"No mar não tenho obstáculos, ao contrário da rua. Sou só eu, a prancha e a água"

A recém-consagrada campeã mundial de surf adaptado, falou com o DN sobre o seu feito e explicou como é que, sendo cega, consegue realizar manobras tão perfeitas dentro de água.

São 16 anos já com muito para contar. Marta Paço nasceu cega, mas isso não a impediu de praticar desporto de alta competição. Depois de ter experimentado o goalball, desporto coletivo com bola praticado por atletas que possuem deficiência visual, aos 12 anos apaixonou-se perdidamente pelo surf. Dois anos depois já se tinha sagrado campeã europeia em surf adaptado e no passado sábado conseguiu o título de campeã mundial, na categoria destinada a competidores com deficiências visuais, no ISA World Parasurfing Championship, que se realizou em Pismo Beach, Califórnia, EUA. Natural de Viana do Castelo, Marta contou ao DN os pormenores da prova, o amor pelo surf e porque o mar é o seu lugar preferido e símbolo de liberdade. Quer ser exemplo e inspirar outras pessoas com deficiência, porque o impossível...

Já tinha sido campeã europeia em 2019. Pode-se assim dizer que o título mundial que agora conquistou não a surpreendeu?
Sim, é verdade que fui campeã europeia em 2019, mas mesmo assim é sempre uma surpresa alcançar um feito desta dimensão, até porque já passaram dois anos do título europeu.

O que recorda da prova? A partir de que momento começou a acreditar que podia ser campeã do mundo?
Havia dois hits em que as duas melhores ondas contavam, independentemente de serem feitas no primeiro ou no segundo hit. O meu primeiro hit foi muito bom, o que me permitiu ter alguma segurança para enfrentar o segundo, pois já tinha duas notas muito altas. O segundo hit foi decisivo para eu perceber que havia algumas hipóteses de poder acontecer. No segundo hit tentei melhorar ainda mais, para ficar com uma segurança a 100%. E felizmente tudo correu conforme o planeado.

Como foram as comemorações em Pismo Beach?
Comemorámos aqui na praia, sobretudo com o meu treinador e com a minha equipa, mas também com as pessoas que estavam na praia. Mas estou desejosa de comemorar em Portugal com a minha família e amigos. Eles estão em Portugal [Marta tinha prevista chegada ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro ao início da madrugada desta quarta-feira].

Chegaram-lhe muitas mensagens de felicitações? Quer destacar alguém em especial?
Tenho recebido milhares de mensagens e já falei com o ministro da Educação [Tiago Brandão Rodrigues], que foi das primeiras pessoas a felicitarem-me.

O Presidente da República também lhe deu os parabéns?
Não, ainda não me disse nada.

Como é que o surf entrou na sua vida?
Tudo começou há quatro anos, quando Viana do Castelo recebeu um meeting europeu de surf adaptado, que envolvia atletas de Espanha, França, Itália e Portugal. Fui convidada a experimentar o surf e fiquei logo completamente apaixonada. Desde então nunca mais parei.

A adaptação foi fácil? Como é que uma pessoa cega consegue realizar manobras de surf tão perfeitas?
É difícil ter um termo de comparação, pois eu sempre fui cega. Mas sempre tive uma grande ligação com o mar, pois várias pessoas da minha família são pescadores e o mar nunca foi um grande obstáculo para mim. Nunca tive medo do mar e sempre estive à vontade lá. Isso contribuiu para que a minha adaptação ao surf fosse natural.

O seu treinador Tiago Prieto acompanha-a sempre ao mar quando vai surfar. Qual costuma ser a vossa estratégia?
Sim, ele vai sempre comigo desde o primeiro dia. Damo-nos muito bem e confio nele a 100%. Quando o meu treinador avista uma onda que lhe parece boa para eu surfar, avisa-me para eu começar a remar. A partir do momento em que estou na onda, fico por minha conta. Ele ajuda-me apenas no início a entrar na onda.

É no mar que se sente melhor e mais livre?
Sem dúvida. No mar não tenho obstáculos, ao contrário da rua e em todo o lado. Sou só eu, a prancha e a água.

E tem alguns hóbis?
Gosto muito de andar de skate, de sair com os meus amigos... enfim, o normal para uma pessoa de 16 anos.

Antes do surf praticou alguma outra modalidade?
Sim, pratiquei goalball, um desporto voltado para as pessoas cegas e fiz também um pouco de equitação. Também experimentei outras modalidades. O desporto foi uma parte fundamental no meu crescimento.

Quais são os seus grandes objetivos a curto prazo no surf e um sonho que deseja concretizar a longo prazo?
A curto prazo gostava de continuar a melhorar o meu surf, para conseguir ver até onde consigo chegar e desenvolver técnicas com o meu treinador e com as pessoas que trabalham comigo, de modo a melhorar o meu surf e ajudar outras pessoas cegas que queiram praticar a modalidade.

Como é a sua relação com os colegas da escola? Eles costumam acompanhar as suas provas?
Seguem muito as minhas provas e são os meus grandes motivadores. Durante o Mundial enviaram-me mensagens todos os dias e foram falando comigo. São super importantes para mim e se não fossem eles eu não estaria tão pronta para enfrentar um Mundial.

Como tem sido a relação com o Surf Clube de Viana, o clube que representa?
O Surf Clube de Viana é como se fosse uma família para mim. Alguns dos seus elementos estiveram nos Estados Unidos a apoiarem-me. Foi super importante ter as pessoas amigas e com quem convivo todos os dias à minha volta. Eles são a parte mais importante da minha carreira, pois é lá que treino e que passo grande parte do dia.

Como é o seu dia-a-dia? Quantas horas, em média, dedica ao surf?
Estudo na Escola Secundária de Monserrate, em Viana do Castelo e por vezes, nos intervalos, costumo ir à Praia Norte, que é lá muito perto. Este ano tenho um horário de escola muito bom, pois tenho aulas das 08.30 às 13.30. Da parte da tarde, consigo ir surfar todos os dias e dedicar-me a outras atividades, nomeadamente aulas de Inglês e de Piano.

A família tem-na apoiado muito nesta carreira desportiva?
Quando comecei a surfar houve algum receio da parte deles, mas hoje em dia são fãs incondicionais e se as provas são em Portugal apoiam-me sempre ao vivo. Claro que lhes deve ter custado um bocadinho não estarem a apoiar-me na Califórnia, mas fomos comunicando sempre. Eles são as pessoas que estão comigo no dia-a-dia, que me levam aos treinos e me vão buscar aos treinos. Muitas vezes alteram os planos para me acompanharem na minha rotina.

Sente que é um grande exemplo para as pessoas que nascem com alguma dificuldade física, pois demonstra que é possível tornear esses problemas e alcançar grandes feitos?
Acho que sou um grande exemplo, mas tenho noção de que isso acarreta muitas responsabilidades. Tenho recebido muitas mensagens de pessoas com e sem deficiência, dizendo-me que se sentiram motivadas para concretizar projetos e realizar sonhos que achavam impossíveis de concretizar. Obviamente que é um motivo de grande orgulho, apesar da grande responsabilidade que sinto.

E vida fora do surf. Que objetivos tem para os próximos anos?
Gostava de estudar Relações Internacionais, mas prefiro decidir as coisas no momento. Gosto de deixar as coisas acontecerem.

Como antevê agora o regresso à "normalidade" em Portugal?
​​​​​​​Vai ser muito bom. Espero ter algum tempo para estar e conviver com as pessoas de que gosto e voltar a Viana do Castelo, a minha cidade.

dnot@dn.pt

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