na carreira. A AHRESP e os sindicatos negoceiam contratos coletivos, que podem ser uma ótima via para atingir estes objetivos.
Como pensam os associados da AHRESP contornar esta situação?
Os associados têm sentido bastante a escassez de trabalhadores, colocando muitos negócios em dificuldade e comprometendo a qualidade do serviço de excelência que nos têm caracterizado, que não deve ser beliscada. A AHRESP tem sido muito proativa nesta matéria, tendo até uma plataforma própria de recrutamento para aproximar a procura da oferta, apesar de alguns empresários terem as suas próprias estratégias de recrutamento, mais ou menos criativas. Seja como for, a época alta acabou e não sabemos os efeitos que vai produzir ao nível do emprego/desemprego.
Esperava mais do OE2023 em termos de redução do IRS?
Medidas que proporcionem mais rendimento disponível para as famílias são sempre benéficas, ainda mais no atual contexto. No entanto, a redução dos impostos sobre os rendimentos do trabalho também tem de acontecer do lado das empresas, particularmente ao nível da taxa social única (TSU). É urgente a revisão da taxa de 23,75% que as empresas têm de suportar de TSU sobre o salário bruto de cada trabalhador, para proporcionarem mais e melhores condições de trabalho.
A revisão dos escalões beneficia a mão de obra do setor?
Poderá proporcionar mais rendimento disponível, mas não é o tema de fundo. Temos um problema gravíssimo de falta de pessoas para trabalhar - não é só o turismo, é transversal a todas as áreas. E a remuneração pode ser a questão mais óbvia, mas não é a única, nem é certo que seja a mais importante. Há questões preocupantes que têm que ver com exigência e carga horária das nossas atividades que temos de resolver. Para nós, este é um ponto crucial. E quanto mais bem remuneradas as posições forem, mais atratividade.
O governo definiu finalmente a metodologia para o novo aeroporto com o PSD e só daqui a um ano dirá o local. É desperdiçar mais um ano? Isso vai prejudicar o setor?
A AHRESP não se opõe à realização de estudos minuciosos sobre grandes obras estruturais, mas é lamentável o arrastar de um processo estratégico que se prolonga há mais de 50 anos! A Confederação do Turismo de Portugal, de que fazemos parte, estima que mesmo que fosse possível ter a nova infraestrutura a funcionar em 2028 (Portela +1), os impactos do atraso serão no mínimo de 7 mil milhões de euros de potencial riqueza perdida e 28 mil empregos. No cenário extremo - em que a procura ultrapassa 2019 e a decisão continua adiada (Portela+1 ou novo aeroporto em 2034 e recuperação da procura em 2023) - "os impactos globais acumulados no Valor Acrescentado Bruto deverão atingir 21,4 mil milhões". É uma verdadeira oportunidade perdida para o desenvolvimento do nosso país. Neste sentido, reforçamos a necessidade de se resolver a que é uma das obras mais importantes para as futuras gerações em Portugal.
Qual a expectativa da AHRESP em relação à localização?
Não falamos de locais. Queremos é rápida decisão e concretização.
Este fim de semana o setor reúne-se em congresso sob o tema Sustentabilidade, Utopia ou Sobrevivência. No final, que mensagem gostaria que ficasse?
Eu diria que este é "O" Congresso. Surge num momento em que a incerteza se sobrepõe, mas a responsabilidade de todos é ainda maior, porque cruzar os braços não é opção. Essencialmente gostaria que na mente de todos ficasse bem patente a importância que as empresas, em particular as do Turismo, têm para a economia e a sociedade, produzindo a maior parte da riqueza e proporcionando emprego à esmagadora maioria das pessoas. E com esta constatação deveria assumir-se a necessidade de criar um ambiente mais favorável ao seu desenvolvimento. O sentimento que gostava que ficasse é de esperança, união, com todas as partes a assumirem responsabilidades e garantirem que farão tudo ao seu alcance para assegurar o bem comum. Acima de tudo importa que fique a ideia de que, entre utopia e sobrevivência, trabalhamos arduamente todos os dias porque somos responsáveis por centenas de empresas, responsáveis por milhares de famílias.
Congresso este fim de semana
A AHRESP reúne-se neste fim de semana em Coimbra para debater o momento desafiante da economia e dos setores que representa e antecipar caminhos para o futuro, sob o título "Sustentabilidade: utopia ou sobrevivência".
Partilhar
No Diário de Notícias dezenas de jornalistas trabalham todos os dias para fazer as notícias, as entrevistas, as reportagens e as análises que asseguram uma informação rigorosa aos leitores. E é assim há mais de 150 anos, pois somos o jornal nacional mais antigo. Para continuarmos a fazer este “serviço ao leitor“, como escreveu o nosso fundador em 1864, precisamos do seu apoio.
Assine aqui aquele que é o seu jornal