Há 40 anos, na pequena cidade de Lodi (40 quilómetros a sudeste de Milão), ficou instituído um ritual em torno de António Livramento, que morreu aos 56 anos faz esta sexta-feira duas décadas. Durante uma época (1978-1979), o "mestre" do hóquei em patins mundial representou o Amatori local e os adeptos tinham criado uma tarja que já fazia parte das bancadas. "Deus perdoa. Livramento, não." Hoje, ainda há italianos que quando vêm a Lisboa se deslocam ao cemitério de Benfica para homenagear o inatingível, que é homenageado pela Federação Portuguesa de Patinagem. Grandes jogadores, Portugal já viu e vê jogar muitos. Mas só um foi Livramento. Entre vários títulos, conquistou três Mundiais e sete Europeus como jogador. E como selecionador venceu dois Campeonatos do Mundo e três da Europa..António José Parreira Livramento (São Manços/Évora, 28 de fevereiro de 1943 - Lisboa, 7 de junho de 1999) foi mais do que um virtuoso bailarino implacável dos rinques de hóquei. Foi um desportista talentoso. Craque no pingue-pongue, queria ser estrela de futebol no Benfica, mas o inestimável dirigente Torcato Ferreira desviou-o para a arte da patinagem com balizas. Mais tarde, 40 anos mais tarde, quando um acidente vascular cerebral (AVC) derrubou o eterno número 4, um dos melhores amigos dentro e fora do campo, António Ramalhete, resumiu-o: "Livramento é hóquei.".Passadas mais duas décadas, o antigo guarda-redes (considerado, a par do catalão Trullols, o melhor da história da modalidade) reenquadra o ex-jogador de Benfica, Monza, Banco Pinto & Sotto Mayor (onde trabalhava como bancário) e Sporting. "O Livramento era uma pessoa predestinada para o desporto. No hóquei, não era só o ser o melhor, ter qualidade e habilidade. Tinha o feitio das grandes vedetas, dava nas vistas. Criava empatia nas pessoas. Comparávamos mais o Livramento com o Eusébio. Um no futebol, o outro no hóquei", relata António Ramalhete ao DN. "Em qualquer parte do país, na mais remota aldeia, era reconhecido. Se íamos ao teatro, os atores de revista faziam logo piadas com ele", acrescenta para se perceber a aura de superstar que em Portugal só Eusébio conseguiu nas décadas de 1960 e 1970..Era obra, num desporto amador (em vários sentidos, mas sobretudo no enquadramento laboral; mesmo com um futebol pobre, se comparado com outros países europeus na época, era um parente muito depauperado). "No Campeonato do Mundo da Argentina, em 1970, durante uma conversa de bar de hotel em que se está rodeado de jornalistas, disse algo menos agradável em relação aos adeptos argentinos, porque estes estavam sempre a incomodá-lo e a provocá-lo. No dia seguinte, saiu em todos os jornais 'Livramento insulta argentinos'. Teve de ir aos canais de televisão para fazer um desmentido e poder jogar, ou então ia ter problemas com o público. Se fosse eu a dizer alguma coisa, nem ligavam", prossegue Ramalhete. "Em Itália era igual. E em Espanha, ou no Chile. Nos países onde se praticava hóquei, era uma figura, uma verdadeira superstar.".Só mais um exemplo: "Íamos no trânsito e a polícia mandava parar. Quando viam que era o Livramento, mandavam logo seguir. Aliás, ele chegou a conduzir sem carta dois anos e a polícia nunca lhe fazia nada. Como é que ele fazia? Dizia-me: 'tem calma.' Olha ele é que estava a conduzir sem calma e ainda me dizia para eu ter calma. Depois, tirava o livrete calmamente e o polícia já nem lhe pedia carta. Era o Livramento."."Eu era um jogador em força... cultivei a habilidade".Livramento começou a jogar no Benfica em 1959, aos 16 anos. Primeiro jogo: Benfica 6-1 Sintra (três golos de Livramento). Em pouco tempo, estabeleceu-se na seleção nacional, onde aos 17 anos já dava entrevistas para a recém-criada RTP (1957). Foi um diabo à solta nas pistas, e fora delas, onde a sua personalidade desinibida e exuberante apenas servia para amplificar um talento único e inigualável, pelo menos até ao momento..Numa entrevista concedida à revista Mundo Português nos anos 60, António explicava a sua progressão: "Eu era um jogador em força... cultivei a habilidade." Poderoso fisicamente, era um verdadeiro malabarista com o stick, a bola, os dois juntos, as rotações em cima de uns tamancos com rodas. Um prodígio..E as mudanças na modalidade não refreariam esta espécie de cavalo selvagem, belo e com os instintos apurados como o livre equídeo? "Mudou a regra de antijogo e passou a jogar-se no campo todo, com limitações temporais para a equipa com bola, o que permitiu a criação de novos esquemas táticos e mais opções de jogo; houve a introdução do bloqueio: havia a proibição da cortina com contacto, agora pode fazer-se em movimento ou estático; houve a introdução das faltas por equipa; o tempo de ataque, de 45 segundos, passou a ser cronometrado pela mesa (antes mentalmente pelo árbitro)", conta Luís Sénica, presidente da Federação Portuguesa de Patinagem (homenageou-o lançando a imagem do mestre na final da Taça de Portugal, no fim de semana passado em Oliveira de Azeméis, e lança nesta sexta-feira uma apresentação de imagens da vida desportiva de Livramento nas redes sociais da FPP).."O Livramento, em qualquer contexto do nosso imaginário, joga hóquei. Fazendo uma extrapolação para os dias de hoje, como há mais espaço, há mais possibilidade de Livramento. Tinha qualidades ímpares", defende o ex-jogador e treinador Luís Sénica, de 54 anos. "Não o vi jogar. Mas tivemos o Adrião ou os irmãos Correia: Correia dos Santos e Jesus Correia. Mas o Livramento ocupa o imaginário do hóquei, está na cultura desportiva. Confirmo que ele era um homem com enormes valências para qualquer desporto. Jogou pingue-pongue, futebol... Tinha uma rara capacidade, que era a de brincar quando jogadores estavam fechados em estágios. Treinei alguns meses quando ele estava no Sporting. É o melhor de todos a nível mundial, universal.".Peregrinação ao mestre."Eu trabalho e vivo na cidade em que ele é o expoente, Lodi. Apesar de ser o treinador que mais ganhou pelo clube (dois campeonatos e duas supertaças), é o Livramento que eles veneram. E eu fico todo orgulhoso. Eles ainda hoje vão a Lisboa pôr flores ao cemitério. Sempre que ele faz anos, há uma corrente de posts nas redes sociais sobre o rei", conta ao DN Nuno Resende, treinador do Lodi.."Eu fui orientado por ele na Taça Latina [prova de seleções de sub-23], era ele coordenador da seleção. Foi lá nos últimos dias, a Tavira. Foi um percursor no treino. Diziam que ele já fazia a dinâmica do exercício concreto para determinadas fases do jogo. Aplicava a intensidade nas transições e momentos-chave. Era uma pessoa inteligentíssima. Muito à frente. O Tó Neves, o Fortunato, o Paulo Alves, o professor João Araújo [preparador físico do FC Porto] chamavam-lhe mestre", revela Nuno Resende.."Era uma superstar, reconhecido em todo o lado, de restaurantes a cafés. E nos países do hóquei era um mito. Foi um patinador exímio, com uma capacidade de ler o jogo, domínio da bola e visão de jogo ímpares. E sempre com a cabeça levantada. Era um fora de série. Da forma como fazia os movimentos, os patins eram ténis, para ele", conclui o ex-jogador da Oliveirense que vai para a quarta época no Lodi..Lodi que é uma das cidades que venera António Livramento, tal como Évora (nasceu em São Manços), Lisboa, Porto, Barcelona, San Juan... Tem ruas com o seu nome na cidade natal e na capital portuguesa, foi incluído no onze do século pela federação (Ramalhete; Adrião, Chana, Livramento e Vítor Hugo), como recorda o velho amigo.."Foi meu colega no Benfica, no Sporting e na seleção e foi meu treinador no Sporting (os meus últimos três anos de atleta). Em 1959, ele começa no Benfica aos 16 anos. Eu comecei no Benfica, em 1960, com 14 anos. Nos períodos em que não estávamos no mesmo clube, encontrávamo-nos na seleção e fora do hóquei. Éramos amigos, de família. Nós hoje ainda nos damos com a família. Mantenho contacto quase diário com a viúva Regina Livramento (que é filha do Fernando Cabrita), as duas filhas (47, 41) e um neto. Não, não joga hóquei", remata o guarda-redes Ramalhete..PALMARÉS.António José Parreira Livramento São Manços/Évora, 28 de fevereiro de 1943 - Lisboa, 7 de junho de 1999.SELEÇÃO COM E SEM LIVRAMENTO.TOTAL DA SELEÇÃO: 36 MUNDIAIS E EUROPEUS SENIORES COM LIVRAMENTO (jogador e treinador): 15.LIVRAMENTO, JOGADOR 1 Campeonato da Europa de juniores (1960) 3 Campeonatos do Mundo (1962, 1968 e 1974) 7 Campeonatos da Europa (1961, 1963, 1965, 1967, 1973, 1975 e 1977).LIVRAMENTO, TREINADOR 2 Campeonatos do Mundo (1982 e 1993) 3 Campeonatos da Europa (1987, 1992 e 1994).TOTAL (MUNDIAIS E EUROPEUS SENIORES): 15 5 Campeonatos do Mundo (1962, 1968 e 1974; 1982* e 1993*) 10 Campeonatos da Europa (1961, 1963, 1965, 1967, 1973, 1975 e 1977; 1987, 1992 e 1994).TOTAL DA SELEÇÃO (MUNDIAIS E EUROPEUS SENIORES): 36 Campeonato Mundial (15): 1947*, 1948*, 1949*, 1950*, 1952*, 1956*, 1958, 1960, 1962, 1968, 1974, 1982, 1991, 1993 e 2003 * Nas primeiras 12 edições, entre 1936 a 1956, o campeão do mundo era automaticamente campeão da europa.Campeonato Europeu (21): 1947*, 1948*, 1949*, 1950*, 1952*, 1956*, 1959, 1961, 1963, 1965, 1967, 1971, 1973, 1975, 1977, 1987, 1992, 1994, 1996, 1998 e 2016 *Campeão europeu por inerência: nas 12 edições de 1936 a 1956, o vencedor do campeonato do mundo era considerado igualmente campeão europeu