Escândalo no futebol feminino espanhol: "Precisas é de um bom macho"
Livro denuncia abusos de Ignacio Quereda, que foi selecionador espanhol durante 27 anos. Federação acusada de saber de tudo e esconder denúncias de atletas: "Nós denunciámo-lo, mas não tivemos apoio. Era um calvário ir à seleção."
"Precisas é de um bom macho." Este é apenas um exemplo da linguagem imprópria perpetuada por Ignacio Quereda, que foi selecionador feminino do país durante 27 anos, entre 1988 e 2015, segundo Vero Boquete, a maior referência atual do futebol feminino espanhol.
A linguagem imprópria, os insultos, as humilhações e as acusações de assédio sexual foram agora denunciados num livro da jornalista Danae Boronat. Intitulado No las llames chicas, llámalas futbolistas (Não as chames de miúdas, chama-as de futebolistas), o livro retrata inúmeras histórias do antigo selecionador de futebol feminino de Espanha, reveladas em primeira mão pelo jornal El Mundo. Nele, dezenas de jogadoras e ex-internacionais contam como foram vítimas de Ignacio Quereda, que preferiu não comentar as acusações.
Alicia Fuentes, uma das melhores jogadoras da história do futebol espanhol foi uma das vítimas que aceitou dar a cara. "Uma vez, estávamos sozinhos no elevador e deu-me um beliscão no rabo. Não soube como reagir. Tinha 17 anos, era muito tímida, ainda não tinha saído de casa. Como vinha de uma aldeia ele dizia-me "sabes como fecundam os galos e as galinhas?" e beliscava-me."
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Com Marta Corredera a desculpa era o piercing no umbigo: "Não posso contar as vezes que me via e me levantava a camisola. "Tira isso, que provoca infeções!", dizia-me ele. Quando chegava à concentração tinha de tirar o piercing para lhe dizer "já o tirei, não me levantes mais a camisola"."
O não saber como reagir e o silêncio das jogadoras foram muitas vezes cumplices do comportamento abusivo e elas têm hoje consciência disso. A antiga guarda-redes, Ainhoa Tirapu, lembrou um dia em que o selecionador a deixou fora da convocatória. "Quando me fui despedir dele, com dois beijos, disse-me: "para a próxima põe o decote para a frente". Eu tinha uma camisola decotada nas costas, tinha 23 anos... Hoje não o teria permitido, mas naquela época aguentavam-se aquelas coisas."
"Ele humilhava-nos, aquilo era a sua coutada de caça", acusou Laura del Río, enquanto Marta Corredera lembrou as muitas vezes que as atletas choravam no quarto.
As palestras homofóbicas do treinador no balneário eram frequentes e deixam as atletas paralisadas. ""Quero erradicar o lesbianismo e os maus hábitos!", dizia ele. Houve um artigo em que algumas jogadoras assumiam a sua homossexualidade e ele deu a entender que se expusessem a sua condição sexual publicamente podia haver consequências desportivas", contou Vicky Losada, capitã do Barcelona.
Muitas mais jogadores optaram pelo anonimato, por ainda hoje não suportarem a humilhação pública. "Aconteceu em Valência, onde íamos jogar a fase de grupos. Preparávamo-nos para tomar banho quando me dei conta que ele estava no meio do balneário. Fazia isto quando tomávamos banho ou quando mudávamos de roupa. Um dia, até num exame médico apareceu...", contou uma jogadora, que não quis ser identificada, revelando ainda que abandonou a seleção por causa dos comportamentos do então selecionador.
Segundo o livro, em 1996 um grupo de jogadoras escreveu uma carta à federação espanhola, para denunciar o comportamento do técnico, dos treinos deficientes e dos maus tratos psicológicos. "Tentámos três ou quatro vezes mudar as coisas, mas não conseguimos."Dizia que as jogadoras estavam gordas, insultava-as... Nós denunciámo-lo, mas não tivemos apoio. Era um calvário ir à seleção", denunciou Pilar Vargas, ex-jogadora e primeira mulher a completar o curso de treinadora em Espanha.
Um calvário que Ignacio terá perpetuado durante 27 anos e com o aval da Real Federação Espanhola de Futebol.