A Rússia e a Ucrânia que há em nós... e nos contratos públicos de Portugal
Rússia captou mais interesse, claro, por ser maior. Esteve no radar de iniciativas patrocinadas pelo Estado português, como viagens empresariais organizadas pela CAP para vender a marca Portugal. No portal Base, há vinho, mas também há papelada dos helicópteros Kamov.
A Rússia e a Ucrânia, dois países agora em guerra na sequência da agressão russa, não eram dos maiores parceiros comerciais de Portugal, mas, no entanto, eram clientes e, sobretudo, fornecedores de bens vitais para a economia portuguesa.
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Além disso, os dois mercados, agora totalmente encerrados, estiveram no radar de várias iniciativas patrocinadas pelo Estado português ao longo dos últimos anos, como viagens empresariais organizadas pela Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) para mostrar e vender produtos portugueses. Vinhos, por exemplo.
Os valores em jogo podem não ser elevados, mas nota-se um estreitamento de laços e uma aproximação gradual ao longo dos últimos anos, que ultrapassa a mera importação de gás da Rússia ou sementes alimentares da Ucrânia, mostra um levantamento feito pelo Dinheiro Vivo de contratos públicos celebrados e disponibilizados no portal Base (do governo português) nos últimos anos.
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A atração pela cultura também é importante. São muitos os convites de câmaras municipais a companhias de bailado russas para virem a Portugal interpretar clássicos do repertório nacional da Rússia, como se pode verificar no portal oficial da contratação pública.
Ao longo de anos e até eclodir a pandemia (que haveria de causar uma disrupção enorme nos fluxos de comércio normais entre Portugal e os dois países agora em guerra) Portugal sempre registou uma posição deficitária no comércio externo de mercadorias, importando mais da Rússia e da Ucrânia do que exportou.
No caso da Rússia, Portugal estava a expedir para lá um valor próximo e estável em termos anuais na ordem dos 200 milhões de euros em mercadorias, segundo dados do Ministério da Economia organizados a partir de informação do Instituto Nacional de Estatística (INE).
O mais importante era o segmento madeiras, carvão vegetal e cortiça que, em 2019, representou mais de um quinto das vendas totais portuguesas para a Rússia. A fileira alimentar e de bebidas alcoólicas (como vinho) era a segunda mais valiosa, representando mais de 12% das vendas totais para o mercado russo.
Já as importações eram substancialmente mais valiosas. Em 2019 eram cinco vezes mais do que o valor em importações. Nesse ano ainda dito "normal", antes da pandemia, Portugal comprou um total superior a mil milhões de euros em produtos à Rússia. Sem surpresa, mais de 70% do valor faturado pelos russos era em produtos energéticos (refinados de petróleo e gás), indicam os mesmos dados do Gabinete de Estratégia e Estudos do ministério liderado por Pedro Siza Vieira.
A ligação comercial à Ucrânia era menos profunda mas, ainda assim, estava em expansão. Antes da pandemia, Portugal exportou para o mercado ucraniano mais de 31 milhões de euros. Era um mercado em expansão. Quase metade desse valor foi no segmento "máquinas, aparelhos e material elétrico".
Tal como no caso da relação com a Rússia, a balança comercial portuguesa também era altamente deficitária. Da Ucrânia estavam a ser importados anualmente quase 250 milhões de euros. Quase 80% foram de mercadorias como "oleaginosas, gorduras e óleos" e outros produtos agroalimentares, como sementes. O caso do girassol é um dos mais relevantes.

Quebra Nozes. Russian Theatre Ballet. 13/11/2001
© Leonel de Castro, Arquivo DN/GMG
Pequenos contratos e aproximações culturais
A última iniciativa no mercado russo publicitada no portal Base é relativamente recente. No início de dezembro a Comissão Vitivinícola da Bairrada adjudicou uma campanha de "divulgação dos vinhos da Bairrada e formação no mercado russo" a uma empresa de publicidade e organização de eventos chamada Opal. O projeto durou três meses. O valor do contrato foi de 28,4 mil euros.
Em agosto do ano passado, o Estado Maior da Força Aérea precisou de comprar "contentores para armazenagem de motores e caixas de transmissão principais da frota Ka-32A11BC".
São os famosos helicópteros Kamov usados nos combates aos incêndios. Com a duração de três meses, o contrato tem um valor de 72,5 mil euros e foi celebrado com a Joint Stock Company Russian Helicopters.
Em maio, a frota de helicópteros Kamov também precisou de uma certificação "documental". Assim, a Força Aérea Portuguesa adjudicou à referida Joint Stock Company Russian Helicopters a prestação de um serviço de "verificação documental da frota Ka-32A11BC". O contrato de dois meses significou uma despesa de 73 mil euros.
Ballet clássico pelos caminhos de Portugal
Mas nem tudo são meios aéreos de combate a fogos. A cultura russa também foi bastante procurada, sobretudo por municípios que organizaram eventos.
No início de dezembro de 2019, altura do Natal, a Câmara Municipal de Lagoa, Algarve, contratou através de uma empresa de agenciamento de espetáculos (Classic Stage) a atuação da Companhia de Ballet Clássico Russa. Foi o espetáculo "O Quebra-nozes" no Auditório Carlos do Carmo. Custou 17 mil euros ao município.
Em 2017, a câmara de Lagoa também já convidara esta mesma companhia de bailado, mas para um espetáculo diferente: "Giselle". Nessa altura, custou cerca de 8 mil euros e a empresa que tratou de tudo foi a mesma Classic Stage.
Aliás, esta companhia russa deve ser bem conhecida de muitos em Portugal. Desde 2011 que vem amiúde a Portugal. Além de Lagoa, este coletivo de artistas russos já atuou em Elvas, Vila Real, Beja e Vila do Conde. Sempre pela mão da empresa Classic Stage.
O preço de cada atuação variou entre 7 mil e 17 mil euros. Dependendo do ano, dos locais e do espetáculo apresentado. A companhia tem no seu repertório "O Quebra-Nozes", "Giselle", "A Bela Adormecida", "O Lago dos Cisnes", entre outros clássicos do ballet.
Agricultura portuguesa na Rússia
A Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) esteve muito ativa em 2017 e organizou várias ações promocionais no mercado russo. Em 2019, também.
São iniciativas organizadas para promover a marca Portugal em vários produtos de relevo. O vinho português é um deles. Aqui a CAP faz e organiza, mas é o Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) que paga a organização. Daí ser um contrato público.
Segundo o portal Base, a CAP inscreveu, pelo menos, quatro iniciativas para "aquisição de materiais promocionais em eventos na Federação Russa em 2017".
A Opal Publicidade ganhou um negócio de 31 mil euros. A empresa Argulógis faturou outro serviço parecido por 38,3 mil euros. Tudo em 2017.
Ainda nesse ano, a Porlogis - Trânsitos e Logística ganhou outro trabalho contratado pela CAP cujo destino também foi o mercado russo. Valor: 17,5 mil euros, segundo a informação oficial publicada.
Em 2019, a CAP adjudicou à empresa Consolidador "viagens e alojamento de participantes em eventos na Federação Russa" pela quantia de 43,2 mil euros durante dois meses e meio.
Menos ligações à Ucrânia
As ligações e missões à Ucrânia são menos e mais modestas, mas o portal Base tem alguns exemplos.
Boa parte são iniciativas diretas do Estado. O IEFP (instituto português dos centros de emprego) contratou com a empresa de trabalho temporário Egor, em março deste ano e por três meses, um "colaborador fluente em ucraniano" para o centro de contacto do IEFP.
Esta iniciativa insere-se já na resposta à crise de refugiados ucranianos provocada pela guerra da Rússia contra a Ucrânia. O valor adjudicado ronda os 6,6 mil euros.
Anos antes, o município de Alenquer apoiou a comunidade ucraniana local "no âmbito do Orçamento Participativo de 2016" com o "fornecimento de janelas e tintas para o Centro Cultural Ucraniano. Ganhou a empresa Mundo Prioritário. Este contributo para as obras teve a duração de um mês e foi contratado por 5,6 mil euros.
Em outubro de 2012, a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) enviou um representante a Kiev, durante três dias, para participar num encontro no âmbito do PICS - Pharmaceutical Inspection Co-operation Scheme.
Foi uma ação em coordenação com a Comissão Europeia que visou "a verificação da conformidade dos medicamentos com as normas e padrões internacionais de qualidade". A agência de viagens Top Atlântico ganhou o contrato da viagem, cujo valor publicitado no portal Base foi de 1354 euros.
jornalista do Dinheiro Vivo