2023, novo ano de cortes: no poder de compra, défice, crescimento, gás, na poupança, na comida

De um lado, os cortes, do outro, tudo aumenta. As taxas de juro sobem, há mais encargos com prestações bancárias, inflação muito alta, combustíveis mais caros, eventualmente mais desemprego, dificuldades no orçamento disponível e um caminho longo e estreito até ao fim do mês.

As famílias portuguesas e todas as outras Europa fora sabem: o ano de 2023 será marcado por taxas de juro a subir, mais encargos com prestações bancárias, inflação muito alta, combustíveis mais caros, eventualmente mais desemprego, mais dificuldades no orçamento disponível e um caminho bem mais longo e estreito até chegar ao fim do mês.

Mas o panorama do próximo ano pode ser descrito ao contrário. Vai ser um ano de muitos cortes e quebras.

O rendimento disponível e o poder de compra da maioria das pessoas devem baixar por causa da inflação e do custo da dívida, num cenário em que a maioria dos salários não deve acompanhar devido ao ambiente de crise e de incerteza.

A poupança também vai cair (já está, aliás) de modo a financiar as despesas regulares e rotineiras em consumos.

Nos patamares mais baixos, entre os menos ricos ou mais pobres, a parcela dedicada à despesa de consumo relativa a bens essenciais vai disparar e há já sinais de que para muita gente o dinheiro já não chega até ao final do mês. Em Portugal, há indicadores oficiais que apontam para cortes na despesa com comida, por exemplo.

Alguns analistas temem que, em certos países europeus, mais dependentes do gás russo e ainda sem capacidade de o substituir, possam ocorrer cortes de gás e de outros combustíveis à medida que a guerra da Rússia contra a Ucrânia se enraíza e agudiza a destruição a toda a sua volta.

O próximo inverno, o que começa em 2023, também deve ser mais agreste do que o atual. Para se ter uma ideia, o Banco de Portugal fez um levantamento dos preços praticados nos mercados internacionais do gás e em 2022 o custo da matéria-prima quase triplicou face a 2021. E em 2023 vai continuar a subir, ainda que mais devagar.

Além disso, a confiança dos empresários e das famílias vai regredir ainda mais. O investimento privado pode ser arrastado e sofrer com a alta incerteza e as sombras que pairam sobre as economias.

Mas na Europa a ordem é para continuar a cortar no défice público e na dívida, e depressa. O ministro das Finanças português, Fernando Medina, diz que o caminho só pode ser esse.

Na contagem decrescente para o Natal, o primeiro-ministro (PM), António Costa, reforçou a ideia. Défice e dívida são para cortar. "É muito importante que Portugal saia deste ano com um défice melhor e uma dívida menor do que as melhores expectativas. Chama-se a isto gerir as contas públicas com prudência", declarou o PM.

Assim, continuou, "vamos poder encarar a incerteza do próximo ano, sabendo que estaremos menos condicionados do que estaríamos se este ano não tivéssemos controlado o défice, ou se a dívida tivesse continuado a aumentar".

Costa recuou então no tempo, pouco mais de uma década, para dramatizar a exigência que está novamente à espreita em 2023. "Não nos esquecemos do que é estarmos expostos aos mercados. O preço que o país pagou foi muito levado e não queremos repetir."

Foi em 2011, no tempo da troika e do governo PSD-CDS, que herdou do governo PS de José Sócrates contas públicas totalmente arruinadas, que a taxa de juro das obrigações do tesouro (dívida de longo prazo) galgou os 10%, tendo havido uma recidiva enorme no início de 2012 (a taxa portuguesa superou então os 17%) com a crise da Zona Euro, em que vários países foram atacados pelos especuladores dos mercados.

A equipa de analistas da Economist Intelligence Unit (EIU) que segue Portugal diz que a maioria absoluta conquistada pelo Partido Socialista (PS), em janeiro de 2022, vai permitir trazer alguma estabilidade em 2023 e nos anos seguintes. Uma forma de compensar, ainda que parcialmente, as muitas outras adversidades e incertezas que já se vislumbram no horizonte.

Segundo a equipa da EIU, a maioria absoluta "garantirá a estabilidade política nos próximos quatro anos". Os peritos acreditam que "a prudência orçamental continuará a ser prioridade" e que o governo do PS "continuará a tentar reduzir a dívida pública, que equivale agora a 115% do produto interno bruto (PIB) e está entre as mais altas da União Europeia (UE)".

Em 2022, a economia até cresceu bem, inflacionada pela subida aguda dos preços e por setores como o turismo, mas o maná não vai continuar a fluir assim em 2023. Nem de longe. "Em 2022, o PIB real português voltou ao nível de 2019, com a economia a registar uma das taxas de crescimento mais fortes da UE devido à recuperação do turismo (que representa cerca de 17% do total da economia)", diz a unidade baseada em Londres.

"No entanto, condições de política monetária mais rígidas por parte do Banco Central Europeu (BCE), uma procura externa mais moderada e a inflação alta farão com que a economia estagne em 2023", acrescentam os ingleses.

Segundo o Gabinete de Estudos do BPI, depois de crescer de forma retumbante a um ritmo de 6,8% este ano, muito apoiada na inflação enorme e repentina, a economia portuguesa deve arrefecer acentuadamente, crescendo apenas 1,5% em 2023, parafraseando as previsões mais recentes, do Banco de Portugal (BdP).

"A elevada incerteza a nível global, a perda de poder de compra, custos de financiamento mais elevados e procura externa mais débil são os fatores por trás da forte desaceleração estimada para 2023, afetando principalmente o consumo privado", diz a equipa de análise económica do BPI.

"Quanto à inflação, será mais alta ao longo do período para o qual são apresentadas previsões, aproximando-se do objetivo dos 2% apenas em 2025", mas tendo em conta "o elevado grau de incerteza e os riscos maioritariamente desfavoráveis, o BdP traça um cenário adverso para o caso de materialização destes riscos".

O BPI releva que o banco central liderado por Mário Centeno assume, nesse cenário pior, "um corte total no fornecimento de gás e petróleo à Europa por parte da Rússia, uma substituição mais lenta por outras fontes de energia e um inverno mais frio do que o habitual".

Neste cenário, Portugal não escaparia a uma recessão. "Contrairá 0,4% em 2023 e o crescimento em 2024 será muito moderado, cerca de 0,3%. Por sua vez a inflação, situar-se-ia em níveis mais elevados: 8% em 2023", acrescentam os economistas portugueses.

Da grande moderação à grande inflação

Neste começo de 2023, uma das perguntas que continuarão a ser repetidamente feitas é: quanto mais inflação e subidas de taxas de juro virão aí?

Depois de vários anos de crescimento moderado e inflação muito baixa (um ciclo que alguns chamam de grande moderação), a situação hoje não está nada favorável. Vários países encontram-se já em recessão ou a caminho dela; e a inflação atingiu patamares destrutivos.

Na reta final de 2022, na última reunião de taxas de juro do BCE, Christine Lagarde surpreendeu a maior parte dos analistas e da população europeia com um discurso muito mais agressivo e intolerante face à cavalgada dos preços, entrando assim num caminho mais longo e árduo de aumentos de taxas de juro de modo a deter a inflação. Alguns analistas dizem que o BCE acaba de entrar em "velocidade de cruzeiro".

"Esperamos que o Banco Central Europeu aumente as taxas mais 150 pontos base [1,5 pontos percentuais] em 2023", estima a EIU.

Ou seja, este grupo de economistas vê a taxa de juro central principal da Zona Euro, a que comanda todas as outras taxas de juro (como as Euribor), nos 4% em 2014. Será o nível mais elevado em mais de duas décadas. É preciso recuar a junho de 2000 para encontrar um valor maior. Atualmente, a taxa central do BCE está em 2,5%.

"À medida que as taxas de juro mais altas começam a ter impacto na economia real, a confiança dos consumidores e das empresas permanecerá sob pressão. A alegria sazonal", que marca o fim do ano com o Natal e a aproximação do Ano Novo, uma altura em que a despesa de consumo costuma subir, vai contrastar com "as perspetivas bem menos alegres relativas a 2023", acrescenta a EIU.

Numa entrevista recente à RTP, Mário Centeno deu a entender que esta subida nos juros pode não ser assim tão violenta na medida. Pelos vistos, há um ponto em que o BCE tem de começar a contar com os efeitos recessivos do aperto monetário nas suas decisões de agravamento dos juros.

Centeno disse que mais aumentos de 0,75 pontos na taxa diretora do BCE, como aconteceu em dezembro, "são altamente improváveis". E questionado sobre se a taxa de juro da Zona Euro pode atingir 4,4%, como a taxa da Reserva Federal dos Estados Unidos, o governador atirou que a sua "expectativa é que isso não vai acontecer" e que "o teto que o mercado tem neste momento são 3%, 3,5%".

O research (gabinete de estudos) do BPI observa que "foi surpreendente o tom exibido pelo BCE, tanto na declaração oficial como durante a conferência de imprensa da presidente Christine Lagarde, que foi claramente mais hawkish [agressiva e em prol da subida de taxas] do que em outubro".

"Se nessa altura Lagarde concluiu que foram feitos progressos substanciais no aperto monetário, agora aponta que as taxas terão ainda de aumentar significativamente, a um ritmo sustentado e até atingirem níveis suficientemente restritivos".

E, para estes analistas, "Lagarde esteve perto de traduzir esta mensagem em números concretos. Disse explicitamente que significativo e sustentado encaixa bem com aumentos de 0,5 pontos percentuais ao longo de um período de tempo longo".

De acordo com o cenário central (menos mau) aprovado por Mário Centeno, a taxa Euribor média a três meses deve saltar de 0,4% em 2022 para 2,9% em 2023. A ser assim, a Euribor vai aumentar sete vezes no ano que vem, o que se traduzirá num aperto muito grande para muitas famílias, sobretudo as mais endividadas e com menos recursos.

No caso de Portugal, serão sobretudo as de menor rendimento (os dois segmentos ou quintis mais pobres), as que ganham menos e que mais dependem do rendimento que ganham para suprir necessidades básicas. Para as famílias com crédito bancário indexado a taxas variáveis, Centeno assume que há um problema, de facto.

Disse que "até rendimentos médios anuais por adulto de 26 mil euros (até ao segundo quintil) a subida do rendimento em 2022-23 é inferior aos aumentos nas despesas em bens essenciais e no serviço da dívida". Assim, as perdas [destes dois quintis mais pobres, os dois grupos de famílias mais pobres] podem chegar a "2,9% e 3,8% do rendimento disponível de 2021".

Por muitas famílias estarem no fio da navalha, é preciso "monitorizar" regularmente o que está a acontecer, pediu o governador.

Dependência energética e a dívida que dura

A exposição ao preço da energia é outro problema. Além de ser o combustível principal nesta nova era de inflação alta e nunca vista nos últimos 30 anos, a situação tem margem para piorar antes de melhorar. E mesmo longe da vulnerabilidade que afeta economias como as do Leste europeu ou a Alemanha, Portugal tem um caminho atribulado pela frente, em 2023.

Samia Benkirane e Dietmar Hornung, analistas da agência de rating Moody"s que seguem o país, dizem que "a força creditícia de Portugal [a força da nota do crédito soberano] é conferida pelo grau de diversificação da economia, pelo nível relativamente elevado de riqueza e pela qualidade das instituições".

No entanto, "o rating de Portugal é fortemente influenciado pelo seu elevado endividamento devido às limitações que impõe à capacidade do país na absorção de choques".

"Embora a crise energética da Europa e a desaceleração económica mais generalizada conduzam a um enfraquecimento conjuntural do crescimento em Portugal, não esperamos que os fundamentos da força económica sejam prejudicados por este choque em curso", começam por referir os analistas no diagnóstico sobre a economia e as contas públicas portuguesas.

Mas "o ritmo de redução do peso da dívida na sequência da invasão russa da Ucrânia é uma importante consideração em termos de rating". Rating é a nota que a agência dá à qualidade do crédito e à capacidade do país para pagar as suas dívidas.

"O nosso cenário de base assume que as tendências orçamentais continuarão, provavelmente, a ser positivas, mas as taxas de juro mais elevadas, as pressões inflacionistas e um ambiente externo de maior pressão reduzirão o ritmo do crescimento económico e, portanto, o ritmo de declínio da dívida", avisam na Moody"s.

A equipa da Moody's observa ainda que Portugal continua a ter "desequilíbrios macroeconómicos persistentes como o elevado endividamento do setor privado e público e uma posição de investimento internacional negativa, bem como debilidades persistentes no setor bancário".

No cenário de base avançado por Centeno pouco antes do Natal de 2022, "estima-se um crescimento anual do emprego de 2,3% e no período 2023-25 este apresenta um crescimento baixo, em torno de 0,1%, em termos médios anuais".

O governador diz que a economia está quase em pleno emprego, isto é, só com mais investimento e inovação é que pode sair deste impasse, de uma letargia no emprego que, se prolongada e conjugada com crescimento anémico, deve redundar em mais desemprego.

A Moody"s acena também que "as perspetivas de Portugal, e em última análise as suas classificações da dívida, poderiam ser melhoradas se as autoridades demonstrassem um historial de implementação de mais reformas macroeconómicas, incluindo no contexto dos fundos Próxima Geração UE (NGEU), que resultarão em melhorias económicas e orçamentais".

Por exemplo, mais produtividade aumenta o potencial de crescimento e isso é "uma pressão ascendente sobre o rating".

Reduzir a dívida e resolver "as vulnerabilidades remanescentes no setor bancário" e os casos de malparado também seriam bons contributos.

No entanto, continua a agência, há fatores que podem levar a cortes no rating e a subidas nas taxas de juro muito para além do que ditam as políticas do BCE. Por exemplo, se a redução do peso da dívida não se concretizar, se a dívida até aumentar por causa de passivos contingentes que se materializam.

Ou se o governo enveredar por políticas "menos prudentes", por "mais despesa", se o crescimento da economia "for mais baixo do que as nossas previsões atuais" ou se "concluíssemos que os fundos da União Europeia não conseguiram impulsionar o crescimento português". Isso seria mau para o país e haveria penalização, alerta a avaliadora externa que classifica o crédito do país.

Luís Reis Ribeiro é jornalista do Dinheiro Vivo

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