Paulo Gonçalves. O adeus ao piloto que não deixava ninguém para trás

Piloto português de 40 anos morreu neste domingo durante a sétima etapa do Dakar. Muito respeitado por todos no meio, além das suas qualidades desportivas ficou conhecido pelas constantes atitudes de grande desportivismo no auxílio aos colegas em dificuldades.

Há um código de ética entre os pilotos do Dakar que (quase) todos cumprem à risca - nunca deixar um companheiro/amigo em dificuldades para trás. Paulo Gonçalves era um desses pilotos de causas, um aventureiro, um guerreiro, que ao longo das suas 13 participações no rali deu vários exemplos de camaradagem. Perseguiu sempre o sonho de um dia vencer a mais dura prova de todo-o-terreno do mundo. Mas neste domingo, aos 40 anos, perdeu a vida após uma queda quando seguia a alta velocidade na sétima etapa, que ligava Riade e Wadi-al Dawasir, na Arábia Saudita.

Quando a equipa médica chegou ao local, às 10.16, oito minutos depois de ter sido dado o alerta, Paulo Gonçalves já estaria inconsciente e em paragem cardiorrespiratória. Foi transportado de helicóptero para o Layla Hospital, onde a morte foi confirmada. "O helicóptero com a equipa médica chegou perto do motociclista às 10.16 e encontrou-o inconsciente depois de ter sofrido uma paragem cardíaca. Após esforços para o ressuscitar no local, foi levado para o Layla Hospital, onde infelizmente foi declarado o óbito", escreveu a equipa do Dakar na sua página na internet.

"É uma grande consternação, uma tristeza imensa. Quando morre um piloto já ficamos abatidos, agora tratando-se de um português e que ainda por cima eu conhecia bem... deram-me a notícia logo pela manhã, estava a sair do avião que me trouxe de Riade. Sabem que eu sou português.., a morte do Paulo é grande choque. É muito complicado recebermos uma notícia destas no meio do deserto", lamentou ao DN Pedro Melvill de Araújo, diretor do Rali da Madeira, que está no Dakar como comissário desportivo da Federação Internacional do Automóvel (FIA), na qualidade de presidente do Colégio de Comissários Desportivos, que recorda um piloto corretíssimo e uma referência para todos na modalidade.

"Ele era muito respeitado por todos os pilotos e era sempre um candidato à vitória nas motos. Era um piloto de causas, que mesmo sabendo das penalizações ajudava sempre os colegas em dificuldades. E foram muitos os exemplos ao longo das várias edições do Dakar. Infelizmente não conseguiu cumprir o sonho que sempre perseguiu, o de vencer um Dakar. Mas a sua lenda vai ficar para sempre. Será para sempre recordado como um piloto de nível mundial", acrescentou.

De acordo com Pedro Melvill de Araújo, a queda terá sido causada pelo terreno acidentado: "Não é nada de oficial ainda, mas o que se diz por aqui é que terá sido pela forma do terreno, um declive de areia ou algo do género. Foi uma queda muito forte, a alta velocidade, num terreno propício a isso. Ele terá perdido controlo da moto."

Jorge Viegas, presidente da Federação Internacional de Motociclismo (FIM), soube da notícia logo pela manhã, através de um telefonema de David Castera, o diretor da prova. "Disse-me que o encontraram já morto. Foi em reta, o que é estranho. Não sabem o que aconteceu. Não posso estar mais triste. Era um piloto que eu adorava e que conhecia desde pequenino. Era um exemplo como piloto e como pessoa."

Foram várias as vezes em que Paulo Gonçalves, natural de Esposende, parou a sua moto para dar auxílio a outros pilotos que sofreram quedas. Um dos maiores exemplos foi na edição de 2016 do Dakar, quando assistiu Matthias Walkner. O austríaco era um dos favoritos à vitória, mas nem isso impediu o português de auxiliar o piloto da KTM. Paulo Gonçalves liderava a prova, nesse dia 9 de janeiro, mas mesmo assim optou por parar 10 minutos e 53 segundos. Não venceu o Dakar, mas o gesto valeu-lhe o Prémio Ética no Desporto, do Instituto Português do Desporto e Juventude.

"No Dakar o risco está sempre à espreita. Não sou um herói, sou um ser humano com respeito pelos outros. A nossa vida vale mais do que qualquer vitória, sem ela não vencemos. O espírito do Dakar é isso mesmo. Passamos muitas horas sozinhos, muitas vezes no deserto. Umas vezes ajudamos, noutras somos ajudados", disse na altura ao DN.

Neste domingo, Matthias Walkner fez questão de recordar esse gesto de desportivismo do português, numa mensagem deixada nas redes sociais em que surge ao lado de Paulo Gonçalves numa cerimónia de pódio. "É exatamente assim que te vou lembrar. RIP Campeão. Isto é horrível. Os resultados e a luta por um lugar no topo, de repente, não interessam nada! O Paulo era um veterano aqui. Ele parou e ajudou-me quando tive um acidente em 2016, era um atleta incrivelmente simpático, prestável e justo", escreveu o austríaco na rede social Facebook, lembrando que há alguns dias o português lhe disse que esta "seria a sua última temporada". Walkner termina a publicação com a frase: "É tão trágico, que nem sei o que dizer."

25 pilotos morreram em competição no Dakar

Antes, na edição de 2012, já tinha tido um gesto semelhante, quando parou para ajudar Cyril Despres a tirar a moto de um lamaçal, durante a oitava etapa do Dakar. Uma ajuda que lhe saiu caro, pois ele próprio ficou com a moto enterrada na lama e, num gesto pouco desportivo, o francês arrancou e não ajudou Gonçalves, que precisou do auxílio de alguns espectadores para tirar a moto do local. Acabou a etapa na 15.ª posição e perdeu mais de 15 minutos para o francês.

"Voltaria a fazer o mesmo, acho que não fiz nada heroico. Foi uma coisa normalíssima dentro do que é o espírito do Dakar, a entreajuda. Percebo que muitas vezes um piloto, com a pressão da corrida e o sangue a ferver, não consiga ter a atitude certa e não me cabe julgar uma atitude mais irrefletida de um colega. Espero que o espírito de entreajuda se mantenha porque os motards estão muito sozinhos durante a prova", comentou na altura.

Em 2014, depois de ser forçado a desistir após a sua moto se ter incendiado, Paulo Gonçalves optou por não regressar a casa e ficou na prova a dar auxílio aos colegas, em mais uma manifestação de grande desportivismo. "Se tivermos um acidente ou uma lesão temos de regressar. No meu caso foi diferente, a minha corrida acabou bastante cedo. Depois de pensar, achei que em casa não teria nenhuma utilidade. Poderia pôr os meus conhecimentos ao serviço dos outros. Entendo mais facilmente outro piloto do que um membro da equipa e optei por ficar e ajudar", contou numa entrevista ao jornal i.

Paulo Gonçalves foi o 25.º concorrente a morrer em prova nas 42 edições do Rali Dakar, o último tinha sido o motard polaco Michal Hernik, em 2015. A morte do português causou uma enorme consternação no mundo do desporto, e não só, e levou Stephane Peterhansel, conhecido como Senhor Dakar, a questionar se vale a pena o risco. "De cada vez [que morre alguém], surge a mesma questão. O que é que estamos a fazer aqui? Para quê? É realmente necessário competir? Não é a vida algo mais importante? Era alguém que conhecia os riscos, era a sua paixão. Isso pode atenuar um pouco o que sentimos. Ele partiu a fazer o que o apaixonava, o que é um pequeno consolo, mas é difícil de engolir de cada vez que acontece", questionou o piloto.

Uma das imagens mais marcantes deste domingo mostrou Joaquim Rodrigues Jr., cunhado de Paulo Gonçalves que também participa neste Dakar em motos (eram colegas de equipa), sozinho no meio do deserto depois de ter recebido a notícia da morte do seu familiar. Joaquim Rodrigues também sofreu a 9 de janeiro uma queda aparatosa, mas conseguiu continuar em prova.

As quedas que não o derrubaram

Paulo Gonçalves sofreu, ao longo da sua carreira, várias quedas. Em 2016, durante a 11.ª etapa do Dakar, entre La Rioja e San Juan, foi transportado inconsciente para o hospital com um traumatismo craniano. Uma prova amaldiçoada para o piloto da Hero, na altura a correr pela Honda, que, em três dias, teve uma avaria, sofreu uma penalização na pontuação e protagonizou uma queda aparatosa, deixando-o fora da competição. O impacto foi tal que Paulo Gonçalves não tinha memória alguma deste momento.

"Terminei da pior forma este Dakar 2016. Ao que parece, tive uma queda forte. A verdade é que não me recordo do que se passou: disseram-me que consegui seguir com a moto até uma zona de público e ambulâncias [onde perdeu os sentidos e acabou por ser resgatado]", explicaria o motociclista, na altura com 36 anos.

Dois anos antes, já tinha sido obrigado a abandonar o Dakar, depois de a sua Honda CRF 450 se ter incendiado no decorrer da quinta etapa, entre Chilecito e Tucuman, na Argentina. Seguia no 19.º lugar na classificação geral, quando, na mesma semana, perdeu duas horas na competição para ajudar o colega Rúben Faria, vitima de uma queda.

A oficina do pai e a alcunha Speedy Gonçalves

Chamavam-lhe Speedy Gonçalves, uma alcunha com quase 20 anos que surgiu por brincadeira pela destreza e velocidade com que desde muito novo conduzia motos, numa comparação com o desenho animado do ratinho mexicano.

O bichinho das motos surgiu muito cedo e aos 11 anos já competia no motocrosse. Culpa do pai, que tinha um oficina de veículos de duas rodas. Em 2007 passou de amador para profissional e começou logo a colecionar títulos por todas as modalidades e categorias que foi passando.

Foi no motocrosse e no supercrosse que conheceu os primeiros sucessos, com vários títulos nacionais conquistados, sobretudo frente àquele que foi, na altura, um dos seus principais rivais, Joaquim Rodrigues Jr., que haveria de se tornar seu cunhado.

No início da década de 2000, acumulou o motocrosse com o enduro, onde conquistou quatro títulos na categoria e um absoluto. Apesar da baixa estatura (1.68 metros) comparado com os adversários, compensava com agilidade e capacidade atlética.

A partida do Dakar em Lisboa, em 2006, levou à passagem para as grandes maratonas de todo-o-terreno. E logo nessa primeira edição mostrou a sua fibra. Uma queda na primeira etapa em Marrocos danificou bastante a moto, passou grande parte da madrugada a tentar segurar as peças para conseguir chegar ao acampamento. "Vim com a moto presa por fitas plásticas e fita adesiva", contaria mais tarde.

Nesses dois anos em que a prova passou por território português, os resultados não foram brilhantes (25.º e 23.º), mas o gosto pelas provas de todo-o-terreno ficou, e foi acumulando experiência, até que se mostrou já na América do Sul. Conseguiu o primeiro êxito na prova em 2011, vencendo uma especial antes de abandonar na oitava etapa.

A experiência acumulada começou a dar frutos e, em 2013, tornou-se o segundo piloto português a sagrar-se campeão mundial de ralis de cross-country, depois de Hélder Rodrigues o ter conseguido em 2011. Em 2015, conseguiu o seu melhor resultado no Dakar, ao terminar em segundo, com uma especial ganha, apenas atrás do espanhol Marc Coma.

Os anos seguintes não foram felizes: em 2016, abandonou à 11.ª etapa, quando já contava com uma vitória em especiais, terminou em sexto em 2017, depois de ter liderado metade da corrida, e, em 2018, nem sequer chegou a arrancar devido a uma lesão. Em 2019, abandonou na quinta etapa, após uma violenta queda.

Apesar do sucesso na carreira, mostrou-se sempre uma pessoa humilde e acessível, dizem os amigos mais chegados. Gostava de praticar jet ski e, sobretudo, jogar às cartas com os amigos.

Benfiquista assumido, chegou a ser patrocinado pelo clube do coração, com direito a apresentação no Estádio da Luz aos adeptos encarnados.

Em 2019, trocou a Honda pela Hero, na qual encontrou o seu cunhado e grande rival de início de carreira. Era casado e deixou dois filhos menores.

"É fantástico poder fazer parte da história, dos três capítulos do Dakar. Corri duas vezes em África, 11 vezes na América do Sul e agora na Arábia Saudita. Vai ser certamente uma grande experiência. Penso que 98% dos pilotos nunca correram aqui antes, por isso vai ser um grande desafio para toda a gente. É um novo capítulo para mim depois de cinco anos maravilhosos na Honda. Ganhei várias corridas, alcancei o título mundial. Consegui também terminar o Dakar no segundo lugar e ganhei algumas etapas. Agora mudei-me para a Hero Motorsports e estou ansioso com este novo desafio. Às vezes é necessário fazer mudanças talvez para encontrar uma motivação extra. Estou feliz até agora", escreveu Paulo Gonçalves na página oficial do Dakar antes da participação deste ano na prova.

Do piscar de olho a António Maio às condolências de Marcelo

Ninguém ficou indiferente à morte de Paulo Gonçalves. Em depoimentos, mas sobretudo nas redes sociais, foram centenas as mensagens de condolências. Uma das mais marcantes surgiu através do Facebook de António Maio, piloto da Yamaha que passou pelo local do acidente e revelou ter ficado "em choque" quando chegou ao acampamento.

"Vou tentar apagar da minha memória tudo o que vi e o que se passou depois, nesta que foi a etapa mais difícil da minha vida. É com aquele piscar de olho e o desejo de 'boa sorte' uns segundos antes de partires para a 7.ª etapa que te vou recordar para sempre! Um verdadeiro Homem, um ser humano fantástico e um piloto único! Obrigado Paulo por seres uma das minhas referências", escreveu na rede social, acompanhando o texto com uma fotografia com Paulo Gonçalves, entre outros pilotos, num dia de treinos.

Numa note no site da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa lembrou o piloto que "morreu a tentar alcançar o sonho de vencer uma das mais duras e perigosas provas de rally do mundo, na qual foi sempre um digníssimo representante de Portugal, chegando a alcançar o segundo o lugar em 2015".

Já António Costa escreveu no Twitter: "Lamento profundamente a morte do motociclista Paulo Gonçalves no Dakar 2020. Um atleta de exceção, Paulo Gonçalves será lembrado como um exemplo de ética, altruísmo e sã competição. Foi Prémio Nacional de Ética no Desporto de 2016. As mais sentidas condolências à sua família."

O governo, através do ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, e do secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Rebelo, recordou que "o percurso do motociclista português na alta competição ficou marcado por colocar sempre na frente da sua ação os valores da ajuda, do companheirismo e da sã competição, um atleta de exceção, um dos grandes campeões da história do desporto motorizado, um exemplo de dedicação e de altruísmo".

"Não há palavras que possam descrever aquilo que sinto. Por detrás destas competições estão as nossas vidas e sempre com um enorme sofrimento. Mas, hoje, esta realidade dói mais e abala-nos a todos. Perdemos um grande amigo, um excelente ser humano e um piloto incrível", declarou Mário Patrão (KTM), um dos portugueses em prova na categoria das motos e que disputava com Paulo Gonçalves o estatuto de piloto português mais titulado de sempre.

Outra mensagem emotiva surgiu no Instagram do piloto argentino Kevin Benavides, amigo de Paulo Gonçalves e vencedor da etapa de domingo, que revelou que parou no local do acidente, mas que apenas percebeu de quem se tratava mais tarde e não conseguiu parar de chorar.

"Não tenho palavras para explicar a tristeza que sinto. Hoje, quando cheguei ao local do acidente, detive-me e parei ao lado do Toby [Price], já lá estavam os médicos e não me aproximei. Não percebi que eras tu o piloto que estava no chão, a uns dez metros de mim, pensei que era o teu companheiro de equipa, porque, ao sair de trás, perdi a ordem", escreveu Benavides.

O piloto argentino, que viria a ganhar a etapa, depois de lhe ter sido retirado o tempo em que esteve junto a Paulo Gonçalves, deixou um discurso emocionado na rede Instagram, ao contar a cronologia dos acontecimentos, com uma fotografia antiga, em que está abraçado ao português. "Disseram-me para continuar. Cheguei ao abastecimento e outros pilotos revelaram que eras tu que estavas caído. Fiquei sem chão e ainda faltavam 70 quilómetros. Chorei cada quilómetro até ao final", disse o argentino.

Benavides, que ganhou nas motos, acrescenta, na nota que partilhou, dedicar a vitória ao piloto português, a quem chama ídolo. "Ganhei a etapa e dedico-ta, com muita dor. Ensinaste-me a seguir em frente, a sorrir à vida, tens a minha admiração como piloto e agradeço à vida ter-te posto no meu caminho, e poder partilhar momentos incríveis e inesquecíveis contigo", acrescentou.

O motard argentino diz que Paulo Gonçalves, provavelmente, não quis que ele o visse ali - quando não se deu conta de quem era -, e que o lembrará sempre. "Tenho um anjo que me guiará desde lá de cima. Quero-te para sempre", concluiu o piloto.

O australiano Toby Price, o primeiro piloto a chegar junto de Paulo Gonçalves após o acidente que o vitimou mortalmente, classificou o dia de hoje como o "pior para o motociclismo". "Descansa em paz, Paulo Gonçalves. A tua ausência vai ser sentida por muitos. Os meus pensamentos e orações vão para a tua família e amigos. Esta é muito difícil de digerir", escreveu o australiano, vencedor do Dakar em 2019, na rede social Twitter.

A caravana do Rali Dakar cumpriu neste domingo um minuto de silêncio em memória do piloto português Paulo Gonçalves. A homenagem aconteceu no acampamento, situado em Wadi ad-Dawasir (Arábia Saudita), na presença de todos os pilotos, incluindo os de motos e os de quads. A organização, entretanto, decidiu cancelar a oitava de 12 etapas para motos e quads, prevista para esta segunda-feira.

A decisão foi tomada "em conjunto com equipas e pilotos" e surge devido à "consternação" que afetou "sobretudo os pilotos das motos", pois o português "era uma figura querida da prova, imensamente respeitado, tanto pelos veteranos como pelos menos experientes, pilotos que o admiravam e se sentiam inspirados por ele", escreveu a organização, em comunicado.

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