Atática tem quase 70 anos, mas apurou-se quando se tornou, há 47 (e a contar...), proprietário e mestre da Casa das Chaves de Moscavide. A esposa fica mais com o trabalho grosso (moldar e entregar as encomendas), Nicolau Tolentino (o mesmo nome do poeta satírico português nascido em 1767) ainda anda "quase todo o dia fora" a abrir cofres com os apurados sentidos e truques de mãos e olhos. Há quase 81 anos, que completa a 7 de setembro, nasceu ali ao lado, nos Olivais, foi jogador do Benfica (juniores) e de Os Bucelenses, mas fez carreira no clube do coração, o Sport Lisboa e Olivais. Aos 30, montou um tabuleiro de futebol e começou a dar a estratégia aos jogadores que lhe valeu 17 subidas de divisão, um recorde que talvez nem Vítor Oliveira consiga alcançar..O agora treinador do Gil Vicente tem uma posição incontestada com 11 promoções ao principal escalão do futebol português, que nesta época disputa à frente da equipa de Barcelos. Nicolau Tolentino, treinador e homem, é de outro tempo. "Nunca quis treinar muito longe de casa. Trabalho há 69 anos nas fechaduras e tenho o meu negócio há 47", diz ao DN o Fechaduras, como é tratado este sindicalista de esquerda, que ainda hoje se eriça a falar da falta de condições laborais da classe (como a ausência de tabelas salariais a que os jogadores têm direito - se depois são cumpridas, é outra história). "Subi 17 vezes, 12 ao nacional [III Divisão, agora Campeonato de Portugal] e cinco nas distritais", confirma, sem querer precisar os nomes dos clubes. "Não quero ferir suscetibilidades a ninguém e há clubes que já não existem", diz, irredutível, o pai de uma advogada (Alice Castro) que já esteve no Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol e como juíza no Tribunal Arbitral do Desporto. E que mantém o registo da carreira detalhada do pai. Fechada num cofre de princípios que só o Fechaduras conseguiria abrir. Mas não abre..Na verdade, esta reportagem começou em abril, quando o treinador Henrique Calisto falou do mestre Nicolau Tolentino, "rei das subidas". "Esse é que é o rei das subidas. Tem 17, acho que é um recorde nacional. É uma referência do futebol lisboeta e, se há 20 anos estava atualizado, agora está muito mais", disse o treinador matosinhense, amigo de infância de Vítor Oliveira. Na altura, estava a ser feita uma recolha de informação sobre a fundação da Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF), que fundiu várias fações e unificou a classe.."Foi a 14 de janeiro de 1986", dispara automaticamente o sócio 357, que, com Calisto (primeiro presidente) e muitas outras figuras, foi membro fundador. E dos primeiros a entrar no quadro de honra: o dos 16 sócios honorários, ao lado de Fernando Vaz, Mário Wilson, José Maria Pedroto, Cândido de Oliveira, José Mourinho ou os já citados Calisto e Oliveira (os outros são: Manuel José, Carlos Silva, António Morais, José Pereira - presidente -, Manuel Oliveira, Eduardo Soares, Francisco Andrade e Armando Santos)..O tabuleiro e a faceta de sindicalista.Entre 1968 e 2004, Nicolau Tolentino passou mais do que uma vez pelo SL Olivais, curiosamente um dos emblemas pelo qual nunca foi campeão, garantindo a subida aos nacionais..Fala o "afilhado", Humberto Cruz, 62 anos. "Não era o afilhado, mas diziam isso porque ia para todo o lado com ele e fui várias vezes campeão com o Nicolau. Comecei a jogar com ele no Vialonga, aos 22 anos. E depois joguei uns sete anos em equipas que ele treinava. No Vialonga, no Marinhais, no At. Cacém, no Fanhões e no Alhandra fomos campeões da I Distrital e subimos ao nacional", explica o antigo ponta-de-lança "estilo João Félix".."Ganhávamos muito pouco, mas andávamos pela amizade e admiração que tínhamos por ele. O máximo que ganhei foram 35 contos [175 euros], além dos prémios. Num contrato que fiz, deram-me de prémio de assinatura uma antena, uma TV a cores e um gira-discos, porque o presidente era dono de uma cadeia de lojas de eletrodomésticos", ri-se. "O Nicolau teve muitos convites de equipas de divisões de topo. Mas sempre quis treinar nesta zona, não queria deixar a profissão. Teve um contributo muito grande para a ANTF e para o futebol", contextualiza o ex-avançado. E diz que uma das grandes qualidades do treinador era a sensibilidade. "Jogava sempre em função dos jogadores que tinha", explica. E conta uma história que define o carácter vincado e meticuloso do aficionado do futebol.."Num jogo em Santa Iria, estávamos no Lousa, e ele tinha uma mesa estilo Subbuteo para dar a tática. Batem à porta. Ele enervou-se e deu um pontapé no tabuleiro, mandando os bonecos para todos os lados. Depois, disse que era um dirigente do adversário que queria perceber como íamos jogar", recupera Humberto Cruz.."No início da carreira, usava um tabuleiro de madeira, aí com uns 50 centímetros de comprimento, construído por mim e que guardava numa mala retráctil feita por um amigo. Anos mais tarde, usei as ardósias e outros suportes que apareceram", confirma ao DN o senhor Fechaduras..Delegado na Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Futebol pela ANTF, diz que nunca esteve preso às ideologias ou ideais corporativas. "Sou sindicalista e defendo os trabalhadores. Aos 66 anos, deixei [de treinar] para dar lugar aos outros. Mas já me apareceram pessoas a convidar. Mas que exemplo ia dar eu, que defendo os trabalhadores?", sublinha, vincando que quer na ANTF quer nas assembleias da FPF diz o que acha ser o melhor para os treinadores.."Sou o presidente do Núcleo de Lisboa da ANTF há 30 anos, aliás fui o único até ao momento. Há outras com capacidades, mas não querem assumir. Eu ainda tenho muito trabalho e com a minha mulher continuámos a gerir o negócio", diz o pai de duas mulheres e avô de um rapaz que joga futebol nas camadas jovens do Torreense.."Dos 6 aos 10 anos vivi em Alhandra. O Alves Redol [escritor considerado um expoente do neorrealismo português] era meu amigo. Comecei a trabalhar aos 10 anos, não tenho partido. Sou de esquerda, mas quando não está bem, digo-o", reitera, disparando umas sarcásticas farpas à geringonça que forma o governo de Portugal..O Fechaduras ainda é conhecido das principais instituições judiciais e policiais, que recorriam aos seus serviços para abrir cofres dos mais importantes do país. Abria cofres e todo o tipo de fechaduras. Era um craque na arte, chamado por várias grandes empresas na zona de Lisboa para destrancar caixas-fortes e todo o tipo de contentores que se podem trancar com peças metálicas, com uma ou mais linguetas movidas por chave.."Fazia tudo, como costumava dizer-se, a dedo e com algumas ferramentas. Às vezes, tinha de recorrer à violência e rebentar com a fechadura, quando já não havia alternativa", sintetiza Nicolau Tolentino. Agora é diferente porque a evolução tecnológica mudou os métodos, mas o mestre Fechaduras continua a ser procurado para abrir o acesso a segredos e bens preciosos. E contestar, mesmo se não o solicitarem.