A epopeia do mexicano que começou a esquiar aos 42 anos

Após um ano de esforço, Germán cumpriu sonho olímpico e cortou a meta sob os aplausos dos outros outsiders
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Um mexicano, um tonganês e um chileno entram numa pista de gelo: parece uma anedota, mas é o início da epopeia que comoveu adeptos de todo o mundo, na jornada de ontem dos Jogos Olímpicos de inverno. A personagem principal foi o mexicano, Germán Madrazo, 116.º e último classificado da disciplina de 15 km de cross-country (esqui de fundo), aplaudido e levado em ombros pelos outros outsiders da prova - incluindo a o português Kequyen Lam (113.º) -, pela forma como chegou a PyeongChang 2018.

O percurso foi o de um mexicano, radicado no Texas (EUA), que só começou a esquiar aos 42 anos - em janeiro de 2017 - e, 13 meses depois, chegou ao maior evento mundial da especialidade. Germán Madrazo, antigo natador e triatleta, deslumbrou-se com o exemplo de Roberto Carcelén (primeiro peruano a participar em Jogos Olímpicos de inverno, em 2010, e famoso pela forma hercúlea como terminou a prova de 15 km de cross-country de 2014, com duas costelas partidas). Quis segui-lo. E, ao fazê-lo, juntou-se ao tonganês Pita Taufatofua e ao chileno Yonathan Jesús Fernández na caminhada até PyeongChang.

Taufatofua, mais conhecido pelo tronco nu e roupa tribal que exibiu como porta-estandarte de Tonga nos Jogos Olímpicos de verão de 2016 (repetiu o número na cerimónia de abertura desta edição), foi um dos que esperaram na meta, para aplaudir a passagem de Madrazo - 25.51,5 minutos depois do vencedor, o suíço Dario Cologna, que se tornou o primeiro tricampeão olímpico de 15 km (com o tempo 33:43.9. O esquiador tonganês (114.º) tinha ao lado o colombiano Sebastián Uprimny (115.º), o português Kequyen Lam e o marroquino Samir Azzimani (111.º): foram os quatro que aplaudiram o mexicano e o lançaram ao ar, como se tivesse ganho a medalha de ouro.

De certa forma, tinha. Para Germán Madrazo, que cortou a meta com a bandeira do México na mão e um sorriso na cara, o ouro foi estar ali, após um ano de esforço (e alguns sacrifícios). Essa epopeia começou com o mexicano a pedir ajuda ao antigo treinador de Carcelén, também radicado nos EUA. "Ele disse-me que não tinha tempo, mas que ia viajar entre Michigan e Utah (quase 3000 km de carro) e me podia ir ensinando pelo caminho, se quisesse acompanhá-lo. Assim fizemos: atravessámos os EUA e fomos parando em vários lugares, para eu aprender a esquiar", explicou o mexicano.

O passo seguinte foi participar em provas internacionais, para conseguir a qualificação para os Jogos Olímpicos de inverno. O mexicano investiu o que tinha e o que não tinha, para correr mundo, "num processo muito duro e longo": vendeu vários bens (incluindo as bicicletas de trialo) e pediu dinheiro emprestado a família e amigos ("sobretudo, a quatro anjos de guarda").

"Luta mais um dia, irmão"

Como os pontos amealhados ainda não eram suficientes (embora os países sem tradição nos desportos de inverno tenham quotas próprias, facilitando a obtenção do passaporte olímpico), Madrazo acabou por se instalar na Europa - longe da mulher e dos filhos trigémeos - durante os últimos meses de dezembro e janeiro, para tentar carimbar o bilhete para PyeongChang 2018. Foi aí que floresceu a amizade com o tonganês Pita Taufatofua (um ex-tutador de taekwondo, também convertido tardiamente ao esqui de fundo) e com o chileno Yonathan Jesús Fernández (mais experiente, pois já estivera em Sochi 2014).

Os três moraram e viajaram juntos para partilhar despesas. "Um lavava os pratos, outro ia ao supermercado e outro fazia a comida: a convivência entre nós correu foi muito boa", descreveu o mexicano, salientando que essa "irmandade" foi fundamental para cumprirem o objetivo - com Yonathan Jesús Fernández a emprestar ensinamentos e material de competição aos dois colegas mais inexperientes.

Germán e Pita apenas conseguiram o apuramento há menos de um mês, na Islândia, quando o mexicano já começava a perder a esperança - e a conta bancária quase batia no zero ("só pude comprar viagem de ida..."). "Então, Pita disse-me "luta mais um dia, irmão, luta até ao fim". Esse tornou-se o nosso lema, que repetíamos todas as manhãs", contou. O espírito de equipa fez efeito: ambos se apuraram in extremis.

Dessa forma, Germán pôde marcar presença na Coreia do Sul -ao lado dos compatriotas Robert Franco (esqui freestyle), Rodolfo Dickson e Sarah Schleper -, tornando-se o mais icónico sucessor de Hubertus zu Hohenlohe-Langenburg, o esquiador de origem alemã que foi corpo e alma dos desportos de inverno no México entre Sarajevo 1984 e Sochi 2014. Rico (de ascendência real) e extravagante (em 2010, competiu vestido à pistoleiro, em 2014, equipado à mariachi), zu Hohenlohe-Langenburg teve direitos aos seus 15 minutos de fama, repartidos por seis edições dos Jogos Olímpicos de inverno (a última, já com 55 anos). No entanto, nunca terá sido aclamado como Madrazo ontem ao cortar da meta.

"O olimpismo é isto: dar tudo, tentar tudo... Para nós, que não temos neve nem a experiência que há noutros países, a medalha é garantir a qualificação. A moral desta história é que nunca devemos deixar de lutar e que nunca é demasiado tarde para começar", sublinhou o mexicano, que se tornou um foco de atenção mediática tão forte como o novo tricampeão olímpico.

Portugueses: segue-se Hanse

A aplaudi-lo, ao cortar a meta, estavam quatro outsiders como ele, capazes de proferir a mesma frase (Fernández tinha concluído a prova 17 minutos antes, em 101.º lugar). Kequyen Lam - recorde-se - era um deles: o português (nascido em Macau e de origem vietnamita), que se iniciou no cross-country em 2015, ficou a 20.50,2 minutos do vencedor, na prova que marcou a estreia nacional em PyeongChang.

Arthur Hanse, o outra atleta português presente nesta edição dos Jogos Olímpicos, entra em ação na próxima madrugada (1:15, Eurosport 1, na prova de slalom gigante (esqui alpino). O esquiador voltará competir à 1.15 de quinta-feira, na disciplina de slalom.

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