Killer Kelly, a portuguesa que largou tudo pelo wrestling

Raquel Lourenço trocou uma carreira estável no <em>design</em> gráfico para se aventurar nos ringues alemães. Tornou-se campeã e recebeu um convite inesperado da WWE, a Liga dos Campeões do Wrestling.
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Raquel Lourenço na vida real, Killer Kelly quando entra nos ringues. É este o nome e o alter ego da primeira e única portuguesa a chegar à World Wrestling Entertainment (WWE), promotora que descreve como a Liga dos Campeões do Wrestling.

O sonho tornou-se realidade para esta jovem de 26 anos que abdicou de uma promissora e estável carreira no ramo do design gráfico para seguir o sonho de criança. "Tinha um emprego e tinha o meu caminho traçado nessa profissão. Mas depois pensei "é agora ou nunca". Procurei a melhor escola de wrestling, pensei na escola de Lance Storm [em Calgary, no Canadá], mas era muito longe. Depois procurei a melhor da Europa e apareceu-me a WXW [Westside Xtreme Wrestling] da Alemanha", contou ao DN, durante uma rara estada de uma semana em Lisboa.

"A minha família ficou chocada"

Uma semana em Essen, a 80 quilómetros de Frankfurt, foi mais do que suficiente para ficar "extremamente apaixonada pelo estilo de vida" de wrestler e pelas condições proporcionadas: uma academia aberta 24 horas por dia para treinar, apartamento, ginásio e espetáculos todas as semanas para fazer aquilo de que mais gosta.

A aventura foi planeada durante meses, mas só foi comunicada à família uma semana antes, em setembro de 2017. "Ficaram chocados", confessou. "Diziam-me que tinha de ter um emprego decente, para não largar a minha carreira e chegaram a perguntar-me se estava boa da cabeça. Mas disse-lhes: "Vou ter a vossa idade e vou arrepender-me de não ter seguido o meu sonho." O meu pai ficou bastante chateado, a minha mãe disse para seguir o meu sonho, mas que voltasse se as coisas estivessem a correr mal."

Mas a aventura não podia ter corrido melhor. Dois meses bastaram para que se tornasse a primeira campeã feminina da WXW, num reinado que durou cerca de um mês. "Na altura fez sentido para eles colocarem-me como a primeira campeã feminina da promotora. Talvez por ser a rapariga que saiu de Portugal para seguir o sonho dela e que veio de propósito da WXW", recordou.

Embora os resultados dos combates de wrestling e os campeões estejam predeterminados, não é qualquer um que carrega um cinturão. "Há muitas pessoas que dizem que é indiferente darem-lhe títulos ou não. Para mim foi muito especial, foi a WXW a dar reconhecimento ao facto de eu ter mudado de Portugal especificamente para estar com eles, treinar com eles e fazer parte dos espetáculos. Quando mo tiraram, fiquei triste, porque estava à espera de ter um reinado mais longo. Mas eu percebi: não estava preparada para ser campeã, de todo. Compreendi, obviamente", realçou com fair play, com elogios para a sucessora Toni Storm.

O convite inesperado via e-mail

Raquel não se foi abaixo com a perda do cinturão. Continuou a treinar e a aperfeiçoar-se, até que em maio do ano passado abriu a caixa de correio eletrónico e deparou-se com um convite inesperado para a concretização do seu sonho. "O meu trajeto foi bastante estranho. Ainda não tinha feito nenhuma candidatura, nunca fiz um tryout [estar à experiência] e do nada eles descobriram-me. Enviaram-me um e-mail e perguntaram-me se estava disponível. Perguntei: "Como é que vocês sabem que eu existo? Como é que me contactaram?" As minhas colegas tinham feito tryouts, enviado candidaturas, estavam em contacto... eu não. Perguntaram-me se queria fazer um combate para um torneio por um título", contou.

Um mês depois, entrou para a história, ao tornar-se a primeira superstar da WWE made in Portugal. Shanna fez de figurante em 2014, Carlos Rocha lutou na embrionária World Wide Wrestling Federation (WWWF) na década de 1970 e o lusodescendente Peter Polaco (mais conhecido por Aldo Montoya ou Justin Credible) nas de 1990 e 2000. Mas portuguesa a lutar na WWE só mesmo o caso de Killer Kelly.

"Nunca pensei que algum português chegasse à WWE. Nunca, nunca, nunca! Sempre pensei que Portugal era um país pequenino, em que nunca reparavam e além disso sem cultura de wrestling. Terem-me escolhido é uma honra enorme e algo que ainda não acredito que aconteceu. Parece que estou a sonhar acordada", confessou Kelly, atualmente no NXT UK, "uma espécie de equipa B" da promotora norte-americana no Reino Unido.

"Uma ótima altura" para se ser mulher

A corrente feminista que atravessa o desporto mundial também chegou à WWE, que nos últimos anos tem apostado forte na divisão feminina. O tempo de antena é maior, os combates têm mais destaque, são mais longos e agressivos, foi criado um evento exclusivo para mulheres (Evolution) e dentro de poucas semanas serão coroadas as primeiras campeãs femininas de tag team (duplas).

"A Ronda Rousey era a maior estrela do UFC e a WWE pegou nisso com resultados. Nós valemos o mesmo do que os homens ou talvez até mais", afirmou Raquel, em alusão à ex-lutadora de artes marciais mistas (MMA) que no ano passado se tornou estrela da WWE - é atual campeã feminina do Raw, o espetáculo semanal que anima as segundas-feiras à noite dos Estados Unidos.

"Se não fosse a chamada Women"s Revolution [revolução feminina], tenho a certeza absoluta de que não tinham pegado em mim. Ajudou-me bastante e é uma ótima altura para se ser lutadora de wrestling. Uma ótima altura! Temos mais oportunidades, mais combates, apostam mais em nós", regozijou, com metas bem definidas para o futuro: "Primeiro quero ganhar o título feminino do NXT UK, depois mudar-me para a América, fazer parte do Raw ou do Smackdown [espetáculos principais da WWE], ganhar um título e ter um combate na Wrestlemania [maior evento de wrestling de cada ano, comparado ao Super Bowl]."

A ida para a elite do wrestling mundial também lhe permitiu ganhar estabilidade numa atividade em que tudo pode mudar de um momento para o outro. "Se estiveres a lutar em promotoras independentes e não tiveres contrato, é superarriscado. Tinha meses em que fazia muito bom dinheiro, com combates e vendas de merchandising, mas tinha outros em que não havia assim tantos espetáculos. Felizmente, sempre fui aquela pessoa que gosta de poupar dinheiro, por isso nunca me vi assim tão mal. Mas a partir do momento que a WWE me ofereceu o contrato, a minha vida mudou completamente. Estou superestável. Não tenho de me preocupar em poupar dinheiro para o próximo mês se não tiver combates ou me lesionar", garantiu, ansiosa pelos próximos espetáculos do NXT UK.

Lutou com homens para evoluir

Ainda longe de sonhar que chegaria à WWE, Raquel efetuou o primeiro treino de wrestling aos 15 anos, em Arroios: "Basicamente passei duas ou três horas a cair no chão. No dia a seguir estava morta, de rastos. Foi horrível." Um ano depois, descobriu a promotora Wrestling Portugal (WP). Numa fase em que não frequentava tanto os treinos para se dedicar ao ensino secundário e depois ao superior, tinha uma companheira de luta, mas quando teve mais tempo para se dedicar ao wrestling teve de combater com homens. "Tinha a Iolanda Domingues, com quem lutava duas a três vezes durante o ano. Quando finalmente meti na cabeça que queria fazer isto como carreira, não havia mulheres. Então, só lutava com rapazes, o que não me importo. Gosto, porque é mais fácil dar porrada a um homem", atirou, soltando uma gargalhada.

Neste domingo, estará de regresso a um espetáculo do WP, no Centro Shotokai de Queluz, mas uma concussão impede-a de regressar aos ringues nacionais. "Treinamos para fazer tudo de uma maneira segura, para não nos aleijarmos e para não magoarmos o adversário. Mas tudo pode acontecer. Há duas semanas, estava a treinar, a fazer um golpe supersimples, e do nada bati de cabeça. E pronto: concussão. Terei de ser vista por um médico nos Estados Unidos para voltar a lutar. Os riscos estão sempre presentes", contou, evitando ter medo de se aleijar sempre que sobe a um ringue.

"Não gosto de pensar nisso. Porque se pensar, é mais provável que aconteça. Tens de estar 100% segura de que o que vais fazer no ringue vai correr bem. Para isso é importante falar com a adversária antes, ter tudo bem estruturado e que ela perceba o que vai acontecer. Tive recentemente um combate com uma japonesa na WXW em que ela não falava inglês: vi que ela se tinha esquecido de fazer uma coisa qualquer e então prendi-a numa submissão e tentei dizer-lhe, mas ela não entendeu. Então fiz outra coisa. Isso acontece muitas vezes", revelou.

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