Jogar à bola já é para todos: "Esta geração está a acabar com os tabus"

A maioria das jogadoras ainda são amadoras. Mas sentem-se ventos de mudança. Há cada vez mais atletas, já há clubes com profissionais e, em julho deste ano, a seleção nacional estará pela primeira vez na fase final de um Europeu.
Publicado a
Atualizado a

Choveu sem parar durante todo o dia. Chove ainda. O campo do Estoril Praia está alagado. Nídia Santos entra no balneário apressada. Chega quase em cima da hora do treino, que começa às 20.30, e equipa-se rapidamente. A defesa-central de 21 anos vem de Alcochete, três vezes por semana, para treinar no Estoril. "São quase 200 quilómetros por treino." Mas não o diz como uma queixa, antes como a mera constatação de um facto. "Chego a casa à meia-noite e meia e no dia seguinte trabalho num call center. O dia inteiro. E à noite há treino outra vez. É complicado mas compensa bem. Vir para aqui treinar, dar chutos na bola, rir com as colegas, é ótimo, livramo-nos completamente de todo o stress."

Nídia percebeu muito cedo, quando era ainda criança e jogava na rua com o irmão mais velho, que o futebol iria fazer parte da sua vida. "Sempre encarei isto com muita seriedade. É aquilo que gosto e se pudesse era o que faria como profissão. Vou continuar até as pernas me deixarem." Para um momento à porta do balneário e olha para a chuva lá fora. "Os dias de chuva são os que sabem melhor. Os obstáculos dão-me sempre pica."

Tal como Nídia, a maioria das jogadoras de futebol em Portugal são amadoras: fazem-no por amor ao desporto e sem qualquer remuneração. Pagam-lhes o transporte, umas refeições nos dias de jogo, "um ou outro prémio" e pouco mais. Há muitas jogadoras que ainda estudam e quase todas as outras trabalham. Oito horas por dia. Por isso, os treinos são à noite. "Temos de aceitar que há dias em que umas atletas chegam mais cansadas porque tiveram um dia de trabalho horrível, noutros podemos exigir mais", explica Pedro Sampaio, o treinador da equipa feminina do Estoril Praia. "Mas de uma maneira geral elas têm uma entrega enorme. Superam-se constantemente."

De acordo com os dados da Federação Portuguesa de Futebol são apenas seis as jogadoras com estatuto profissional em Portugal - e mesmo que o número real seja superior ao oficial, a verdade é que há apenas dois clubes onde a maioria das atletas têm um estatuto semiprofissional, o Sporting e o Braga. Os minhotos conseguem, inclusivamente, um feito incrível: os treinos das mulheres realizam-se de manhã.

Antes de mais: mudar mentalidades

Apesar de tudo, é inegável que muita coisa mudou no futebol feminino nestes últimos anos. Para melhor. Há mais jogadoras, mais competições organizadas, as seleções nacionais dão nas vistas. "Sobretudo do ponto de vista social, em termos de aceitação. E depois também na organização e no número de jogadoras", resume Nuno Cristóvão, treinador das equipas femininas do Sporting, que esta época, depois de 21 anos, voltou a ter futebol feminino. "Uma coisa está ligada à outra. Há uns anos, era muito difícil aceitar-se que uma rapariga quisesse jogar futebol. Essas jogadoras eram verdadeiras heroínas, tiveram de lutar contra preconceitos e vencer muitas barreiras. Antigamente, as pessoas iam ao futebol para ver as jogadoras, hoje já vão ver futebol. Esta geração está a acabar com todos os tabus."

Anabela Mendes, que começou a jogar futebol no União de Coimbra no início da década de 1980, sabe bem como era jogar em campos pelados, com chuteiras duras, com bolas de má qualidade. "Só isso já faz toda a diferença", sentencia. Junte-se os treinos a horas tardias - "as mulheres treinam sempre à noite, ficam com os horários que sobram no campo, ainda hoje é assim" - e a inexistência de competições oficiais a nível nacional, pois havia só campeonatos distritais e jogos particulares organizados pelos dirigentes para manter as raparigas animadas.

A atual responsável pela equipa feminina sénior do Futebol Benfica (mais conhecida como Fofó) tem 53 anos e é técnica de contabilidade. Terminou a carreira de jogadora aos 32 anos no Sporting e sabe bem do que fala quando diz: "O futebol feminino vivia da carolice e da boa vontade dos dirigentes e de toda a gente." As equipas femininas podiam acabar de um dia para o outro. "Era perfeitamente indiferente. Se as coisas começavam a correr mal, os sócios perguntavam logo porque é que se estava a perder tempo connosco. Mesmo que com as equipas masculinas as coisas também corressem mal."

Entretanto, os clubes começaram a levar mais a sério o futebol feminino. Ainda que, na maioria, as equipas seniores femininas estejam ligadas à formação e não tenham os meios que têm as masculinas. "Antes, só quem não conseguia treinar os homens é que vinha para o futebol feminino. Agora já há pessoas formadas nesta área, que o fazem por opção e por gosto", explica Pedro Sampaio.

Permitir que as raparigas joguem com os rapazes até aos 13 anos e a criação de um escalão júnior, para que as atletas mais novas não tivessem de competir com as seniores, foram duas medidas tomadas já neste milénio e que fizeram toda a diferença, afirma Nuno Cristóvão, que foi selecionador nacional feminino entre 2000 e 2004. "Isto permitiu que muitas jogadoras não saíssem para outras modalidades, que era o que estava a acontecer." Acredita que parte do sucesso da atual seleção nacional se deve a estas medidas.

A única rapariga na equipa

Se tivesse de escolher o barulho mais característico da sua vida, Inês Bastos diria que é aquele "boing, boing" da bola a bater no chão. Boing, boing, boing, em casa, na rua, a toda hora. "Às vezes, torna-se insuportável", conta a mãe da Carolina. "Ela é assim desde pequena." Assim: sempre a jogar à bola. De tal forma que, aos 5 anos começou a treinar num pequeno clube perto de casa e, aos 9, decidida a levar o jogo mais a sério, mudou-se para o Benfica. A experiência não correu tão bem como ela esperava. Farta de estar sempre a pedir para lhe passarem a bola, Carolina deixou o futebol e esteve um ano no atletismo. Mas a paixão não esmoreceu. Dorme aconchegada pelo edredom do Euro, lê livros sobre futebol, diverte-se a jogar Score Hero no tablet e tem uma meia dúzia de bolas guardadas no armário do quarto e sempre prontas a serem usadas. "É a prenda que peço todos os natais", conta. Quando não tem mais nada que fazer procura no YouTube truques e fintas que depois treina, sozinha, durante horas. "Olha aqui, mãe, olha aqui."

"Nem sempre foi fácil, na escola os rapazes não queriam deixá-la jogar ou só a deixavam jogar à baliza", conta Inês. "Mas ela não desiste." Carolina tem 11 anos e esta semana vai voltar a lutar pelo sonho de ser futebolista: começam os treinos na Academia das Leoas, o novo projeto do Sporting destinado a raparigas até aos 13 anos. Ao contrário dos pais de há uns anos, que geralmente franziam o nariz ao facto de ter uma filha futebolista, esta mãe só pode apoiar a filha: "Ela tem de fazer o que gosta", diz. O pior mesmo vai ser torcer pelo Sporting, logo Inês que é benfiquista.

Tal como Carolina, também Andreia Jacinto e Rita Palma passaram por uma fase em que eram as únicas raparigas nas equipas mistas. "Ouvia muitas bocas. As outras raparigas da escola diziam-me que o futebol é coisa de rapazes. E é verdade que há muita discriminação por parte dos rapazes, temos de trabalhar muito para nos levarem a sério. Mas dá para evoluir muito mais porque é um desafio enorme", conta Andreia. Ter de conquistar o seu lugar na equipa, sem condescendências, obrigou-a a ser cada vez melhor. "Era um pouco complicado", admite Rita. "Há sempre aqueles miúdos que acham que as raparigas não jogam tão bem, mesmo que seja mentira."

Quando aos 12 anos se mudou para a equipa de raparigas do Estoril Praia, Andreia lembra-se de que o melhor de tudo foi "entrar num balneário só com raparigas" e ter com quem conversar e partilhar aquelas coisas que os rapazes não entendem. Neste momento, com 14 anos, Andreia é a capitã da equipa de sub-17 do Sporting, ao mesmo tempo que estuda no 9.º ano: "Tenho menos tempo para estudar porque tenho mais treinos, mas eu sou boa aluna, até agora está a correr tudo bem."

"Desde que me conheço como gente que sempre dei uns toques na bola", conta Rita, que tem 16 anos, estuda no 11.º ano e joga futebol no Fofó. "Ainda há pessoas que não percebem porque é que eu gosto de jogar futebol, mas isso não me preocupa. O que conta é que eu faço o que gosto", diz, determinada. Nos planos para o futuro tem um curso de gestão ou de economia mas o que gostaria mesmo era de jogar futebol. "Porque não? Já há jogadoras portuguesas profissionais, aqui e lá fora. É possível."

O futebol feminino é diferente?

Antes do treino no Estoril, as jogadoras reúnem-se no balneário para uma conversa com o treinador. Veem-se uns soutiens coloridos nos cabides mas é um balneário igual a todos os outros. Há sapatos atirados para os cantos e um cheiro a suor impregnado nos bancos de madeira. "Ao princípio era estranho, para entrar no balneário tem de se ter outras preocupações, bater à porta, perguntar se podemos... para quem estava habituado aos homens é diferente", diz Pedro Alegria, que já foi treinador de futebol feminino e agora é o responsável pela formação do Estoril Praia. Mas as diferenças terminam por aí. "O tratamento e a exigência são iguais. Nem elas gostariam de ser tratadas de forma diferente dos homens. Se tiverem de levar um berro, levam."

Francisco Neto, o selecionador nacional feminino, garante que "é diferente treinar raparigas como é diferente treinar miúdos de 10 anos ou adultos. Temos de treinar de acordo com as especificidades dos nossos atletas. Mas não é nenhum bicho-de-sete-cabeças". "No espaço seleção", acrescenta, "a grande diferença é que a rapariga nos surge com menos experiência do que os rapazes porque o setor masculino tem um quadro competitivo muito organizado desde a formação e o feminino ainda não tem. Mas isso está a mudar."

Já Nuno Cristóvão, o treinador do Sporting, lembra que há algumas particularidades que não podem ser ignoradas: "O jogo dos homens é mais rápido e mais físico, mas o jogo das mulheres tem menos faltas, mais tempo útil de jogo e mais golos. E do ponto de vista psicológico também é muito diferente. As mulheres são mais curiosas, querem perceber tudo, fazem muitas perguntas." Nas equipas técnicas, faz questão de ter sempre elementos femininos que possam estar mais próximo das jogadoras se elas precisarem. "As mulheres não são iguais aos homens." Por exemplo, neste momento, a equipa do Sporting perdeu a sua capitã, Patrícia Gouveia, que está grávida e por isso vai estar alguns meses afastada da competição. "Sem dramas. Mas é algo com que os treinadores das equipas masculinas não têm de se preocupar."

[artigo:5590878]

O sonho de ser profissional

No Futebol Benfica já ninguém estranha a presença das raparigas. No campo, na bancada, no café, a jogar ou a orientar os treinos, o difícil é andar por ali e não encontrar raparigas equipadas. Nas paredes repletas de fotografias de glórias passadas e recortes de jornais, também há bastantes miúdas: ali está em grande destaque a fotografia da primeira equipa feminina, da época 1994-95; e a notícia do primeiro campeonato, conquistado em 2015. E do segundo, no ano passado.

Matilde Fidalgo, a capitã do Fofó, de 22 anos, começou a jogar futebol com 5 anos no Colégio São João de Brito e está no Benfica desde 2010. "As pessoas atribuem geralmente pouca inteligência aos jogadores de futebol, mas isso é um erro. Cada pessoa tem de ter inteligência para aquilo que faz." Isto diz Matilde que está neste momento em plena época de exames, quase a terminar o mestrado em Engenharia da Indústria e do Ambiente. "Só me falta entregar a tese em setembro." Habituada desde pequena a conciliar os treinos e os estudos, diz que o segredo está na organização. "Tenho tempo para tudo." Até para ir ao ginásio regularmente, porque gosta e sente que é uma mais-valia para a sua forma física. Não tem tanto tempo para jantares e copos mas isso também não a preocupa.

Com os caracóis apanhados num rabo-de-cavalo e os olhos de quem quer ver mais longe, Matilde sabe que depois de entregar a tese terá de tomar decisões importantes quanto ao seu futuro: gostaria de se tornar jogadora profissional, talvez no estrangeiro, e, quem sabe, arranjar uma outra atividade em part time ligada à engenharia; mas se não conseguir, arranjará um emprego como toda a gente e continuará a jogar futebol na mesma. "Já existem equipas em Portugal em regime semiprofissional e eu acredito que esse é o caminho. Vamos chegar a um ponto em que as mulheres vão jogar profissionalmente, treinando duas vezes por dia. Mas não será com certeza para o ano. E eu para o ano já acabei a faculdade e, além disso, já tenho 22 anos, não posso ficar muito mais tempo à espera. Para ser uma coisa a sério tem de ser feita com alguma brevidade. Tenho de pensar muito bem."

Raquel Sampaio foi uma dessas raparigas que deixou de jogar aos 12 anos porque não tinha nenhuma equipa perto de casa onde o pudesse fazer. "Nessa altura fiz surf e só voltei a jogar com 20 anos." Hoje, com 26 anos, assumiu a responsabilidade pela reorganização do futebol feminino no Sporting e tem um objetivo muito claro: "Quero dar a estas jogadoras tudo o que gostaria de ter tido quando joguei." "Temos todas as condições da equipa masculina. Nem podia ser de outra forma", garante o treinador. A equipa sénior treina na Academia de Alcochete. Têm treinos de ginásio para potenciar as capacidades físicas das atletas, acompanhamento médico, toda uma equipa técnica dedicada a fazer campeãs. O objetivo é assumido. "É um privilégio enorme estar aqui, para mim e para elas",diz Raquel.

Olhando para a tabela classificativa do campeonato feminino, é claro o domínio do Sporting e do Braga, que, semana a semana, vão alternando no lugar cimeiro. São clubes com muitos meios e que foram buscar jogadoras a outros clubes, outras que estavam a jogar fora ou mesmo atletas estrangeiras. São também os únicos clubes que pagam ordenados às jogadoras, permitindo-lhes, em alguns casos, que se dediquem exclusivamente ao desporto.

Esse é o caso de Solange Carvalhas, de 24 anos, que chegou ao Sporting vinda do Anderlecht, na Bélgica. Solange sempre foi uma maria-rapaz, daquelas miúdas que jogava na rua de igual para igual com todos os rapazes. Aos 13 anos, foi para o 1.º de Dezembro, que era, na altura, um dos grandes clubes no futebol feminino. Mais tarde, quando estava a estudar Psicologia em Rio Maior, mudou--se para o A-dos-Francos. A ida para o estrangeiro "aconteceu um bocado por acidente". Aproveitou uma viagem, nas férias, para visitar o pai que estava a trabalhar na Bélgica, para ir experimentar os treinos em alguns clubes. Quem sabe o que poderia acontecer? "Enviei o meu currículo desportivo e vídeos para dois ou três clubes. O Anderlecht mostrou-se logo interessado." O bilhete de avião de regresso já não foi utilizado e Solange ficou lá dois anos. "Foi uma grande mudança. Cá o futebol feminino era amador, lá já era profissional, tínhamos todas as condições. Não precisávamos de pensar em mais nada a não ser dar o nosso melhor. E a competição era muito maior. Na altura, foi o melhor para mim, cresci muito como jogadora."

Estranhou o clima chuvoso do país e sentiu falta dos amigos e da família, obviamente. A proposta do Sporting para voltar para casa pareceu-lhe irrecusável. "Nós somos as pioneiras da profissionalização do futebol feminino em Portugal e de uma maior visibilidade desta modalidade e isso deixa-me muito contente. Era um passo importante que tinha de ser dado", diz Solange, que é neste momento a melhor marcadora do campeonato, com 18 golos.

E daqui para a frente?

Há quem tenha medo de que com a profissionalização se perca a paixão que tem caracterizado o futebol feminino. Ou que se acentuem cada vez mais as diferenças entre grandes e pequenos clubes, fazendo que os pequenos acabem por desistir. Anabela Mendes, do Fofó, está convicta de que este impulso é "uma moda" e teme que, pelo meio, os clubes pequenos sejam engolidos pelas máquinas profissionais dos grandes. Mas o caminho parece ser irreversível. "O futebol feminino tem muito por onde crescer, quer fisicamente quer a nível de promoção para os clubes", assegura Pedro Alegria, do Estoril. É uma porta que se está a abrir. E as primeiras a lucrar com isso serão as jogadoras. As melhores, claro.

Em julho, a seleção nacional participa pela primeira vez numa fase final de um campeonato europeu. As jogadoras mal têm palavras para exprimir o seu entusiasmo. O selecionador sabe que a equipa não terá a vida facilitada, mas isso não o aflige: "Temos sete meses para nos prepararmos para aquilo que é o sonho de todas, que é estar no Europeu e ouvir o hino naquele primeiro jogo contra a Espanha, e é para isso que vamos trabalhar."

Matilde Fidalgo lembra-se da primeira vez que, vestida com a camisola da seleção nacional, alinhou com as companheiras de equipa no centro do relvado e ouviu o hino nacional. "Senti-me comovida mas não queria chorar." Matilde, que já conta 24 internacionalizações sub-19 e 27 internacionalizações A, continua a sentir-se emocionada sempre que vai jogar pela seleção. "Primeiro é saber que, com tanta gente que há a jogar, nós fomos selecionadas, há alguém que reconhece o nosso mérito; depois, é representar o nosso país. Uma pessoa sente que tem em si uma parte do seu país e que vai mostrar ao mundo daquilo que nós somos feitos. É um orgulho imenso." Para poder estar no jogo do apuramento para o Europeu, na Roménia, Matilde faltou ao casamento do irmão. Mas valeu a pena. "Eu queria muito isto. Foi um dos melhores momentos da minha carreira." Até agora.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt