Mourinho, um vencedor a precisar de refletir como quer fechar carreira
Os sinais já não eram bons. Uma classificação modesta (9.º lugar, com 29 pontos em 20 jornadas), afastado da Taça pela rival Lazio, apurado em segundo lugar na Liga Europa atrás do Slavia Praga, mais uma expulsão que o impediu de estar no banco frente ao AC Milan (naquele que foi o último jogo do seu consulado na Cidade Eterna) e a anunciada saída de Tiago Pinto, diretor desportivo dos romanos, no final do mês, indiciavam que as coisas estavam longe de ser ideais, mesmo que grande parte dos adeptos ainda estivesse do seu lado, como ficou provado com as manifestações na bancada no primeiro jogo pós-Mourinho, em que os giallorossi venceram o Verona por 2-1.
Mas a terceira época de José Mourinho num mesmo clube tem sido, tradicionalmente, problemática e a passagem pela capital italiana não foi exceção. Na passada terça-feira, foi anunciado o divórcio entre o treinador e a AS Roma, onde conseguiu conquistar, ainda assim, o seu único troféu nas últimas sete temporadas: a Liga Conferência, ao que se juntou a presença na final da Liga Europa do ano seguinte, perdida no desempate por penáltis.
Com uma percentagem de vitórias abaixo dos 50 % (superior à da segunda passagem pelo Chelsea ou ao tempo em Manchester) e uma média de pontos só equivalente aos tempos em que treinou a União de Leiria (1,70 por jogo, segundo o site Transfermarkt), não deixou de surpreender o despedimento do técnico português. Os resultados não foram excecionais, mas estiveram ao nível do plantel que tinha ao dispor e não fugiram ao histórico do próprio emblema, longe de ser um papa-troféus em Itália.
Nas redes sociais, os adeptos foram reagindo com incredulidade à notícia – “Tínhamos um grande treinador, faltavam jogadores e vocês o que fazem? Mudam de treinador...”; “Para sempre grato a Mou, que meteu o coração aqui e não se vai com os olhos limpos”; “Estou sem palavras: do sonho à cruel realidade” –, ao mesmo tempo que se mostravam céticos em relação ao sucessor Daniele de Rossi. Não que duvidem do seu amor do antigo médio ao clube que representou quase toda a carreira, mas questionando se alguém tão inexperiente (dois anos adjunto na seleção e um trabalho na SPAL com três triunfos em 14 jogos na época passada) será o homem indicado para substituir um dos grandes da técnicos história.
”Roma não se fez num dia”
Para o técnico José Morais, atualmente a orientar os iranianos do Sepahan, o despedimento do seu antigo chefe “foi uma grande surpresa”. “O José Mourinho faz história em todos os clubes por onde passa. Não é por acaso que, em todos os clubes que representa, ele devolve a alegria de participar em finais e na conquista de títulos. É impressionante o que faz”, afirmou ao DN.
Depois de trabalhar com Mourinho em clubes como Chelsea, Inter Milão e Real Madrid, onde assumiu as funções de treinador adjunto de campo, que acumulava com a responsabilidade de analisar os adversários diretos e coordenação dos observadores, José Morais descarta a ideia da “crise do terceiro ano” para explicar a saída do seu compatriota dos giallorossi: “Roma não se fez num dia e o campeonato italiano não se conquista de um dia para o outro em determinados clubes. O José Mourinho é um treinador competitivo e de desafios. Ele devolveu a alegria de conquistar uma competição, ainda por cima internacional, à Roma e acredito que ele iria ser campeão quando terminasse a reconstrução da organização necessária para o conseguir”.
O técnico, cuja carreira se cruzou com a de Mourinho no Benfica – orientava então a equipa B dos encarnados –, relembra que “em alguns clubes pode ganhar-se no primeiro ou no segundo ano, mas noutros só é possível em cinco”. “Se faltou paciência aos proprietários [o grupo empresarial norte-americano The Friedkin Group]? A paciência é uma virtude que só os visionários possuem, quem conhecer a história de Thomas Edison percebe isso”, diz.
Se o futuro do seu antigo companheiro passará por se manter na Europa, rumar ao futebol árabe ou assumir o comando, por exemplo, da seleção nacional (desejo que o próprio já manifestou, embora empurrando-o para o final da carreira), José Morais considera que será o próprio a escolher. “Ele já tem o seu lugar na história do futebol, porque continua a ser um dos melhores treinadores do mundo, um dos técnicos com mais títulos na carreira. É ele que vai determinar o futuro. É um vencedor e continuará a ser, por onde passar levará consigo a aura dos títulos. E se o futuro passar pela seleção portuguesa, isso significa que ficamos com mais hipóteses de continuar a conquistar títulos.”
”Marca danificada”
Seja como for, mais este (relativo) insucesso é outra facada na imagem do treinador. Pelo menos, essa é a opinião de Daniel Sá, especialista em marketing desportivo, que fala em “marca danificada” pelo percurso de Mourinho nos últimos anos.
“Embora acabe por ir agradando à maioria dos adeptos, que são mais emocionais, passámos de um treinador que há 20 anos inaugurou uma nova forma de ser treinador no mundo, quebrando várias regras e tornando-se uma estrela, para ser neste momento, e não me refiro à questão desportiva, uma marca a perder valor e cada vez mais arredada dos grandes palcos”, assinala, embora sem descartar um regresso à ribalta, mesmo que o considere improvável: “Acredito que ele ainda pode voltar a um clube de topo mas acho muito difícil. Porque não é um insucesso, nem dois, nem três... Vão acumulando-se e nos últimos seis ou sete anos a história tem sido esta. Sabemos que não há impossíveis no futebol, pode aparecer um projeto novo, Mourinho volta a vencer e de repente tudo se esquece e passa a ser o melhor outra vez. Tem qualidade, tem experiência, tem conhecimento... Agora acho difícil, pelo número de anos neste ciclo em que ele está. Não vejo a situação pelo despedimento da AS Roma, mas por esse ciclo.”
Este momento, diz Daniel Sá, “tem como consequência acentuar uma curva descendente, quer desportiva quer enquanto marca, que é a parte que eu posso analisar”. “Acredito que José Mourinho inaugurou uma era naquilo que é ser treinador no futebol mundial com aquele início de carreira, e não apenas pelas suas qualidades como treinador, mas porque rompeu com uma série de regras praticamente centenárias que existiam até à data. Tornou-se um treinador estrela, o centro das atenções das equipas que dirigia. Isto não era comum num palco normalmente reservado aos grandes futebolistas”, explica.
”Moldar a irreverência”
Daniel Sá dá como exemplo a forma como alterou o conceito de conferências de imprensa, “até então coisas cinzentas e que ele redefiniu”. “Este é o Mourinho do início, catalogado como estrela do futebol mundial ou como aquela coisa sempre discutível de ser o melhor treinador do mundo. Com o Special One, ele próprio posicionou-se no mundo do futebol, criou a sua própria marca, e isto é obra de um marketeer. Durante vários anos esteve no pedestal, nas maiores equipas, com os melhores jogadores, a ganhar os maiores títulos. Isto é inegável. Mas, após a saída do Real Madrid, provavelmente a marca desportiva mais relevante do mundo, a curva passou a ser descendente. Vai para um Manchester United já desportivamente em queda desde a saída de Alex Ferguson – embora não enquanto marca –, e já fora do primeiro nível do futebol europeu, seguindo-se Tottenham e AS Roma, já uns degraus abaixo dos clubes anteriores. E nisto vamos para mais um despedimento, tornando a narrativa à volta de Mourinho demasiado conflituosa. Passou do provocador com sucesso para o conflituoso sem sucesso. Evidentemente, isto danifica uma marca”, acrescenta.
E, para Daniel Sá, a “marca Mourinho” era bem valiosa, “uma espécie de George Clooney do futebol”, que atraía “algumas das melhores marcas do mundo, do vestuário ao calçado, à hotelaria de luxo”. E será que uma mudança ainda é possível para alguém que vai fazer 61 anos? “A personalidade dele é o que é, embora Mourinho continue a mostrar uma inteligência emocional acima da média. Basta olharmos para a experiência que acumulou, poucos terão no futebol mundial a capacidade que ele tem neste momento. Acho possível mudar, mas também acho difícil. Provavelmente precisa de um período de reflexão para perceber que Mourinho quer ser no período final da carreira”, afirma, antes de apontar um caminho: “Tem de manter a irreverência, esta personagem de ‘menino mau’ que construiu, mas precisa de a moldar um bocadinho melhor. Precisa dosear este bad boy, que tem sentido porque o Mourinho nunca vai ser o good boy, nunca vai ser um Roger Federer.”