A aventura de um treinador de futebol no país dos fundistas
O mundo do desporto faz vénias aos fundistas Haile Gebrselassie, Kenenisa Bekele ou Birahn Nebebew (último vencedor da Meia--Maratona de Lisboa), mas ignora quem sejam Aschalew Tamene, Saladin Said ou Adane Girma. São considerados os três melhores jogadores de futebol da Etiópia e jogam todos no Saint George, um clube de Adis Abeba que é treinado por um português desde setembro. Carlos Vaz Pinto é natural de Penalva do Castelo e demorou pouco a dar que falar na Etiópia, depois de conquistar a Supertaça (na semana passada, ao bater o Welayta Dicha por 2-0) e vencer o torneio de abertura do campeonato, competição em que foi também eleito o melhor treinador.
Mas o que levou o português a querer treinar futebol num país africano onde o atletismo é rei? "A oportunidade de jogar a Champions africana", responde de imediato, explicando que, embora veja gente a correr nas ruas "a toda a hora", no dia-a-dia o futebol tem uma projeção enorme: "As pessoas adoram futebol e acompanham muito o futebol europeu. Quando sabem que sou português perguntam logo por Cristiano Ronaldo e José Mourinho. Na semana passada, por exemplo, quando jogámos o torneio de abertura, com oito equipas da primeira liga, às 07.00 as ruas à volta do estádio estavam cheias de gente à espera do jogo... que era só às 16.00."
O Saint George é "um clube conhecido e respeitado no universo africano" e Vaz Pinto espera ajudar "a vencer as três competições internas" - a Supertaça já está - e "a consolidar o nome do clube na Liga dos Campeões africanos". O emblema de Adis Abeba conquistou sete títulos nacionais nos últimos dez anos e é também o clube que mais jogadores cede à seleção da Etiópia: "Quando eu cheguei o clube tinha seis jogadores na seleção, agora recebemos a convocatória para 12!"
Claro que treinar futebol a uma altitude aproximada de 2440 metros é um desafio e tanto. "As equipas que vêm aqui jogar sentem alguma dificuldade. Tenho um jogador que veio do Mali e quando chegou aqui passou um mau bocado", diz Vaz Pinto, explicando que "a altitude tem uma influência enorme no desempenho dos atletas, que também são muito evoluídos do ponto de vista técnico".
As grandes deslocações são outro dos problemas com que tem de lidar no continente africano. "Adis Abeba está para África como Bruxelas está para a Europa e por isso há muitas conexões aéreas, mas ir fazer um jogo à África do Sul ou ao Mali demora um dia para lá chegar. O clube viaja em voos comerciais, são viagens tremendas e com escalas, não é nada fácil", admite o técnico português.
Motorista, café e Manuel José
Antes de aceitar o convite, Carlos Vaz Pinto fez uma visita à cidade e às instalações do clube e ficou logo convencido. "O clube tem boa estrutura e boas condições. Eu tenho boas condições de vida. Tenho uma boa casa e um bom carro, embora nesta altura ainda não me arrisque a conduzir na cidade e por isso tenho um motorista", explica, recordando que "na Etiópia um treinador ou um jogador são uns privilegiados face à maioria da população, que vive da agricultura".
Com 43 anos, Vaz Pinto desafia o perfil de treinador em África, que privilegia normalmente os técnicos mais velhos. Ser português também ajudou, diz ao DN: "A marca do treinador português está cada vez mais forte. O Manuel José é uma referência aqui como em toda a África, pelo que fez na Champions africana quando estava no Egito; e o Mariano Barreto já treinou a seleção da Etiópia."
O técnico dá os treinos em inglês, mas já sabe umas palavras de amárico, a língua oficial local. "Como eu adoro café aprendi a dizer café em amárico (koffi), mas depois alguém que me ouviu disse--me para quando pedisse o café o fizesse baixinho, porque não ficava bem o treinador do Saint Georges estar sempre a falar do maior rival, o Ethiopian Coffee FC [risos]. Também sei dizer seulam, que é como o nosso olá ou bom dia", conta, lembrando que "felizmente os restaurantes têm carta em inglês" e por isso nunca chegou a comer nada "esquisito" ou que não tivesse pedido.
Curso UEFA com a elite
Sobrinho de António Vaz, um ex--guarda-redes de FC Porto, Sporting e Vit.Setúbal nos anos 70 do século passado, tem José Mourinho como referência. Fez o curso de treinadores UEFA Pro com Sérgio Conceição, Nuno Espírito Santo e Paulo Fonseca, mas as portas em Portugal não se abriram para ele e sentiu necessidade de emigrar para provar o saber. Um convite do diretor desportivo do Recreativo de Caála levou-o a Angola: "Tinha a ambição de abraçar o futebol profissional e em Portugal as oportunidades não estavam a aparecer."
Quando foi para Angola, pensou que era apenas por um ano, mas acabou por renovar e foi ficando. Acabaria por treinar mais dois clubes angolanos, o Ac. Lobito e o Libolo, clube onde viveu a pior memória da carreira: 17 pessoas morreram e mais de 50 ficaram feridas numa partida. "Quando o jogo com o Santa Rita estava a começar, eu estava no banco e apercebi-me de que do outro lado do campo estava uma grande confusão no portão de acesso à zona dos peões, que tem lugares em pé, mas nunca pensei que tinha a dimensão que teve. Eu só tive conhecimento da tragédia quando cheguei a Luanda, pois tivemos de sair do estádio rapidamente para apanhar o avião", recordou.
Agora abraça outro projeto num outro país africano e espera criar melhores memórias no Saint George, na Etiópia, um país encravado no chamado Corno de África, onde se formam alguns dos melhores corredores olímpicos.