A história de Apolinho, o comentador de rádio que treinou o Flamengo

Em 1995, o presidente do Flamengo decidiu contratar um radialista sem qualquer experiência de treinador para comandar a equipa. Não ganhou títulos, mas pôs ordem num balneário cheio de problemas
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Corria o ano de 1995, data do centenário do Flamengo. Tinham passado pelo Mengão treinadores como Vanderlei Luxemburgo e Edinho, mas a coisa não tinha corrido bem. E na altura de escolher um novo técnico, Kleber Leite, o presidente da altura, surpreendeu toda a gente: o eleito era conhecido de todos, mas nunca tinha treinado um clube de futebol. Tratava-se de Washington Rodrigues, conhecido como Apolinho, que fazia relatos de jogos de futebol na rádio.

"Eu achei que o Kleber queria a minha opinião sobre a indicação de um treinador. A minha sugestão era o Telê Santana, que ia conseguir acalmar a crise interna, com disciplina, e fazer com que as cobranças externas diminuíssem. Mas ele disse-me que o escolhido era eu", contou à ESPN Brasil Washington Rodrigues, 83 anos, que atualmente trabalha na Super Rádio Tupi, do Rio de Janeiro.

A história desse encontro ao jantar, de onde saiu o convite, foi contada há uns anos pelo próprio, mas com mais detalhes: "Estava a jantar e o Kleber Leite convidou-me para ir ter com ele a um restaurante. Imaginei que queria conselhos sobre o momento da equipa e fui preparado para sugerir a contratação do Telê Santana. Ninguém queria pegar no Flamengo. O papo varou a madrugada. Até que por volta das 3.30 da manhã havia um prato virado na mesa e sem uso. O Kleber disse-me que tinha um nome e pediu-me para eu virar o prato. Quando vi que era o meu apanhei um susto e perguntei-lhe se ele estava a brincar. Pensei rapidamente e aceitei, já que o Flamengo é uma convocação. Foi uma correria. Tinha que me desligar da rádio, TV, jornal. Tudo para evitar conflitos."

O cenário no Flamengo da altura não era de todo o ideial, com várias disputas internas entre jogadores. Havia os que tinham sido contratados ao Fluminense e que chegaram com Edinho, e os mais jovens das categorias de base. Além disso, naquela equipa era preciso ainda lidar com os egos de craques como Edmundo, Romário e Sávio, que se pegaram uns com os outros em várias ocasiões. "Aquilo foi uma convocação. Eu tinha de ir. Eu saí da bancada para comandar a minha paixão", afirmu Apolinho, que na altura tinha 61 anos.

A principal missão do novo treinador era acabar com o clima de guerrilhas internas. E, já agora, tentar que o Flamengo não terminasse o ano sem títulos. Na altura, o único troféu possível era a Supertaça da Libertadores.

"A primeira coisa que fiz foi levar toda a equipa para minha casa e mostrar-lhes um filme com a história do Flamengo. Explicar-lhes o que era jogar neste clube, o que a equipa representava para os adeptos", contou Washington Rodrigues.

"Pedi-lhes que quando entrassem no campo olhassem para as bancadas, nem que fosse só por 10 segundos. Era para eles perceberem que havia ali gente que não tinha comida em casa só para os ver jogar. O que eu queria deles era dedicação. E o discurso funcionou", acrescentou.

A falta de prática para o cargo obrigou a uma logística estranha. Como não estava habituado a ver os jogos ao nível do relvado, Apolinho pediu à direção do clube para lhe instalar uma televisão perto do banco de suplentes para poder seguir o jogo.

As funções eram divididas da seguinte forma: o adjunto Artur Bernardes ficava com a parte técnica do treino e ele com a parte psicológica, ou seja, tentar acabar de vez com os arrufos entre os jogadores. E foi assim que colocou um ponto final na famosa zanga entre Romário e Edmundo, que apesar de colegas de equipas não se falavam naquela altura.

"A minha mulher preparou um lanche para nós. De início eles sentaram-se quase de costas um para o outro. Depois expliquei-lhes como eles eram importantes para mim e para o Flamengo. Eles começaram a falar e no fim já estavam abraçados", contou.

Washington Rodrigues diz que gostou do desafio. Mas, sincero, diz hoje que uma pessoa sem preparação para o cargo não pode ser treinador de futebol: "Treinador tem de ser quem estudou para isso. Cada um no seu lugar."

Apesar de tudo, Apolinho acha que aceitava voltar a treinar o Flamengo - "o futebol é um negócio que não tem explicação". E até dá o exemplo de Jorge Jesus.

"Quando ele [Jorge Jesus] chegou, eu pensei: 'isto tem tudo para dar errado'. Um técnico com desempenho médio na carreira, que não conhecia o Flamengo, que não conhecia os adversários, e que trouxe uma equipa de sete pessoas que sabiam ainda menos do que ele. Mas afinal ele é um fenómeno. Até cartilha de comportamento colocou no clube, algo que nunca funcionou no Flamengo, e deu certo."

Washington Rodrigues comandou o Flamengo num total de 26 jogos, com um registo de 11 vitórias, oito empates e sete derrotas, mas nenhum título. No final de 1995 deixou o cargo e foi substituído por Joel Santana.

Na altura, a contratação de Apolinho para treinador gerou uma enorme polémica no Brasil. O Sindicato dos Treinadores do Rio apresentou uma queixa alegando que "a lei determina que só pode ser técnico quem fez curso promovido pelas federações de futebol." Devido a esse impedimento, Washington assinava a ficha de jogo como dirigente. E não se levantava do banco para dar instruções. Esse papel era desempenhado por Paulo César, o técnico de guarda-redes, que na ficha surgia como treinador principal.

Apolinho ainda voltou a ter um cargo no clube carioca, quando em 1998 o convidaram para diretor do futebol. Um período para esquecer, pois não lhe pagaram salários: "Servir a minha paixão foi o meu pagamento. O Flamengo deu-me uma projeção que eu não tinha. Eu era conhecido no Rio e um pouco no resto do Brasil. A marca do Flamengo colou em mim."

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