Big Mal & Companhia. Os bastidores da dobradinha do Sporting em 1981/82

Livro de Gonçalo Pereira Rosa recupera a toda a história de uma das temporadas mais frutífera do clube leonino, sob o comando técnico do inglês Malcolm Alisson e sob a presidência de João Rocha

A história temporada de 1981/82, em que o Sporting de Malcolm Alisson conquista campeonato e Taça de Portugal, é uma das mais memoráveis de sempre do clube leonino. Além dos golos de Manuel Fernandes e de Jordão, há centenas de histórias de bastidores dessa caminhada triunfante, narradas no livro Big Mal & Companhia, lançado este mês, através de recolha documental e dezenas de entrevistas a quem viveu essa época por dentro.

A escolha do treinador inglês e as suas excentricidades, a dedicação do presidente João Rocha, a surpreendente contratação de António Oliveira e a mítica expressão "por cada leão que cair, outro se levantará", as manias do guarda-redes húngaro Meszaros, os atritos no balneário, os invulgares estágios, os primórdios da Academia do Pelado e os dérbis da época relembrados ao pormenor constam na obra de Gonçalo Pereira Rosa, que contempla histórias capazes de soltar gargalhadas e de esbugalhar os olhos.

O DN faz aqui a publicação do capítulo quatro, dedicado a Malcolm Alisson e aos seus primeiros meses à frente da equipa.

O rapaz de Dartford e o estágio de Caracas

A Segunda Guerra Mundial terminou há poucos meses, mas dir-se-ia que a Europa ainda fumega depois de seis anos de um confronto inimaginável. Um regimento inglês é destacado para a Áustria do pós-guerra para assegurar a ordem e a transição em Viena. Neste mês de Dezembro de 1945, um camião repleto de soldados circula devagar pelas ruas repletas de refugiados. Os soldados tentam alhear-se da miséria que os rodeia. Conversam sobre a vida que os espera na Grã-Bretanha.

De súbito, vinda do nada, uma mulher com um bebé ao colo atira-se para a frente do veículo. Orquestrara a sua própria morte depois da barbárie a que fora submetida. Recém-chegados a Viena, os soldados são confrontados com uma tragédia indizível, que ficará gravada a fogo nas suas memórias. Malcolm Allison, jovem jogador do Charlton Athletic, ia a bordo desse camião e confessou várias vezes que o incidente e a miséria provocada pela guerra o moldaram para sempre. David Tossel, o seu biógrafo, escreveu que «a desgraça da Áustria reduziu para sempre a prioridade que Allison dava ao futebol. Ele percebeu nesse dia que havia coisas mais importantes».

Neste Verão de 1981, à medida que o voo da KLM cruza os céus com destino a Caracas, palco do penoso torneio agendado para o final da temporada, Malcolm Allison semicerra os olhos e revê o seu atribulado percurso de vida até chegar a este desconfortável banco de avião a partir do qual comanda a comitiva do Sporting.

Não se envergonha de nada: aos 53 anos, vive todos os dias com intensidade. Em breve, dirá mesmo que não consegue perceber o fascínio dos portugueses pelo pior cenário possível, a atracção lusa pela desgraça. Manuel Pinto Coelho, médico do Departamento de Futebol durante a época de 1981-1982 e principal confidente do inglês, lembra: «Allison chamava-nos o povo do If, do Se... Sempre a pensarmos "E se corre mal, e se a outra equipa ganhar, e se o jogador se lesionar..." É uma mentalidade completamente oposta à dele, que ia para o campo, para o treino ou para a vida sempre a pensar no melhor cenário.»

Aos 53 anos, Malcolm sente necessidade de reconhecimento, de louvor. Saíra do futebol inglês para o exílio sem que se desse por isso, sem o Bang característico do final da ópera. Acumulara mais troféus do que a maioria dos treinadores da sua geração, fizera pequenos milagres desportivos, mas saíra do seu país sem parangonas. O inglês agita-se na sua cadeira. It,s not too late, pensa talvez para os seus botões.

A memória leva-o de volta para os Alpes. De alguma forma, o treinador que o mundo conheceu foi cinzelado pelo serviço militar naquelas circunstâncias. Conhecedor da sua capacidade atlética, o exército inglês tirou o maior partido possível do mancebo à sua disposição. Enviou-o para Cortina d"Ampezzo, a estância dos privilegiados, para participar nos campeonatos militares de esqui. Em termos desportivos, foi péssimo, como se esperaria de alguém que nunca praticou a modalidade, mas Allison tomou contacto ali pela primeira vez com a boémia, dos charutos e da bebida, das mulheres e da vida social. «Percebi naquela altura que nunca mais me satisfaria com uma vida comum», contou muito depois. «Tinha de ter comigo toda aquela cor, aquele entusiasmo todo.»

Dos Alpes, o turbilhão das memórias leva-o de regresso a Wembley e ao dia 25 de Novembro de 1953. Entre os milhares de espectadores no estádio londrino preparados para ver a Velha Albion esmagar a des- conhecida Hungria está um rapaz alto e franzino. A selecção inglesa nunca perdera um jogo no seu território e o público londrino zomba do perfil pouco atlético de alguns húngaros, um dos quais dono de uma barriga proeminente. Uma hora e meia depois, a troça termina.

A Hungria vence a Inglaterra por 3-6 em Wembley no «jogo do século», recusando a tacanhez do kick and rush, trocando posições dentro do campo e exibindo destreza técnica nunca vista nas ilhas. O gordinho, a propósito, chamava-se Ferenc Puskas e acabara de transmitir uma lição duradoura ao jovem de 26 anos que, no estádio, pressente que o futebol acabou de mudar para sempre. Ao contrário dos seus conterrâneos, Allison privilegiará sempre o talento sobre a força física. Retirará mais prazer do galope selvagem de um extremo do que do trote ritmado e mecânico daqueles que ganham jogos por repetição de gestos.

Entretido pelas recordações, Allison quase não ouve os atletas ruidosos do Sporting que se manifestam a bordo do avião para Caracas como adolescentes em viagem de fim de curso, balbuciando palavras nesta língua latina que ele se recusará a aprender. A memória é um dispositivo peculiar, com vontade própria, que salta de episódio para episódio sem lógica aparente. Moldado pela guerra e pela boémia, Allison recebeu outra lição na sua campanha militar na Áustria. No Estádio do Prater, o mesmo onde o FC Porto virá a ganhar a Taça dos Campeões Europeus de 1987, os soldados ingleses tinham autorização para assistir aos treinos da selecção austríaca de futebol.

Já sem o prestígio do Wunderteam da década de 1930, a Áustria formava ainda uma equipa sólida e captou de imediato a atenção do jovem futebolista. Ficou cativado pela capacidade técnica colocada em prática para escravizar a bola. Nada havia de rude ou casual na abordagem daqueles futebolistas. Era tudo diferente do que Allison conhecia no Charlton. Em Inglaterra, treinava-se sem bola.

Os treinos britânicos eram físicos e a maior parte dos clubes era gerida por um secretário-treinador, que os directores viam com frequência como um moço de recados. O manager era um administrador, mais do que um treinador: Mike Summerbee, glória do Manchester City, contou que Joe Mercer, o manager distante do clube enquanto Allison foi treinador de campo, chegou a alertar os jogadores para os perigos que enfrentariam da equipa do Sunderland quando o adversário com que se preparavam para jogar era o Wolverhampton. Acreditava-se sem fundamento que, se os jogadores não tocassem na bola durante a semana, teriam mais «fome» ao sábado à tarde. Durante o jogo, pedia-se aos jogadores que corressem como loucos até não poderem mais - do banco, não provinha uma instrução, uma sugestão.

No Prater, Allison toma contacto com outros princípios. A bola está sempre presente. «É esta a onda do futuro», intuiu de imediato. Meses depois, ao regressar ao Charlton e tomar contacto com os mesmos métodos de treino anteriores à guerra, o jovem futebolista conclui que entrara numa máquina do tempo, mas viajara na direcção errada.

Por paradoxal que possa parecer, o futebol inglês perde o comboio do futuro após a vitória da sua selecção no Campeonato do Mundo de 1966. Allison dirá várias vezes que o triunfo da equipa de Alf Ramsey na final contra a República Federal Alemã foi um presente envenenado, sugerindo à nação que as velhas tácticas e sistemas seriam perpétuos. «Ramsey colocou um garrote no futebol inglês e impediu o fluxo de criatividade vivido nas outras nações», comentou na televisão inglesa na década de 1970. Sentença incómoda, mas correcta.

Ao romper com o Charlton, Allison fora convidado a ingressar no West Ham, oásis de liberdade no futebol londrino. Embora ainda fosse atleta profissional, pediu também a responsabilidade de acompanhar os jogadores mais jovens da formação. Desenhou esquemas variados de treino para quem quisesse aderir. «O treino não pode ser sempre igual», lembra-se o defesa direito José Eduardo de o ouvir dizer mais tarde no Sporting.

Enquanto jogador, introduziu dinâmicas inéditas em Inglaterra, como o aquecimento antes do jogo em pleno relvado, com alongamentos e sprints. O clube foi dos primeiros a trocar as pesadas camisolas de linho com botões pelas camisolas modernas, de manga curta e decote em V. Allison chega a puxar da tesoura para cortar o excedente das camisolas. Tomam-no por excêntrico em Upton Park, mas não o travam.

Na temporada de 1957-1958, quase a completar 30 anos, Allison sofre o revés da sua vida. Nos treinos de início de temporada, acaba quase sempre em dificuldades, espumando e arquejando. Sempre liderara o pelotão de corrida e percebe que algo está terrivelmente errado. Começa por associar a dificuldade respiratória à pandemia de gripe asiática que assolara Inglaterra nesse Outono, mas a tosse não cessa. No hospital, recebe a notícia temida: sofre de tuberculose e um dos pulmões tem de ser inutilizado para que possa sobreviver. Chora como uma criança.

Teimoso, o futuro treinador do Sporting recusa aceitar as implicações do diagnóstico. Passa meses num sanatório enquanto os colegas asseguram a promoção à Primeira Liga inglesa. Na temporada seguinte, apresenta-se ao serviço. É a última escolha do treinador Ted Fenton, o elemento quase extravagante do grupo de trabalho já formado. Treina como um mouro, quer a oportunidade de um jogo - um jogo só - no escalão principal. Aproxima-se a ocasião: para defrontar o Manchester United em 8 de Setembro de 1958, Fenton tem todos os centrocampistas lesionados. Resta-lhe o veterano Allison e um miúdo de 17 anos que esteve prestes a ser dispensado no Verão, sendo salvo apenas pelo conselho de Malcolm Allison: «Este vai ser especial.» O rapaz fica.

Para o jogo com o Manchester, Fenton decide-se pelo mais novo, Bobby Moore de seu nome, que nunca mais largará a camisola 6 do West Ham e da selecção inglesa. Moore contou que chegou a pedir em lágrimas para que a escolha recaísse sobre o seu mentor. Não foi. Os deuses do futebol têm humores e pregam partidas. Malcolm Allison nunca fará, como jogador, um único encontro no escalão principal em Inglaterra.

Para Malcolm, essa noite é o fim da linha: em Novembro, escreve ao treinador e renuncia à carreira profissional. Nunca mais esquecerá a injustiça e, no seu ano de ouro no Sporting, ao ganhar todos os troféus nacionais em que competiu, não se esquecerá dos excedentários da equipa, concedendo alguns minutos de jogo a Victor Esmoriz na partida de consagração com o Rio Ave (7-1), ao guarda-redes António Fidalgo na vitória sobre o Estoril (0-3) e a Paulo Meneses no triunfo da Taça de Portugal (4-0). Melhor do que ninguém, Allison sabia o significado de estar à beira da fonte e não poder beber. «Esse gesto, esses minutos que joguei contra o Estoril, fizeram-me sentir campeão», reconhece ainda hoje Fidalgo.

Quase a chegar a Caracas, neste voo interminável que leva o Sporting ao encontro do Valência e do Millonarios de Bogotá, Malcolm Allison tem tempo para uma última reflexão. Recorda talvez a festa de homenagem em sua honra em 1959. Os dois anos sabáticos nos quais, por admissão própria, só se alojou em hotéis, bebeu, comeu e gastou dinheiro nas corridas de cães. Frustrado com a vida, foi proprietário efémero do restaurante Napoleon"s e do clube nocturno Artists and Reportoire, como contará à jornalista Maria João Avillez. Foi também o melhor cliente dessas casas - o que nunca é bom sinal para o negócio. No Soho londrino, conheceu a nata da capital e gente que vivia no lado negro da lei. Garantirá várias vezes que um dos seus parceiros de bebida foi Buster Edwards, celebrizado mais tarde como um dos 15 participantes no grande assalto ao comboio-correio de Glasgow de 1963.

Aos poucos, Big Mal regressa ao futebol, o seu único amor. Treina a equipa universitária de Cambridge, depois o Bath. Segue-se o Plymouth, onde a criatividade do jovem técnico começa a despontar: inventa treinos na mata, na praia, em áreas montanhosas. Nunca repete um treino. Tem gosto em permitir que os jogadores se divirtam quinze minutos com a bola antes do início de cada sessão, alimentando a paixão pelo jogo. Aposta em jovens e mantém diálogos individualizados com cada jogador, como fará depois no Sporting. Não grita, não espuma de raiva. Nunca percebeu para que serviam as fúrias dos treinadores contra os atletas bloqueados. A muitos repetirá o conselho que deu a Bobby Moore: «Pensa como Di Stefano: quando a bola vem na tua direcção, imagina já o que irás fazer de seguida.»

Enquanto o avião da comitiva leonina toca suavemente a pista venezuelana, Malcolm Allison olha para Artur Sousa Marques, vice-presidente do Sporting e líder da comitiva na ausência de João Rocha. O inglês sempre se deu mal com a autoridade - no Plymouth, quando intuiu que a direcção não toleraria mais excentricidades e se preparava para o despedir, apareceu no clube com o seu melhor fato e um charuto na mão. Anos mais tarde, no Manchester City, respondeu à suspensão federativa, que o obrigava a ver jogos da bancada, fazendo-se acompanhar da actriz norte-americana Jane Russell, a ponto de os fotógrafos no campo direccionarem para o casal as objectivas e ignorarem o jogo. E, claro, houve o escândalo no Crystal Palace, quando o clube soube que Allison levara a actriz de filmes soft porno Fiona Richmond para a banheira de hidromassagens do clube. Foi despedido por... libertinagem, mas «valeu a pena», disse muito mais tarde.

A fama, mesmo na era anterior à internet, precede-o. Logo na primeira vez em que estivera em Alvalade para assinar contrato, o jornalista Rui Santos, de A Bola, perguntara-lhe directamente: «É conflituoso, mister?» Hesitou por um segundo, mas logo retorquiu: «No, no.» Não era uma resposta totalmente franca.

Malcolm não acerta sempre, claro, mas tem olho para o talento e, por ter sido jogador, sabe distinguir a dedicação da ronha. «Como será agora no Sporting?», pensa. Já percebeu, durante as horas da viagem, que o clube vive num regime quase amador. Embora viaje com o estatuto de observador, já que o comando técnico está entregue em teoria ao jugoslavo Srecko Radisic, não há ninguém a bordo que não saiba que o novo patrão do futebol será ele. E, à segunda palestra, tomará de imediato as rédeas, remetendo Radisic para as funções nas quais este é mestre - a preparação física.

Ainda em Lisboa, estranhara a desorganização galopante do novo clube. Da Venezuela, exigiam que, pelo menos, seis internacionais estivessem presentes pela equipa em cada jogo, sob risco de não pagamento do cachet. A situação exigira até que João Rocha pedisse a Ademar que simulasse uma lesão no último jogo oficial da temporada, de forma a validar a sua exclusão da selecção nacional e a permitir a sua utilização pelo Sporting na América do Sul. «Recusei», lembra o centrocampista. «Tinham tido muito tempo para tratar do assunto e não era ali que me fingiria aleijado.»

À partida para o aeroporto, no dia 4 de Junho de 1981, num autocarro em risco de desintegração, Allison percebe que a nova estrela, António Oliveira, não pode seguir viagem, pois não é ainda jogador do clube. Rui Jordão, Manuel Fernandes e Eurico Gomes viajam para a Venezuela sob promessa de que apenas jogarão com o Valência no dia 6, pois regressarão de imediato a Lisboa para representar a selecção. O guarda-redes Joaquim Melo fica retido na Portela depois de exibir um passaporte sem a indispensável fotografia. Pior: na comitiva, segue um desconhecido, Osvaldo Jorge, oriundo do Desportivo de Beja, que ao que tudo indica viaja para prestar provas e compensar as baixas. Valeria a pena tanta balbúrdia para um torneio de fim de época? «São três mil contos de cachet, mister!», explicam-lhe. Mais 3600 em caso de vitória.

Allison sabe que as primeiras impressões são decisivas. Não fala uma palavra de português e o intérprete Jaime Lopes trará uma intermediação não desejada entre ele e a equipa. Percebe que Virgílio e o nigeriano N"Wokocha dominam o inglês e designa-os de imediato como tradutores. «Allison gostava muito do Virgílio», conta Manuel Pinto Coelho, o médico, nesta altura ainda ligado ao Estoril. «Chamava-lhe Virgil.» Cria-se simbiose entre jogador e treinador. «Com um pouco de malícia e de boa disposição, a malta começou a dizer que eu era o filho dele porque ele falava na minha direcção e eu traduzia as instruções», conta Virgílio. «"O teu pai" foi uma expressão que me acompanhou durante essa temporada.»

Christian N"Wokocha é outra figura peculiar. Como estrangeiro, não tem qualquer hipótese de entrar no grupo, pois a lei só permite a utilização de um jogador não nascido em Portugal por partida e o húngaro Meszaros e o angolano Lito levam enorme vantagem. Mas N"Wokocha fica, jogando pelas reservas. «Era completamente doido, no bom sentido», conta Esmoriz. «Tinha tido formação universitária nos Estados Unidos e media quase dois metros - uma viga. Um autêntico animal de área, mas não tinha hipótese com um ataque como o nosso. O mais engraçado é que chegava quase sempre ao estádio em carros da embaixada da Nigéria. Sempre impecavelmente vestido.»

Nos primeiros treinos em solo venezuelano, Big Mal marca logo o tom do que será o seu consulado. Francisco Barão, o lateral direito da equipa, lembra-se de chegar ao campo de treinos sob um calor escaldante. «Lá estava ele, uma figura enorme, em tronco nu, imponente, de calções vermelhos e uma fita na cabeça pronto para dar o treino.» O filme Rambo só estreará um ano depois, mas esse é o estereótipo que os membros da equipa hoje usam para qualificar a figura. «O campo à nossa disposição era pequeno, mas Allison foi para a frente do pelotão marcar o ritmo. Se alguém tentava ficar para trás, ele incentivava
e puxava-nos para a frente quase à chapada. Foi uma primeira impressão muito forte.»

A atitude não era inocente - por um lado, Malcolm estabelece assim perante Radisic a sua posição. O jugoslavo orientara a equipa no final da temporada de 1980-1981 e vários jogadores reconhecem que o antigo preparador físico do Real Madrid mantinha a expectativa de assumir a direcção da equipa. Aliás, como Eurico Gomes relata, o mesmo sucedera quando Rodrigues Dias dirigira a equipa do Sporting em 1979 e «ocorrera entre ele e Radisic uma cena no balneário, em família, de confronto entre os dois, que foi dura e exagerada, mas que, para a época, fez sentido». Por outro lado, como Malcolm Allison explicará 17 anos mais tarde a André Pipa e José Lorvão, através das piadas e dos exemplos mímicos, «passados dois dias, bang!, já tinha a equipa na mão. "Tu fazes isto, tu fazes aquilo, vejam como eu faço." Ao fim de dois dias, sabia que lhes tinha caído no goto.»

Talvez tenha demorado um pouco mais do que dois dias. Virgílio dá conta da estranheza dos treinos iniciais na Venezuela. «Pedia-nos exercícios a que não estávamos habituados, sobretudo eu, que vinha do Famalicão. Semanas depois, aquelas rotinas revelaram-se acertadíssimas. E lembro-me dele impecavelmente escanhoado e equipado, pronto para começar o treino exactamente à hora marcada», diz Virgílio. «Nesse aspecto, fazia lembrar outro inglês que treinou igualmente o Sporting, o Jimmy Hagan. Hagan passava de manhã pela cabina dos jogadores, soava o seu apito e começava a correr. Chegado ao relvado, continuava - quem não estivesse, não treinava.»

No entanto, foi na noite de Caracas que o inglês de facto caiu no goto da equipa. «Era um estágio de fim de época, por tradição mais livre», conta Barão. «Chegámos a Caracas e só teríamos jogo quatro ou cinco dias depois com os Millonarios. Por isso, decidimos perguntar ao treinador se permitiria que os jogadores saíssem um pouco nessa noite para espairecer.» Era um teste ao inglês. Manuel Fernandes e Barão, capitão e subcapitão, levantam-se, dirigem-se à mesa dos dirigentes e técnicos e pedem permissão para a saída nocturna. Sousa Marques traduz para Malcolm e este olha os jogadores nos olhos, pedindo-lhes para esperarem pelo fim do jantar. «Depois do jantar, anunciou que, não só sairíamos, como sairíamos todos juntos. A equipa toda, sem excepções. Para mim, nasceu nessa noite o espírito de grupo - para onde um for, os outros vão também», conta Barão2. Até o médico, Branco do Amaral, a quem os jogadores colocam a alcunha pouco lisonjeira de pé de chumbo por balançar como um autómato a cada passada, e o massagista Manuel Marques, sairão nessa noite épica.

«A atitude caiu-nos bem», acrescenta Ademar. «O capitão de equipa tinha informado que o grupo gostaria de beber uma cerveja se ele não se importasse. E foi muito reconfortante ouvi-lo dizer: "Finalmente! Vejo que vocês bebem. Estava a ver que ninguém bebia aqui." A malta estava sempre a medir o pulso aos treinadores e ficou encantada nesse dia.»

Guiado por tão invulgar cicerone, o grupo experimenta várias discotecas de Caracas. Compra garrafas de champanhe, que giram de mão em mão. «Fui com ele e mais dois colegas no táxi e ele passou-me a garrafa para a mão. Bebemos todos à inglesa. E isso era inaudito num treinador profissional», lembra José Eduardo. No dia seguinte, passada a descompressão, repete-se a imagem do Rambo. «Toda a equipa ficou a saber com que contava», lembra Barão. «O jogador português gostava de uns certos excessos, mas esses excessos pagam-se caro no treino do dia seguinte. Quem cometia mais erros sofria mais no dia seguinte, sobretudo porque o treino de futebol naquela época era muito virado para a condição física.» Vocacionado para as grandes tiradas, José Eduardo resume a máxima do treinador inglês: «Vive como um leão, mas treina sempre como um leão.»

Os jogadores respondem em campo. Eurico e Ademar impressionam logo. «Eurico magnificent e Ademar very well», comentará Allison a Daniel Reis e João Querido Manha, da Gazeta dos Desportos4. Freire, o veloz extremo, chama a atenção. Jorge Schnitzer, enviado especial de A Bola, escreve, com uma ponta de exagero, que «Freire pode tornar-se o [Karl-Heinz] Rummenigge português»

Dias depois de empatar a zero com o Valência, o Sporting vence mesmo o Torneio de Caracas, batendo o Millonarios por 3-2, com dois golos de Ademar e um de Freire. Os dois jogadores marcam pontos no ranking do novo treinador, mas sem euforias. «Percebi que lhe tinham agradado as minhas exibições e até fui o melhor jogador do torneio, mas acho - depois de também ter trabalhado com ele no Vitória de Setúbal e no Farense - que Allison precisava sempre de um ou dois jogadores predilectos», diz Ademar6. E esses amores ao longo da época de 1981-1982 serão outros.

Freire será, nos primeiros seis meses da nova temporada, a aposta decisiva de Malcolm Allison, que adopta logo na Venezuela este extremo à inglesa. «Gostava de mim, de me ver a correr no campo - eu era muito rápido e os ingleses gostam de jogadores assim, que vão directos ao assunto», conta o jogador. «Aliás, na Venezuela, a instrução que mais ouvi foi: "Go forward" - "Vai para a frente". Allison odiava o passe para trás. Só tinha um caminho em mente: a baliza. Foi ele que me aconselhou frequentemente a solicitar lançamentos de bolas, a ganhá-las até à linha de fundo e a centrar depois para trás, que são os centros mais difíceis para a defesa contrariar.»

Os treinos com a dupla Allison-Radisic modificam-se. O jugoslavo, cinco vezes campeão nacional do seu país em 800 metros, coordena todas as tarefas físicas. O inglês estimula a postura agressiva que pretende. «Chamo-lhe o treino com pressing e já o vi erradamente atribuído a Ericson, que chegou no ano seguinte para o Benfica», diz José Eduardo. «É incorrecto. Foi Allison que o introduziu em Portugal. O pressing em todo o campo não chega só porque o treinador o pede para o dia de jogo - treina-se. Em exercícios específicos, de sete contra cinco, de três contra dois e no desencorajamento do jogador que leva a bola a transportá-la com muitos toques. Até o guarda-redes adversário nós pressionávamos. Aos 80 minutos de cada encontro já estávamos de rastos, mas o trabalho estava feito. Se reparar, a equipa de 81-82 praticamente não resolve nenhum jogo nos minutos finais.»

Com frequência, enquanto dialoga com os jogadores nos treinos, Malcolm atira a bola contra o peito daqueles que estão mais desprevenidos. «Keep your eyes open, lads.» Quer uma equipa de falcões, atentos ao mínimo pormenor e que caiam sobre o adversário sempre que este ganhar a bola. «Exigia três homens em cima do portador da bola», acrescenta José Eduardo. «Um para ser batido, o outro para obrigar o adversário a tentar a finta e o terceiro para ganhar qualquer ressalto.»

A filosofia, como é natural, exige forma física e disponibilidade. E solidariedade. «É muito fácil um jogador que tem a missão de dobrar um companheiro retrair-se e pensar: "Tu é que ganhas o grande ordenado e tens as críticas favoráveis na imprensa, agora resolve lá sozinho."», acrescenta Marinho, o centrocampista nascido em Macau que se juntara à equipa em 1978. «Nesse ano, havia grande entreajuda. Éramos irmãos em campo.»

Francisco Barão evoca outra faceta do treinador. «Desde o primeiro dia, não impôs regras. Disse-nos que gostava de funcionar com pessoas inteligentes às quais concedia liberdade para poder exigir responsabilidade.» Era uma mensagem inédita num mundo onde os treinadores não se misturavam com a equipa por medo de perderem a autoridade. «Anos antes, em 1974, quando treinara o Sporting, Alfredo Di Stefano chegara a sentar-se numa mesa longe do resto da equipa, ostensivamente de costas para os jogadores», lembra João Xara Brasil. Quando o despede após um único jogo do astro argentino à frente da equipa do Sporting - uma derrota em Olhão -, João Rocha não poupa nas palavras: Di Stefano «passou pelo Sporting como um turista malcriado»

Allison é a antítese desta corrente. «Chegava ao pé de nós e não dava apertos de mão: dava-nos palmadonas amigáveis no ombro. Tanto fazia se era o goleador da equipa ou o terceiro guarda-redes. Tratava todos da mesma forma», acrescenta Marinho.

Com a vitória num terceiro jogo particular frente ao Deportivo Italia (3-2), o Sporting termina por fim a temporada de 1980-1981 na Venezuela e carrega baterias para a nova época. É um ano importante, o das bodas de diamante do clube. Neste 75.º aniversário, João Rocha deseja recuperar os troféus perdidos e investe na equipa de futebol e nas infra-estruturas. Até final da temporada, iniciará as ansiadas obras do fecho do peão, que vão completar a configuração do Estádio José Alvalade, tal como ele fora de início pensado. Receberá de Ramalho Eanes, presidente da República, a distinção do clube como membro honorário da Ordem do Infante pelos serviços prestados ao desporto nacional - aliás, os próprios filhos do presidente da República são associados do Sporting e praticam natação nas novas piscinas aquecidas do insuflável do Campo Grande. E procurará consolidar a imagem do clube na Europa do futebol, candidatando-se até a receber a final da Taça dos Vencedores das Taças em Lisboa em 1982.

A época foi imaginada para coroar o mandato de Rocha, mas será um inglês a colher os louros afectivos.

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