Serena reabre "Batalha dos Sexos": tem razão, ou perdeu a vantagem?
Serena Williams recuperou para a ribalta uma luta antiga, e mítica, no ténis: a igualdade de género, ameaçada pela maior permissividade para com a "agressividade" masculina, por comparação com a menor tolerância para com a feminina, como se admite no próprio meio tenístico. Porque na final do US Open, perdida no sábado para a japonesa Naomi Osaka, 20 anos, a veterana de 36 anos cometeu três flagrantes violações do código de conduta (faltas, puníveis regulamentarmente). E, sobretudo, porque apontou o dedo a um árbitro tido como "equilibrado e sensato, sejam as partidas disputadas por homens ou mulheres".
Eis as "violações do código de conduta". "Coaching" (orientações do treinador durante a partida são proibidas - e o próprio treinador admitiu-as publicamente), partiu uma raquete e 'abusou' verbalmente do árbitro português Carlos Ramos, chamando-lhe "ladrão" e "mentiroso". Todas as infrações foram flagrantes. E visíveis e audíveis para milhões de pessoas através da televisão e para as 24 mil pessoas presentes no Estádio Arthur Ashe, em Flushing Meadows, Nova Iorque. E ainda para os dois juízes árbitros presentes no Estádio Arthur Ashe, em Flushing Meadows, Nova Iorque.
A primeira advertência recebeu-a por receber instruções do treinador Patrick Mouratoglou, que o confirmou em declarações à ESPN. "Vou ser honesto. Sim, dei-lhe instruções, mas acho que ela nem sequer estava a olhar para mim. Estava a dar instruções como 100% dos treinadores dá. O Sascha [Bajin, treinador de Naomi Osaka] também esteve a dar instruções. Isto é hipócrita. Não entendo", admitiu Mouratoglou.
Os ataques à autoridade de Serena são lendários. Em 2009, segundo os tablóides americanos (nem os árbitros, nem Serena desmentiram...), foi isto que disse a uma juíza de linha que lhe assinalou uma falta (pisou o campo de jogo antes do serviço): "Juro por Deus que vou pegar no c. da bola e enfiá-la pelo c. da tua garganta abaixo". Isto aconteceu na derrota frente a Kim Clijsters nas meias-finais do US Open.
"O livro de regras do grand slam permite uma investigação conduzida pelo administrador do comité do grand slam para ser determinado se a conduta de Ms. Williams se enquadra numa ofensa grave e se serão impostas penalidades adicionais. A investigação começou agora", relatou, em comunicado, o juiz árbitro Brian Earley. A conduta da atleta foi considerada "antidesportiva" e valeu-lhe uma multa de 7.300 euros, mais cerca de 347 euros por ter partido a raquete nesse jogo. A investigação ilibou-a, na altura, da suspensão, que está prevista no livro de regulamentos. Por ter chegado à semifinal, embolsou 243 mil euros.
Ainda se lembra do parágrafo anterior? Brian Earley, insultos a uma juíza e raquete partida. E US Open. Pois. Sábado, final do US Open e Serena irrompe em lágrimas enquanto confronta o juiz árbitro... Brian Earley. "Você conhece o meu caráter", disse com a voz embargada. "Isto não é correto". E prosseguiu. "Perder um jogo por dizer aquilo ["ladrão" e "mentiroso"] não é justo. Quantos homens o fazem? Há muitos homens que já disseram muitas coisas por aí. É porque sou uma mulher e isso não é correto". E também abordou Donna Kelso, supervisora da WTA: "Trabalhei tanto para estar nesta posição".
Os juízes árbitros são os supervisores dos árbitros de cadeira (o juiz principal), que foi a função de Carlos Ramos na final feminina do US Open. Donna Kelso também tinha esse poder. Os dois, Kelso e Earley, desceram ao court e, perante as evidências, decidiram manter as decisões de Carlos Ramos. Ou seja, Serena foi apanhada em flagrante delito.
"A Serena é boa moça, mas é muito competitiva e no US Open é muito mimada, por jogar em casa", enquadra Jorge Cardoso. "O Carlos [Ramos] ficou de consciência tranquila, as violações do código de conduta foram todas registadas pela televisão. Não é daqueles jogos em que se sai angustiado a pensar que se pode ter errado", diz Jorge Cardoso, quadro da Federação Portuguesa de Ténis responsável pela formação de juízes e supervisão dos torneios nacionais.
No meio tenístico, admite-se que haja uma maior tolerância para a agressividade masculina. Mas o presidente da Federação Portuguesa de Ténis desconhece. "Nunca ouvi falar disso. Foi a defesa dela, que queria ganhar um grand slam depois de ter sido mãe [há um ano, regressou à competição há pouco]. Queria ganhar em casa", diz ao DN Vasco Costa. "Claro que sim, são todos [homens e mulheres] tratados por igual", acrescentou.
A realidade pode não ser tão igual assim para os dois géneros. "Depende dos árbitros, mas alguns são mais tolerantes para com a maior agressividade dos homens", disse fonte ligada à modalidade. Já Carlos Ramos construiu a fama de "rigoroso", independentemente de quem tem pela frente - seja mais poderoso, seja homem, seja mulher. "Ele já arbitrou as finais de todos os grand slam, da Taça Davis e da Fed Cup. Tem de ser rigoroso, ou não o nomeavam para finais dos mais importantes torneios do mundo", desenvolve Vasco Costa.
"Há dois anos, no Estoril Open, advertiu Richard Gasquet por razões semelhantes. Deu-lhe uma primeira advertência por abuso verbal e uma segunda por partir a raquete. Sendo a segunda, valeu um ponto para o adversário", recupera ao DN Jorge Cardoso, também ele juiz árbitro (na próxima semana vai dirigir partidas de um torneio internacional para jogadores em cadeira de rodas, em Setúbal).
"Pode haver árbitros que sejam menos rigorosos do que o Carlos e muitas vezes sejam menos objetivos a assinalarem o 'coaching', mas o que aconteceu foi tudo muito flagrante. Não há dúvidas nenhumas. Não fez nada que não fizesse a um homem", acrescenta Vasco Costa.
Na batalha dos sexos, um termo histórico para a modalidade desde 21 de setembro de 1973 (duelo entre o chauvinista Bobby Riggs e a campeã, e futura ativista, Billy Jean King), Serena pode ter desperdiçado uma pequena vantagem da razão - de haver mais tolerância para a agressividade masculina. Mas chamar "ladrão" a um árbitro de cadeira, partir uma raquete e haver um sem fim de câmaras a registarem todos os movimentos, inclusive as flagrantes instruções do treinador, retiram-lhe argumentos nesta luta.
Porque se há uma acesa discussão sobre a superioridade de uns sobre outros (masculinos sobre femininos, alegação de alguma forma na base da argumentação sexista de Rigs há 45 anos), com argumentos bastante incendiários, como os de Djokovic (os homens deviam ganhar mais porque garantem maiores audiências, logo mais receitas para distribuir), por outro há os factos de sábado. E o perfil do juiz português.
Carlos Ramos, que vive em Lyon há muitos anos (casou com uma francesa) é quadro da ITF (Federação Internacional de Ténis, sede em Londres) com a incumbência de dirigir partidas nos quatro Grand Slam, orientar e ministrar cursos de formação de árbitros internacionais e desempenhar as funções de árbitro de cadeira ou juiz árbitro na Taça Davis ou Fed Cup. "Obviamente que está entre os melhores do mundo", assinala o presidente da federação. "É muito equilibrado e sensato", junta-lhe Jorge Cardoso.
"O coaching [treinador dar orientações à/ao sua/seu atleta] devia ser permitido em cada ponto no ténis. Não é, e como resultado uma jogadora é penalizada pelas ações do treinador. Isto não devia acontecer", disse Billy Jean King, que aos 74 anos mantém o ativismo pela igualdade de género. "Ela fez muito bem em reclamar pelo duplo critério. Se uma mulher grita, é histérica, se um homem o faz, está a defender os seus direitos e não é penalizado", disse ainda Billy Jean, a estrela mundial que venceu 12 grand slam e ajudou a criar o circuito feminino profissional, gerida pela WTA (Women Tennis Association - Associação de Ténis Feminino).
Billy Jean, 74 anos, a primeira mulher a chegar aos 100 mil dólares no ténis, luta pelos direitos das atletas femininas desde o início da década de 70 e ficou mundialmente célebre por disputar, e ganhar, "A batalha dos sexos" frente ao fanfarrão Bobby Riggs, então já retirado do ténis, aos 53 anos. Riggs queria provar que as mulheres não tinham lugar no desporto.
Depois de uma primeira recusa, a tenista avançou após a derrota da australiana Margaret Court com o desafiador e viciado em apostas Riggs. Que gozou o quanto pôde, rebaixou as mulheres até King o arrasar (3-0) perante mais de 90 milhões de espectadores. Mais de 30 mil, a 20 de setembro de 1973, estavam nas bancadas do ginásio Reliant Astrodome (Houston, Texas). E estima-se que cerca de 90 milhões de pessoas seguiram a partida pela TV. O ano passado, Emma Stone e Steve Carrol deram vida aos dois protagonistas num filme que recriou o famoso embate (Battle of the Sexes - Batalha dos Sexos, realizado pela dupla Jonathan Dayton e Valerie Faris).
Serena Williams sujeitou-se ao julgamento do comité de majors (onde se incluem os grand slam). "Eventualmente, vai ter um processo disciplinar. Mas chamar 'ladrão' a um árbitro não é motivo para expulsão. Vai ser multada em dezenas de milhares de dólares, mas isso é o que menos a preocupa", explica Jorge Cardoso. E ficou a saber-se durante este domingo que a tenista foi multada em insignificantes 14.700 euros.
E é fácil de perceber porquê. O prémio monetário total do US Open é de 59,237 milhões de euros, subindo 17,537 milhões no cinquentenário do torneio, dos 41,700 milhões em 2017. O mais bem pago dos quatro Grand Slam (Wimbledon, Roland Garros e Open da Austrália) entregou 3,341 milhões de euros aos vencedores individuais (Naomi Osaka e Novak Djokovic/Juan Manuel del Potro, final esta noite) e 1,631 milhões para os finalistas derrotados (Serena Williams/Novak Djokovic/Juan Manuel del Potro, final esta noite).
"Começa por receber uma primeira advertência por 'coaching', que é mostrada claramente pela televisão. Depois, comete um abuso de raquete perante toda a gente. Finalmente, comete abuso verbal ao chamar mentiroso e ladrão ao árbitro, que foi bem audível tanto no estádio como nas casas onde se seguia a partida pela televisão", resume Jorge Cardoso. "No ténis, não há muito o hábito de suspender os atletas por x dias ou x jogos. E não deixará de ter algum peso ser uma tenista de topo e dos Estados Unidos", conclui. E teve razão: não há informação de qualquer outra penalidade que não a multa de 14.700 euros.
Se havia a mínima hipótese de dar uma pancada na "batalha dos sexos", Serena acabou por ficar às pancadas no chão (com a raquete) e no árbitro (com a língua destravada).