"250 milhões por um jogador? Acredito que esse valor será ultrapassado"

Carlos Freitas foi jornalista e teve uma empresa de avaliação de jogadores, mas é como diretor desportivo que ganha a vida há quase 20 anos. Esteve no último título do Sporting e nas finais europeias da Taça Uefa dos leões e da Liga Europa do Sp. Braga. Hoje é o homem forte do futebol da Fiorentina e conta como é trabalhar em Itália e como olha para o futebol português
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Como é que um jornalista acaba diretor desportivo?
Da mesma maneira que a minha carreira como jornalista começa um pouco por acaso, a de diretor desportivo também. Não me formei em nenhuma das duas áreas, a minha formação tem a ver com línguas. Mas a exemplo daquilo que preconizo para minha vida, acho que se deve ir atrás do que se gosta e eu tinha uma paixão, que era futebol. Fui-me preparando. Desde o aprender a ler aos cinco anos com jornais desportivos, a pedir à minha mãe para me comprar uma revista francesa de futebol, ou através do gosto pelo futebol internacional, o conhecer as seleções de A-Z dos Mundiais a partir de 1974... Se calhar tudo isso foi uma preparação inconsciente. Depois tive a sorte de ter uma oportunidade e agarrá-la.

Como e quando surge o primeiro convite para ir para um clube?
Eu já tinha saído do jornalismo e tinha uma empresa de avaliação de jogadores. Em 1999 tocou o telefone. Era o Luís Duque que tinha sido convidado para presidente da SAD do Sporting. Pediu para falar comigo e a 15 de novembro de 1999 apresentei-me em Alvalade.

Qual foi o primeiro negócio, a primeira decisão?
Na altura, tinha-se identificado a necessidade de um defesa central e a primeira decisão foi o André Cruz, que estava encostado no Torino.

Estranhou esse mundo das contratações? Como é que se escolhe um entre centenas de jogadores?
Desde a altura em que comecei até hoje muita coisa mudou. Os parâmetros são diferentes, a concorrência é muito maior. Há um fator que mudou muito que é a internet. A informação está ao acesso de toda a gente. A esta hora deve haver um miúdo de 13 anos com uma base de dados brutal e que está à espera de uma oportunidade para se lançar. Quando comecei esse tipo de concorrência não existia e hoje há uma obrigação de atualização muito maior.

Tinha de ser o Carlos a procurá-la...
Sim. E hoje está ao acesso de toda a gente, num iPhone ou num tablet .

Mas isso de contratar jogadores pelo YouTube tem os seus perigos...
Hoje em dia já nenhum clube trabalha assim. O tempo das cassetes VHS já lá vai. Ainda há tempos li um artigo a propósito da final da taça dos campeões europeus em 1988 onde a observação do PSV sobre o Benfica tinha sido feita por cassetes de VHS. Isso hoje é impossível.

Durante os primeiros tempos, houve alguma altura em que pensou "não, isto se calhar não é para mim".
Não. Quando comecei como diretor desportivo, a função estava um pouco desacreditada. Felizmente que esse trauma dos clubes passou, hoje são muitos os clubes do campeonato nacional que têm diretor desportivo, a função está completamente implementada. Alguns de nós já temos experiências no estrangeiro, desde o Antero Henrique, Mário Jorge Branco, Pedro Pereira...

Já existe mercado de diretores desportivos?
Portugal é o país que mais exporta diretores desportivos hoje em dia. No final dos anos 80, princípio dos 90 o legado do Carlos Queiroz teve muita importância. Hoje a esta distância é fácil concluir isto. Estamos a falar de umas gerações de campeões do mundo que levaram a seleção portuguesa para outro patamar. A partir dos anos seguintes há dois fatores incontornáveis: um chama-se Mourinho, outro chama-se Ronaldo. Eles foram quem mais fez pelo futebol português. Deram oportunidade a muita gente, desde jogadores a treinadores e até a diretores desportivos. Depois há um fator muito importante, a oportunidade chega mas é preciso confirmá-la, mostrar competência para se manter num determinado nível.

Alguma vez lhe tentaram vender um jogador e a resposta foi "nem pensar"?
Inúmeras vezes.

E empresários a tentar convencer com dinheiro por baixo da mesa...
Isso cada um pode responder por aquilo que é a sua conduta. Quem pensar que hoje em dia qualquer ato passa de forma sub-reptícia está completamente enganado. Felizmente as entidades de controlo funcionam.

Mas reconhece que hoje em dia a generalidade das pessoas olha para as transferências como a parte mais suja do futebol...
Eu contraponho com outro tipo de ideia: há poucas atividades tão controladas como o futebol e isso é bom.

Estamos a falar de uma atividade que que envolve milhões. Algumas vez imaginou que um jogador chegasse a valer 250 milhões de euros?
Em 1999 não, hoje em dia acho que esse valor vai ser ultrapassado. Haverá seguramente nos próximos anos transferências e valores que hoje em dias não estão pensados. Agora o retorno comercial de alguns jogadores também não está mesurado na forma como estamos a avaliar o negócio. Não tenho dúvida que aquilo que foi o retorno comercial do Real nos últimos anos com jogadores como o Beckham e o Ronaldo tem de ser contemplado no valor das transferências e isso foi claramente um ícone muito difícil de avaliar pela maioria dos observadores quando só olharam para o valor da transferência destes jogadores.

Como é que os clubes pequenos e até o futebol português podem competir com essa realidade?
Hoje em dia para um clube português chegar aos quartos de final da Liga dos Campeões é um feito mais difícil do que quando as equipas portuguesas ganhavam a Taça dos Campeões Europeus. A Liga dos Campeões do FC Porto em 2005 tem um valor muito maior do que a Taça dos Campeões Europeus de 1987 e as do Benfica dos anos 60. Hoje para chegarem a esse patamar as equipas portuguesas têm de se confrontar com quatro equipas alemãs, quatro espanholas, quatro inglesas... é uma montanha muito difícil de escalar.

No Sporting esteve nas transferências de Nani, Quaresma, Ronaldo... Como é que se coloca o valor num jogador da formação, ainda mais com o cariz afetivo que os jogadores têm com o clube?
Muito difícil de travar esse tipo de transferências, da mesma forma que hoje em dia é muito difícil ao FC Porto impedir a transferência do Dalot para o United. Na altura considerou-se que se vendeu o Ronaldo a preço de saldo. Se compararmos aquilo que era o valor do euro em 2003, os 17,5 milhões que o Sporting encaixou pelo Ronaldo valem mais do que os 20 milhões da saída do Dalot para o United.

Mas era ou não possível, naquela altura, adivinhar-se o potencial do jogador, que viria a ser o melhor do mundo?
Lembro-me que o Jean Paul, quando o Ronaldo tinha 15 anos me dizia "estamos a falar do melhor jogador do mundo da idade dele". Depois é preciso ver as dificuldades inerentes e aquilo que era a dimensão económica do Sporting nesses anos... lembro-me que o Sporting em 2000 e 2002 tinha uma massa salarial abaixo dos 30 milhões de euros, hoje roça os 80 milhões. É disto que estamos a falar, da dificuldade de comparar realidades. Não é difícil,é impossível.

É nessa altura, com Boloni, que aparece a grande geração da formação Sporting ...
Se calhar porque o Sporting em 2001/2002 passa pela primeira vez a casa dos 30 milhões de euros e quando entrou uma nova administração tivemos a obrigatoriedade de passar dos 32 milhões de euros para os 22 milhões de euros, porque o Sporting nesse ano, apesar de ter sido campeão, não teve entrada na Liga dos Campeões. Teve de fazer pré-eliminatória com o Inter e perde 2-0 em Milão e empata 0-0 em casa. E nesse ano aquilo que era a falta de meios em termos económicos aumentou a coragem de lançar os jogadores mais jovens, entre os quais o Ronaldo e o Quaresma, embora já tivesse feito um ou dois jogos antes... Isto é como quando um pai não tem o que dar de comer aos filhos vai fatiar mais o pão. Foi isso que aconteceu.

Há alguma transferência de que se tenha arrependido?
Estava à espera que um jogador como o Paredes tivesse rendido muito mais. Tinha sido fundamental no FC Porto, tinha feito uma carreira ótima em Itália, era capitão indiscutível da seleção do Paraguai e quando veio para Alvalade teve muita dificuldade em acompanhar o ritmo. Na altura não rendeu. Mas houve mais. Aliás, mau seria que no meio de tantas decisões eu fosse incapaz de admitir que tivesse havido decisões erradas, porque decidir implica errar. Se eu falar daquilo que foi o trajeto no Sporting... Tive a felicidade de estar presente na década mais vitoriosa do clube a seguir à década dos 5 Violinos. Nessa década em que eu estive lá, da primeira vez, o Sporting teve os últimos dois campeonatos dos últimos 36 anos, 3 vitórias na Taça de Portugal, 3 vitórias na Supertaça. O Sporting esteve ainda numa final da Taça UEFA. Casualidade não foi, de certeza, teve de haver aí alguma competência.

"Voltar ao Sporting? Provavelmente foi a única decisão errada que tomei na minha vida"

Como surgiu a possibilidade de emigrar? Quando viu que o mercado podia estar lá fora?

Em 2007 foi a primeira vez que estive para sair de Portugal. Cheguei a deslocar-me a Newcastle. Um amigo na altura chamou-me e estive lá 3 dias em reunião com o manager de então. Fui lá com o conhecimento de Filipe Soares Franco, que era o meu presidente na altura. Na altura não se consumou a ida para o campeonato inglês porque entretanto o chairman vendeu o Newcastle ao atual dono. Foi a primeira vez que tive a possibilidade. Depois houve outros clubes ingleses, houve outros países e a primeira vez que se concretizou foi em 2010, depois daqueles anos em Braga. Na altura surgiu um clube da Liga dos Campeões, o Olympiacos, com uma proposta financeira incomparável com a realidade portuguesa. E quando apareceu a possibilidade de voltar para Portugal (para o Sporting) por um valor inferior, voltei e provavelmente foi a única decisão errada que tomei na minha vida.

Já tinha dito numa entrevista ao Record que se arrependia de ter voltado ao Sporting ...
Os níveis de instabilidade do Sporting nos últimos anos estão por descodificar, será a história que se encarregará de explicar um conjunto de coisas que hoje em dia quem vê de fora tem alguma dificuldade em perceber. Seguramente que o número de adeptos e o peso social que o clube tem não são compatíveis com o passado mais recente. É um clube que merece muito mais mas que se tem visto a braços com uma concorrência que tem sido mais competente, ponto. Quer o FC Porto quer o Benfica têm tido mais títulos, mais presenças em momentos de decisão. Aliás, basta ver o Jesus nos últimos anos. Há 3 anos o Sporting tem tido dificuldade em fazer um trajeto idêntico aquilo que teve no Benfica. Não estamos a falar de alguém que tenha de provar a sua competência, está mais do que provada, reforçada. É um dos grandes treinadores mundiais.

E o Carlos nunca sentiu falta de reconhecimento da parte dos adeptos? Estou a referir-me às redes sociais e à blogosfera, que é sempre muito mais de enxovalhar do que de elogiar...
Disse tudo. Eu não sei quem está atrás da blogosfera... tanto pode ser alguém de 12 anos ou um catedrático.

Para acabar o capítulo do Sporting. Como vê estes últimos acontecimentos: invasão da academia, agressões a jogadores...
Sou um dos muitos observadores que lamenta o que aconteceu e que não encontra nenhuma justificação para determinado tipo de atitudes, mas não me queria alongar sobre grandes raciocínios. O que posso fazer é lamentar.

Este foi apenas um acontecimento entre muitos que têm feito notícias, pelos piores motivos. Alguma vez viu futebol português em situação idêntica?
Não e acho que todos temos culpa. Toda a gente é responsável, desde os dirigentes, aos jogadores e treinadores, mas o próprio papel da imprensa dá espaço e voz a pessoas que não têm nada a ver com futebol, que acham que pelo facto de serem adeptos podem dizer tudo o que lhes vem à cabeça, criar ambientes, suspeitas... Este ano ouvi programas em que é de meter as mãos à cabeça com aquilo que é dito. Se aumentar audiências passa por aquilo, no dia em que houver tragédias maiores do que aquelas que aconteceram em Alcochete também será uma vergonha para quem dá espaço a esse tipo de pessoas.

Está a dizer que a Comunicação Social é hipócrita nesse aspeto?
Acho que há uma grande quota de responsabilidade da comunicação social e a ERC não pode lavar as mãos. Desde o poder político à alta autoridade para a comunicação social. O futebol hoje é uma indústria totalmente profissionalizada onde se o diretor de marketing não tiver capacidade de arranjar contratos publicitários para valorizar a marca, é despedido. O futebol hoje passa por isto e quem não tiver capacidade para avaliar o que é o fenómeno, não pode ter voz. Com todo o respeito, pode achar o que quiser, mas não pode intoxicar a opinião pública.

O Calcio é um campeonato que o atrai?
Seduzia-me desde miúdo, vivê-lo por dentro também me agrada, estou muito mais feliz em Itália do que na Grécia ou em França, apesar de França me ter ajudado muito em termos daquilo que é conhecimento do mercado, onde se pode encontrar qualidade a um preço que se pode pagar - há muita qualidade nas divisões inferiores em França. A vida em Itália é muito boa, o campeonato agrada-me bastante. Não sei o que vai acontecer em junho de 2019 mas não me preocupa.

Tem contrato com a Fiorentina até 2019. Qual é o desafio agora?
Há uma grande diferença de orçamento entre nós e os cinco primeiros. Do ano passado para este baixámos 40% dos custos, a classificação foi idêntica, fizemos menos três pontos do que o ano passado. Tivemos um fator muito pesado este ano que foi a morte do capitão durante a época, um episódio que marca a vida de todos no clube. Este ano o desafio é melhorar o plantel e conseguirmos escalar alguma coisa em termos de classificação.

Como é que soube do que tinha acontecido com Astori?
Foi o único jogo da época que faltei. A minha mãe tinha partido uma perna três dias antes e tinha vindo a Lisboa para a acompanhar. Estava a tomar pequeno-almoço com o meu pai e ligou-me o team manager a dar a notícia. É uma sensação que não desejo a ninguém.

Como é que se recupera para a vida normal, para jogar no fim de semana a seguir?
Não há vida normal, há uma sensação de vazio ainda hoje. É como perderes alguém que faz parte da tua família. É comum e fácil cair-se no elogio depois que alguém parte. Mas não estamos a falar do protótipo do jogador normal, estamos a falar de alguém com uma visão da vida muito light, muito próxima daquilo que é a minha. Era alguém que tinha feito, a exemplo de todos os outros, os testes (cardíacos, físicos). Um atleta top que se vai deitar e no dia a seguir não acorda. Na altura colocou-se a hipótese de colocar um psicólogo ao lado da equipa para acompanhar os primeiros tempos e ninguém quis isso... Decidiram superar isso em família, que é o que a Fiorentina é: uma família.

Há um jogador português que passou pela Fiorentina, o Rui Costa, que ainda hoje é da família...
O Rui Costa ainda hoje é visto como o exemplo do Antonioni, Batistuta, do Sócrates, do Dunga. Faz parte dos 10 jogadores mais emblemáticos da história da Fiorentina. Faz parte do património histórico da família.

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