Michael Gulec, um turco no litoral alentejano com o coração dividido
O Turquia-Portugal de amanhã (17.00, RTP1) vai ter um espectador muito especial em Vila Nova de Milfontes. Michael Gulec, responsável de loja no ramo alimentar e dirigente do Praia Milfontes, tem sangue turco e torce pelo sucesso da seleção orientada por Vincenzo Montella. Mas é em Portugal que vive há quase quatro décadas.
Do lado paterno, a avó é arménia, mas o avô e o pai são turcos. “A nossa história é muito parecida com a da família Gulbenkian. A minha família cresceu à base da imigração”, contou ao DN. Assolado pela perseguição a que os arménios eram alvo na Turquia, o clã Gulec refugiu-se em Bruxelas. E foi lá que nasceu Michael - Mika para os amigos.
Foi na capital belga que o pai, Hacik, que jogou futebol nas camadas jovens do Union Saint-Gilloise e chegou a defrontar Michel Preud’homme, conheceu a mãe de Michael, Ana Paula, portuguesa que por lá estava emigrada.
Cinco anos após o nascimento do filho, o casal radicou-se numa aldeia do concelho de Elvas, São Vicente, e foi na cidade raiana que nasceu a filha Cláudia e que Michael ganhou o gosto pelo futebol, no final da década de 1980.
“Elvas era uma terra de futebol, O clube estava na I Divisão nessa altura. Depois o Campomaiorense subiu à I Liga e as equipas iam dormir em Elvas, cheguei a fazer peladinhas no jardim com jogadores do Chaves e de outras equipas. De 15 em 15 dias estavam lá equipas da I Liga”, recordou Michael, que por motivos profissionais se viu obrigado a trocar o Alto Alentejo pelo Litoral Alentejano, onde atualmente vive com a mulher e os dois filhos.
As saudades desses tempos levaram-no até a criar a página “Velha Guarda da Bola”, que soma mais de 100 mil seguidores no Facebook e na qual gosta de lembrar os craques do passado, com atenção especial para portugueses e… turcos.
Embora o coração esteja dividido, a vitória de Portugal e Turquia na primeira jornada da fase de grupos do Euro2024 retira-lhe dúvidas sobre o resultado que deseja para amanhã: “Para mim, se empatarem, melhor. Se empatarem, os dois passam. Teria de haver uma hecatombe.”
O sentimento é partilhado pela restante família. “O meu pai também fica dividido, mas é mais Turquia, 60 a 65%. A minha mãe é mais Portugal. Eu tenho o coração dividido. Vi crescer boas gerações da Turquia e de Portugal”, conta, notando que portugueses e turcos vivem o futebol de maneira muito diferente: “É a paixão turca e a alegria portuguesa. A forma de estar no estádio é muito diferente. No futebol turco a forma de estar é sempre a mesma, a perder ou ganhar; já os portugueses vão-se abaixo quando sofrem golo. No Euro 2000, quando Portugal estava a perder com Inglaterra, era um silêncio autêntico. Os turcos acreditam sempre. Quando sofremos o golo com a Chéquia, de certeza que pouca gente acreditava na reviravolta.”
Geração turca promete
Sobre a atual seleção da Turquia, diz que é uma “geração com o talento e um bocado da alma do Euro 2000 [chegou aos quartos de final] e do Mundial 2002 [terceira classificada]”. “Esta geração é diferente, com escola turca, mas também escola no estrangeiro. Muitos jogadores foram formados fora, como o Kokçu [futebolista do Benfica]. Não tem estrelas, mas tem uma geração que promete. Tem a alma e o querer de outras gerações”, frisou, destacando Arda Guler, do Real Madrid, como a “futura estrela se as lesões não atrapalharem”.
Ainda assim, quando questionado sobre que jogadores da velha guarda dariam jeito à Turquia neste Euro2024, o “turco”, como é conhecido em Elvas e por amigos próximos em Vila Nova de Milfontes, não hesita em reforçar a baliza e o ataque: “Traria de volta o Volkan Demirel [guarda-redes] e o Hakan Sukur [ponta de lança]. Falta um líder lá atrás. O Volkan às vezes falhava, mas impunha-se perante o adversário. O Sukur mantém o recorde de golo mais rápido em Mundiais. A Turquia agora marcou três à Geórgia, mas falta uma referência no ataque.”
Do lado de Portugal, traria de volta Figo. “Um dos poucos que podia entrar nesta seleção. Pela qualidade e porque me deu uma das maiores alegrias num jogo ao vivo, o golo em Eindhoven contra a Inglaterra, com a atmosfera que se criou, que gerou a reviravolta”, explanou. Mais difícil, assume, é escolher quem tirar da equipa…
Fenerbahçe e Mourinho
Michael Gulec é adepto de longa data do Fenerbahçe. Nunca viu um jogo ao vivo em Istambul e não vai à Turquia há 30 anos, mas aproveita as ocasiões em que a equipa turca se desloca à Península Ibérica para a apoiar. “De uma parte da família, somos todos Fenerbahçe, de outra do Besiktas. É vivido de uma forma saudável. Tenho o sonho de ir lá ver um jogo com o meu pai. Vamos ver todos os jogos do Fenerbahçe em Portugal e Espanha, fui a Sevilha, ao Porto, duas vezes à Luz. Tenho três clubes: Fenerbahçe, Elvas e Praia Milfontes”, contou este grande admirador, também de longa data, de José Mourinho, precisamente o novo treinador do Fenerbahçe.
“A minha admiração vem desde sempre. Profissionalmente inspiro-me muito no que Mourinho faz no futebol. Gosto muito dele pela forma de ser e estar. Por onde passa conquista títulos, por vezes em clubes que não ganham há muito tempo. Em Portugal temos um bocado o hábito de esquecer as conquistas e viver o momento. Só não ganhou no Tottenham, mas ninguém fez melhor. Ir para o Fenerbahçe é ouro sobre azul”, vincou, feliz com este casamento.
david.pereira@dn.pt