Das equipas B até ao topo. Quem são Keizer e Lage, os treinadores do dérbi?

Os treinadores de Sporting e Benfica têm percursos com alguns pontos de contacto. As carreiras tiveram impulso decisivo em 2004 e hoje apresentam até algumas ideias semelhantes
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A desilusão tinha tomado conta de Portugal e da Holanda por conta do Euro 2004. A equipa das quinas eliminara os holandeses nas meias-finais e depois sofreu um enorme golpe na final, no Estádio da Luz, diante da Grécia. Foi com esses momentos na memória que Marcel Keizer e Bruno Lage deram, nesse verão, passos decisivos para iniciarem as respetivas carreiras de treinadores. E este domingo cruzam-se pela primeira vez em Alvalade, no Sporting-Benfica a contar para a 20.ª jornada da I Liga.

As bases foram lançadas nesse ano de 2004 para os técnicos que este domingo se estreiam no dérbi eterno. Tinham passado poucos dias desse Campeonato da Europa quando o holandês foi convidado para orientar o UVS Leiden, um pequeno clube de uma cidade dos arredores de Haia, que militava nos escalões distritais, enquanto no Benfica entrava Bruno Lage pela mão de Jaime Graça, estrela dos encarnados nos anos de 1960, para treinar a equipa B dos sub-17.

Keizer tinha terminado a carreira de futebolista dois anos antes, enquanto Lage, cujo talento para ser futebolista não era muito, tinha começado em 2000 o seu percurso como preparador físico e treinador de camadas jovens, tendo depois ainda passado por clubes pequenos da região de Setúbal, uma cidade que via José Mourinho, filho da terra, subir as escadas para o topo do futebol mundial.

Futebol desde o berço

O futebol fez desde bem cedo parte da vida dos atuais técnicos de Sporting e Benfica. Marcel seguiu bem cedo as pisadas do tio Piet Keizer, uma das estrelas dos anos dourados do Ajax de Johan Cruijff e da seleção holandesa, enquanto Bruno seguiu as pisadas do pai Fernando Lage, que fez uma carreira de jogador e técnico em clubes da região de Setúbal. Aliás, o irmão Luís Nascimento seguiu o mesmo caminho, orientando neste momento a equipa de juniores do Benfica.

Marcel Keizer nasceu em Badhoevedorp há 50 anos, uma localidade a sudoeste de Amesterdão ao lado do aeroporto internacional Schiphol, um dos mais movimentados da Europa. O antigo Estádio de Meer, que era propriedade do Ajax, depressa se tornou na sua segunda casa e foi lá que se estreou como profissional num jogo com o Willem II, em abril de 1988, com uma vitória por 3-1.

Bruno Lage é mais novo que o holandês. Nasceu há 42 anos, em Setúbal, e chegou a "fazer uns jogos" por equipas dos distritais, conforme revelou recentemente ao DN José Rocha, antigo jogador do Vitória que acompanhou os seus primeiros passos como adjunto nos juvenis dos sadinos. "Ele percebeu que para jogador de alto nível era difícil e dedicou-se aos estudos para ser treinador", acrescentou, recordando Lage como "um jovem estudioso, que tinha tirado o curso de Educação Física e precisava de uma experiência para começar no treino".

Keizer com "claro traço holandês"

A prática de Bruno Lage como jogador em nada se compara com a de Marcel Keizer, que foi um médio com uma carreira de 15 anos como profissional, contabilizando 77 jogos na liga holandesa, divididos pelo Ajax, Cambuur e De Graafschap, e ainda uma partida na extinta Taça das Taças pelo clube de Amesterdão numa meia-final perdida para o Marselha em 1987/88.

Essa experiência acabou por moldar aquilo que o holandês é como treinador, com fortes influências da escola do Ajax, que frequentou enquanto jogador, mas onde chegou como treinador, primeiro na fase final do processo de formação enquanto técnico dos bês do clube e depois da equipa principal. Isto depois de ter passado por emblemas de menor expressão.

"Percebe-se uma primazia total pelo jogo ofensivo", identifica Pedro Bouças, treinador e autor do blog Lateral Esquerdo, que identifica o treinador do Sporting como tendo um "claro traço holandês": "A Liga holandesa é um pouco assim, muito caótica, com muitos golos, porque as equipas quando atacam não pensam no momento seguinte. A vontade de querer sempre mais ofensivamente é claramente um traço do holandês, embora, os maus resultados o tenham feito ser mais cauteloso e acredito que voltará a acontecer agora no dérbi."

Lage com "inspiração" nas ideias de Guardiola

Já Bruno Lage formou-se nos bancos da universidade e, depois, subindo a escadaria do edifício da formação do Benfica, que abandonou em 2012, após a morte do seu mentor, Jaime Graça, a quem chamava de "mestre". Foi então ganhar experiência nos Emirados Árabes Unidos, como técnico das camadas jovens do Al Ahli, onde conheceu Carlos Carvalhal, com quem seguiu para Inglaterra para ser seu adjunto no Sheffield Wednesday e depois no Swansea, já na Premier League.

As raízes do treinador do Benfica são claramente nos escalões de formação e Pedro Bouças não tem dúvidas em classificá-lo como "um treinador da nova vaga", considerando que Lage "inspira-se muito naquilo que são as equipas de Guardiola" e explica porquê: "Procura retirar ao máximo a aleatoriedade do jogo, dotando a equipa de argumentos para cada momento do jogo. Dá primazia pela posse, reação rápida na perda da bola e organização cuidada." Contudo, Bouças faça uma ressalva importante: Não tem individualmente os mesmos argumentos que Guardiola, para poder ser tão dominante."

Promovidos das equipas B

A ascensão de Marcel Keizer a treinador principal de um grande clube é muito semelhante à de Bruno Lage. Em 2017, depois de uma época em que liderou a equipa B ao segundo lugar da II liga holandesa com um futebol muito elogiado, foi o escolhido pela direção do Ajax para assumir o cargo na equipa A na nova época, rendendo Peter Bosz, que se mudara para o Borussia Dortmund. Era a sua experiência ao mais alto nível.

Lage também estava na equipa B dos encarnados há cerca de seis meses quando o presidente Luís Filipe Vieira o chamou para substituir Rui Vitória no cargo de treinador principal.

É certo que a experiência de Keizer não correu muito bem, pois acabou por ser despedido após 24 jogos na sequencia da eliminação da Taça da Holanda diante do Twente, já Bruno Lage está agora a iniciar o seu percurso e estará em avaliação até ao final da época, pelo que o que fizer até lá poderá ditar muito daquilo que será o seu futuro como treinador.

Estreias com chapa quatro

43 dias separaram o primeiro jogo de Marcel Keizer como treinador do Sporting e a estreia de Bruno Lage no comando técnico do Benfica. Contudo, o resultado foi idêntico: duas vitórias, os leões por 4-1 ao Lusitano Vildemoinhos e os encarnados 4-2 ao Rio Ave. O holandês, vindo de uma curta experiência no Al Jazira dos Emirados Árabes Unidos, alcançou então sete triunfos consecutivos, enquanto o português, que também passou por aquele país do Golfo Pérsico, somou quatro triunfos consecutivos.

Em ambos os casos, o impacto que tiveram nas respetivas equipas foi positivo. Mais impactante o de Keizer que colocou o Sporting a jogar de uma forma distinta, com um futebol ofensivo, veloz e quase sempre ao primeiro toque, que foram valendo goleadas consecutivas. Um estilo que foi perdendo gás nos últimos jogos, mas cujos princípios já valeram a conquista da Taça da Liga. Bruno Lage teve uma tarefa diferente, com a principal missão de equilibrar a equipa, sobretudo em termos defensivos, uma tarefa que, segundo o próprio, ainda está em curso.

Semelhanças na ideia de jogo

Apesar de terem escolas diferentes, podem identificar-se semelhanças quanto aos princípios dos treinadores dos dois rivais, que segundo Pedro Bouças passam "pela grande ideia que têm para o jogo". "São treinadores que preconizam um estilo de jogo com saída por trás desde a retaguarda com bola no chão e de constantes ligações. Ambos apelam à participação dos centrais no jogo ofensivo das suas equipas, dando-lhes liberdade para progredirem, e gostam de chegar pelo corredor central ao último terço", explica, considerando que as diferenças se situam "nos pormenores".

"Enquanto Keizer tem tido dificuldades para operacionalizar os restantes momentos de jogo, nomeadamente a sua ligação, e o Sporting é uma equipa que com bola não se prepara para a perder, Bruno Lage muito rapidamente conseguiu um modelo mais harmonioso, com competências também nos momentos de transição. Em suma, quando a equipa de Lage ataca, está também preparada para defender e vice-versa. O que não acontece com o Sporting", acrescenta o Bouças.

A regra dos cinco segundos

Keizer é conhecido na Holanda por utilizar a regra dos cinco segundos nas suas equipas, que na prática consiste em recuperar a posse de bola cinco segundos depois de a terem perdido. Jerge Hoefdraad, seu antigo jogador no Cambuur, numa declaração à revista Elf Voetbal, revelou que o técnico leonino "está muito comprometido" com essa ideia, lembrando que essa característica destacou-se sobretudo na equipa B do Ajax: "Assim que perdiam a bola, os jogadores voavam para a recuperar."

Essa imagem de marca ainda não está, de acordo com Pedro Bouças, implementada no Sporting, pois identifica que é após a perda da bola que "o Sporting tem sentido mais dificuldades", nomeadamente "na reacção e ganho rápido da bola" e "na forma como posteriormente defende os contra ataques".

No final do jogo de terça-feira com o Boavista, Bruno Lage destacou a importância que dá a esse momento do jogo. "Se queremos ter bola, temos de ter uma reação muito forte quando a perdemos", assumiu, adiantando no entanto que "ainda é preciso melhorar" mais esse aspeto do jogo, afinal está há menos de um mês no comando do Benfica.

Pedro Bouças nota, no entanto, "mudanças significativas" em relação àquilo que era o funcionamento da equipa com Rui Vitória. "As linhas estão hoje mais juntas, a pressão é mais inteligente e coordenada, e há muita preocupação no cumprimento dos princípios importantes como o garantir superioridade numérica, voltando para trás da linha da bola para defender, e no encurtamento dos espaços", explicou.

Boa relação com os jogadores

Os dois treinadores dão uma grande importância é ao funcionamento em equipa. Já são várias as vezes que Lage transmite a ideia da importância da "evolução do coletivo" pois considera que só assim os encarnados podem "crescer". David Simão, atual jogador do Antuérpia que foi treinado por Bruno Lage nos sub-17 do Benfica, recorda um treinador "com ideias bem definidas na forma de jogar" da equipa.

Por sua vez, o cabo-verdiano Jamiro Monteiro, que foi orientado por Marcel Keizer também no Cambuur, destacou isso mesmo numa entrevista dada ao portal Ajax Showtime: "Para ele a equipa é o mais importante. E é integrados nela que procura melhorar o rendimento dos jogadores."

No banco de suplentes, os treinadores de Sporting e Benfica aparentam ser calmos e seguros de si mesmos. E quem com eles trabalhou no dia-a-dia confirma isso mesmo. "Keizer é uma boa pessoa, que sabe conversar. É muito calmo e não é de gritar com os jogadores nos treinos", disse Jamiro Monteiro, tendo Nani, capitão dos leões, destacado numa entrevista recente à SportTV, que o holandês é uma pessoa "humilde" e que "tem ajudado muito os jogadores".

Os elogios são também dirigidos a Bruno Lage por David Simão. "Uma coisa é lidar com miúdos na formação, outra bem diferente é orientar jogadores como os do Benfica, alguns dos quais já com estatuto no futebol, mas o feed-back que me dão os amigos que tenho no Benfica é que foi foi bem aceite pelo grupo de trabalho", começa por dizer o médio, recordando os tempos em que foi orientado pelo atual técnico encarnado: "Foi sempre fantástico. Era um conselheiro, um pai e um amigo. É um homem simples, muito humano e transparente." E na hora de decidir "não olha aos nomes, mas sim ao rendimento da equipa", uma ideia que diz manter-se intacta: "Se olhasse aos nomes, se calhar o João Félix não seria titular ou o Gabriel não teria o papel que tem agora na equipa."

Por aquilo que tem observado de fora, Pedro Bouças consegue notar que os dois treinadores, que entraram nos clubes com a época em andamento, "foram bem acolhidos" nos grupos. "O impacto na melhoria do rendimento exibicional foi elevado, e isso também contribuiu para lhes dar maior crédito", sublinha.

Este domingo estes dois treinadores, que apresentam vários pontos de contacto nas respetivas carreiras, vão esgrimir argumentos pela primeira vez em três dias. Dois estilos e ideias de jogo que podem marcar uma nova era nos dérbis entre Sporting e Benfica. Quem conseguir vencer estará, por certo, mais perto de garantir uma posição de destaque nos respetivos clubes.

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