Jorge Ferreira. A última vítima da "caça aos árbitros"
Carros, casas ou estabelecimentos comerciais vandalizados, ameaças telefónicas e até agressões: nos últimos anos, a forma irracional como se discute futebol em Portugal atingiu uma lista cada vez mais extensa de árbitros, a que agora se junta Jorge Ferreira. O juiz do Paços de Ferreira-Benfica ainda não decidiu se vai apresentar queixa do ato de intimidação (promovido por elementos dos Super Dragões, claque do FC Porto) no restaurante do pai: vai "ponderar nos próximos dias, conjuntamente com os seus advogados". No entanto, em comunicado, veio pedir que sejam tomadas ações contra as claques e os comentadores televisivos que incendeiam o ambiente em torno da arbitragem.
Perante o aumento de episódios deste género, os homens do apito mostram-se preocupados e "saturados". "Isto não está a ser fácil para ninguém e só vai parar quando aparecer um árbitro ou outro elemento do futebol aí estendido num canto qualquer...", queixa-se, ao DN, um árbitro de 1.ª categoria que já foi alvo de ameaças. "Tenho sempre o cuidado de não ir a sítios muito frequentados, como centros comerciais, a seguir a jogos importantes", conta outro. Para muitos, os cuidados são duplicados a seguir a jogos polémicos. Mas isso não evita episódios como o de Jorge Ferreira.
O juíz da Associação de Futebol de Braga apitou um Paços de Ferreira-Benfica (sábado) envolto em controvérsia, principalmente devido ao penálti duvidoso que deu origem ao segundo golo das águias (que acabariam por vencer por 1-3). Dois dias depois, o restaurente do seu pai, em Fafe, foi visitado por elementos dos Super Dragões (incluindo o líder da claque, Fernando Madureira). Segundo o JN, os adeptos portistas terão perguntado "onde está o gatuno" e discutido com Armindo Ferreira, pai do árbitro, por ele se ter recusado a servi--los, visto que a cozinha do restaurante já estaria fechada. A desavença terminou com a presença da GNR no local (contactada pelo líder da claque e por Jorge Ferreira).
No comunicado, o árbitro associa a visita da claque - "com o intuito de intimidar, coagir, ameaçar, insultar, difamar e condicionar" - a "calúnias" que o ligam à Casa do Benfica de Fafe. E, dizendo-se "de consciência tranquila", adverte que "é momento de "calarem" aqueles que usam os órgãos de comunicação social para nos "brindarem" com os vergonhosos espetáculos de insultos, de falsidades e de poucas-vergonhas" e de os clubes "dizerem se concordam com o comportamento dos elementos das suas claques, que recorrentemente ameaçam e tentam coagir árbitros de futebol".
Casos estão a aumentar
O episódio junta-se a uma lista que tem engrossado nos últimos anos. Em 2011, num centro comercial lisboeta, Pedro Proença foi agredido com uma cabeçada por um adepto do Benfica (que seria condenado a 18 meses de prisão, com pena suspensa). Em 2013 e 2014, Manuel Mota viu dois dos seus talhos serem vandalizados após exibições contestadas por adeptos sportinguistas. Em 2015, foram pintados insultos no muro da casa de Cosme Machado e João Capela foi ameaçado por adeptos do FC Porto, no Funchal (antes de um jogo com o Marítimo).
O líder da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), José Fontelas Gomes - que não reagiu ao episódio de Jorge Ferreira, por se encontrar no estrangeiro -, já se pronunciu inúmeras vezes contra este "clima de terror", elencando casos de árbitros que receberam cartas e telefonemas ameaçadores (após os seus dados pessoais serem expostos, ver à direita) ou viram o seu carro ser vandalizado (Duarte Gomes).
Na verdade, o fenómeno nem é novo: Jorge Coroado, que arbitrou na I Liga entre 1987 e 2001, contou que chegou a "ser ameaçado de morte com uma pistola na cabeça e, outra vez, com uma faca"; e em 2002 foi notícia uma agressão a Bruno Paixão por adeptos do FC Porto. Contudo, agudizou-se nos últimos anos. "Os problemas aumentaram desde que o Pedro Proença foi alvo daquele ataque bárbaro", admite um dos árbitros ouvidos pelo DN, sob anonimato. Muitos mostram-se preocupados com a situação mas garantem que nunca foram vítimas.
"Este tipo de ameaças são recentes, há três/quatro anos que são facilitadas pelo uso das redes sociais da internet. Eu deixei a arbitragem em 2010 e nunca vivi desses episódios", conta, ao DN, Pedro Henriques, antigo árbitro. "Ter a TV em todos os jogos e programas de análise com comentadores que, às vezes, nada sabem das leis do jogo, ajuda a esta situação", aponta o ex-juiz.
Pedro Henriques sugere mesmo que os atuais árbitros tenham "cuidados especiais". "Eu, a seguir aos jogos mais importantes, fazia por não ir às compras, a centros comerciais, a restaurantes ou a estações de serviço. Atestava o carro dias antes e tinha o cuidado de não ir buscar a minha filha à escola - algo que fazia em todos os outros dias", descreve.
Agora, como os juízes no ativo, Pedro Henriques pede penas mais pesadas para os discursos incendiários sobre as arbitragens - e não só. "Tem de haver uma forte ação para penalizar os jogadores que enganam os árbitros [fingindo faltas] e os dirigentes que comentam", remata.