Kaiser, o futebolista que passou 26 anos a enganar toda a gente

Carlos Henrique Raposo alimentou uma carreira boémia de futebolista ao longo de 26 anos, sem praticamente ter feito um jogo em nenhum dos vários clubes por onde garante ter passado. Portugal fez parte do roteiro de um trajeto recheado de histórias que agora chegou ao cinema e passa este sábado no festival Porto/Post/Doc. Antes disso, Kaiser, a lenda, falou ao DN
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Uma das frases mais citadas da humanidade, atribuída ao ex-presidente norte-americano Abraham Lincoln, diz-nos que "pode-se enganar todas as pessoas por algum tempo e algumas pessoas durante todo o tempo, mas não se pode enganar todo o mundo por todo o tempo". Para Carlos Henrique Raposo, isso não foi problema. O ex-avançado brasileiro é dono de uma das histórias mais invulgares, e também inverosímeis, do futebol mundial.

A história de Carlos 'Kaiser', "o grande jogador que nunca jogou futebol", é tão boa que virou filme. E chega este sábado a Portugal, inserido na programação do festival de cinema documental Porto/Post/Doc, no Porto (o filme é exibido no Cinema Trindade, às 21.45). Um bom pretexto para darmos a conhecer aquele que Ricardo Rocha, antigo jogador do Sporting e da seleção brasileira, catalogou como "o maior 171 da história do futebol". Ora, um-sete-um é o código utilizado a nível penal no Brasil para o crime de "estelionato". Impostorice. A arte de enganar.

Durante toda a carreira de futebolista, foi isso que Carlos Kaiser fez. Enganar os clubes por onde assegura ter passado. De vários emblemas históricos do Rio de Janeiro, como Botafogo, Fluminense, Flamengo, América, Bangu, até clubes do exterior, do México à Argentina, dos EUA a França, com um breve passagem por Portugal, pelo Louletano, onde garante ao DN ter passado "três meses sem jogar" em 1988. [pode ler a entrevista na parte final deste texto].

De resto, foi nisso em que se especializou por todos os clubes. Não jogar. Por regra, Kaiser convencia os clubes a assinar contratos de curta duração e, na altura, de mostrar o que valia, inventava uma lesão ou uma outra forma qualquer de não entrar em campo. Foi assim que alimentou uma carreira de 26 anos. Bons malandros, o futebol teve muitos. Mas nenhum com a astúcia de Carlos Kaiser. Ele foi o melhor a enganar os outros.

Na verdade, talvez até continue a sê-lo, pois fica difícil encontrar a fronteira entre a ficção e o real nas histórias que dão colorido à sua biografia. Alguns clubes, como o Independiente, negam que tenha passado por lá. O jogador brasileiro que alegadamente terá levado Carlos para o Ajaccio, também nega essa versão no filme. "Pormenores" que só servem para mistificar ainda mais a lenda.

"Este ano, o festival está centrado no tema das 'Ficções do Real' e, para nós, este filme contém todos os ingredientes para confundir o real com a ficção. A personagem principal, Kaiser, construiu a sua própria realidade: a de ser um grande jogador de futebol. Para não desvendar muito o filme, digamos que essa realidade estava suportada em alguns desvios à verdade. Mas que importava isso no Rio de Janeiro dos anos 80? Jogadores de futebol eram estrelas sexy que desfilavam nas boîtes durante noites inteiras", diz ao DN o diretor artístico do Porto/Post/Doc, Daniel Ribas.

No Bangu até andou ao murro para não jogar

Kaiser, que diz ter começado a jogar futebol em pequeno, no Botafogo, por imposição de uma família pobre e necessitada de dinheiro, aproveitou-se da amizade com grandes nomes do futebol brasileiro nos anos 80 e 90, como Renato Gaúcho - "meu pai, irmão, tudo na minha vida... ", diz - Bebeto ou Ricardo Rocha, para levar uma vida boémia de futebolista sem quase ter que tocar na bola.

"A estratégia era simples. Era uma época sem internet nem ressonância magnética. Então eu simulava contusões no treino. Às vezes pedia a um zagueiro [defesa] para simular uma entrada mais forte, outras vezes pedia a alguém para me levantar a bola e eu fingia uma lesão na posterior da coxa. Era a minha palavra contra a do médico. Se a coisa complicava, eu tinha um amigo dentista que passava um atestado de problema dentário", revela.

Entre as histórias mais famosas do Kaiser estão a "briga" com a claque do Bangu no intervalo de um jogo, quando a equipa perdia e o presidente ligou ao treinador para fazer entrar o "craque". Kaiser aquecia junto à bancada da claque quando ouviu o insulto que serviu de pretexto ideal. Saltou a vedação e foi distribuir murros para o meio dos adeptos. Expulso pelo árbitro, já não teve de entrar em campo. Mas tinha ainda de enfrentar o presidente do Bangu, Castor de Andrade, um barão do jogo ilegal no Rio de Janeiro, a quem deu a volta de tal forma que ainda acabou por ganhar uma extensão de contrato.

Em França, na apresentação no Ajaccio, tinha à sua espera no relvado uma série de bolas para mostrar os seus dotes perante os adeptos que acorreram ao estádio. Solução? Pegou em cada uma delas e atirou-as para as bancadas como oferta, fingindo não perceber francês perante os dirigentes.

Sósia de Renato Gaúcho

Um dia, aproveitando as semelhanças físicas com Renato Gaúcho, fez-se passar pelo antigo avançado e atual treinador do Grêmio para entrar numa festa numa boîte e conviver com as mulheres que suspiravam pelo verdadeiro craque, que acabou barrado à porta pela segurança por... se querer fazer passar por ele próprio.

Enfim, um sem número de histórias que alimentam a fama de Kaiser, "o maior futebolista que nunca jogou futebol", frase de Renato Gaúcho que o realizador britânico Louis Myles adotou para título do documentário que hoje passa no Porto/Post/Doc. Myles vai estar presente no Porto. Kaiser, agora com 55 anos e um personal trainer dedicado ao Welness Fitness para mulheres acima dos 40, não pôde vir.

Personagem desconcertante, explica ao DN , por telefone, que vive "uma fase difícil". Um problema numa vista, que o deixa "à espera de uma cirurgia à córnea", impede-o de vir ao Porto. Uma "separação recente", acrescenta, ajuda a ensombrar estes dias em que a sua fama se espalha pelo mundo através do filme e do livro que contam a sua história. Meia hora depois, terminada a conversa, liga de volta para nos dar "um exclusivo", garante. A oportunidade de conversar com a sua namorada atual, Nany Kaiser, uma das suas atletas de Welness Fitness no Rio ("todas levam o apelido Kaiser", diz).

"É uma pessoa maravilhosa, com um coração enorme. Tem essa fama de 171, mas é um ser humano incrível", diz Nany sobre Carlos, um homem "com uma história difícil de acreditar", concede. E que, assegura, continua a ser uma caixinha de surpresas. "Tem um evento novo por dia".

É esse o personagem que pode ficar a conhecer este sábado, com o filme que passa no Porto/Post/Doc e que foi premiado já este ano no Festival Tribeca em Nova Iorque. E, antes disso, nesta entrevista que Carlos Kaiser concedeu ao DN:

Entrevista com Carlos Kaiser

Quem é verdadeiramente o Carlos Henrique Raposo?
Carlos é um rapaz que foi roubado muito cedo. A minha mãe vendeu o meu passe para um empresário, com uma multa rescisória alta que eu não podia pagar e, por isso, tinha de ir para onde ele queria. Eu não queria ser jogador de futebol, queria ser professor de Educação Física.

Nunca quis ser jogador de futebol? Foi forçado a isso pela pobreza da família?
Imagine o que é trabalhar e 80% do seu salário não ir para si, mas para um empresário. Claro que eu não queria isso. Mas com 10 anos eu já sustentava a minha família, quando jogava lá no Botafogo.

A sua vida foi uma grande mentira?
Vivi a vida dos outros. Cuidei deles, de muitos fui babá. Hoje me arrependo, podia ter aproveitado melhor, mas não sabia como me livrar do empresário.

Deve ter ouvido muitas vezes a expressão "A sua vida dava um filme". Deu mesmo. Era este o filme que queria para a sua vida? Gostou?
Deu um filme e um livro. Eu nunca quis ser famoso, hoje tenho essa agitação toda com a promoção do filme, mas eu gosto de vida tranquila. O que me dá um grande orgulho é ter os maiores jogadores da minha geração, anos 70/80/90, como Renato Gaúcho, Bebeto, Ricardo Rocha e outros, mais de 70, a falar de mim como falam no filme. Quem for ver o filme pode pensar que é um filme de um artista, ou de um burlão, mas vai ver que é uma história triste, de um homem que já ficou viúvo três vezes, que perdeu um filho com 18 anos... É uma história de sobrevivência.

Podemos acreditar em tudo o que está neste filme, em todas as histórias que você conta?
Podem acreditar. É tudo verdade. Sabe, eu só joguei em terra de mafioso. Lá na França, joguei no Ajaccio, na Córsega, que é a terra da máfia francesa. O rapaz que me levou para lá nega agora no filme que me levou para França, mas esquece que há três anos confirmou à Four-Four-Two, que é a mais famosa revista britânica de futebol, que foi ele quem me levou. Agora nega porque não quer problemas com os corsos.

Quantos anos (não) jogou e em quantos clubes? Sabe de cor?
Sei, sim. Foram 26 anos. Parei aos 41 lá no Ajaccio. Joguei no Botafogo, Fluminense, Flamengo, Bangu, Vasco, América, Puebla (México), El Paso (EUA), Independiente (Argentina), Ajaccio (França) e estive três meses aí no Louletano, mas não cheguei a jogar.

Esteve mesmo em Portugal?
Sim, três meses, em 1988. Mas não cheguei a jogar porque o clube [Louletano] vivia um momento muito ruim.

E o que recorda do Algarve?
Ah, é um dos lugares mais bonitos do mundo, belas praias, um magnífico litoral. Sabe, eu sinto-me muito ligado a Portugal e para mim Portugal é a terra do melhor do mundo, que é o Cristiano Ronaldo.

Ronaldo não é nenhum Kaiser em campo, não finge lesão para não jogar...
Não, é um jogador muito objetivo, muito determinado, mas também veio de uma infância pobre como a minha. Sabe, para mim os melhores jogadores portugueses da história são o Cristiano, o Eusébio, o Figo e o Futre, que quase veio jogar aqui no Brasil. Também gostei muito do Fernando Couto.

Fernando Couto que também tinha assim uma cabeleira à Kaiser. Como é que ficou com essa alcunha?
Ah, porque eu tinha qualidade, sabia jogar a bola. Quando era novo tinha um estilo parecido com o do Beckenbauer e fiquei Kaiser.

Há a fama de nunca ter feito um jogo por qualquer dos clubes por onde passou, mas não é bem assim, certo?
Jogo completo tem poucos, uns 20 talvez. Arranjava quase sempre forma de não ter que entrar em campo, simulava umas contusões, passava uns 20 dias no departamento médico e quando a coisa apertava um amigo meu dentista passava um atestado de foco dentário.

Em que clube passou mais tempo?
No Ajaccio. Fiquei lá uns 12 anos, mas era sempre emprestado. Para clubes brasileiros.

Então e com que camisola fez mais jogos?
Com a do Bangu. Fui vice-campeão brasileiro em 1985. Joguei com o Ado, que jogou aí em Portugal, penso que no Estoril [Ado é um antigo avançado brasileiro que jogou no Sp. Espinho entre 1988 e 1993]. Também joguei no Flamengo com o Valtinho, que jogou no Sporting e foi quem ensinou o Figo a conduzir, sabia?

No Bangu também viveu um dos episódios mais famosos, quando foi expulso por provocar uma briga antes de entrar em campo e teve de enfrentar o presidente, que acabou até por lhe renovar o contrato. O presidente era Castor de Andrade, um barão do jogo ilegal no Rio de Janeiro. Era barra pesada?
Era... barra pesada. Mas eu era um inconsequente, não tinha medo de nada não.

Foi o momento mais difícil por que passou ao longo de uma carreira inteira a enganar os clubes?
Tive vários. Lá na Córsega, no Ajaccio, houve um dia em que vários jogadores foram lá ao Club Med e foram barrados na entrada. No dia seguinte, os mafiosos mandaram por uns pós lá na água dos clientes do clube e tiveram que ir todos para o hospital. A partir daí, nunca mais barraram os jogadores, podiam entrar quando quisessem.

Não gostava de jogar, mas atraía-o o lado social da vida de futebolista. As festas, o contacto facilitado com mulheres, o sexo. Tem fama de ter participado em várias festas e orgias...
Já que era obrigado a estar no futebol, eu aproveitava, não é? Até casar pela primeira vez eu era como o Michael Douglas, o ator, que tinha uma adição pelo sexo.

Teve mais mulheres do que golos na carreira, é isso?
Muito mais. Muitas mulheres famosas, mas isso não pode dizer não, que dá até processo. Aliás, o realizador do filme teve que omitir algumas partes para não ter problemas desses.

Se esse convívio com muitas mulheres bonitas sempre fez parte do entorno dos futebolistas, a homossexualidade continua a ser um tema tabu. Encontrou homossexuais nos balneários que frequentou?
Vários. Há homossexuais em todas as profissões, no futebol também. Aliás, tive um presidente de um clube no exterior que era homossexual e eu era dos poucos que sabiam. E ele não me queria deixar sair porque sabia que eu sabia. Mas eu respeito todo o mundo, nunca iria revelar essa história para ninguém. Aliás, estas minhas histórias só saíram cá para fora porque aqui há uns anos alguns jogadores começaram a contar as histórias do Kaiser. E então eu tive de assumir.

Também diz ter salvado muitos jogadores e servido de "babá" de alguns na noite...
É, fui mesmo. Dei conselho, arranjei professor... Vi muitos perderem-se na bebida. Sobretudo depois de deixarem de jogar, sabe? Costuma dizer-se que um jogador morre duas vezes e a primeira é quando termina a carreira.

Considera-se uma espécie de Robin Hood, um vingador dos futebolistas. Porquê?
Ah, porque os dirigentes passam a vida a enganar os jogadores. Então, eu passei a vida a enganá-los a eles.

Hoje era impossível uma história como a sua?
Era. Hoje em dia, com a internet, era impossível enganar esses clubes todos.

O que faz hoje em dia? Sobrou o quê do dinheiro do futebol?
Sou personal trainer de Wellness Fitness Masters, uma vertente do fisiculturismo destinada a mulheres acima de 40 anos que desejam desenvolver um físico menos musculoso. Fui eleito treinador do ano por cinco federações, fui convidado na semana passada para vice-presidente da Brasil Fitness Show e tenho dois programas televisivos sobre o Wellness Fitness. Sou muito melhor nisso do que no futebol. Do futebol, sobram dois apartamentos, mas principalmente a cultura, a admiração e o respeito.

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