Após um périplo escrito e fotográfico às décadas de 1940 e 1950 e à cidade do Porto, João van Zeller retorna no tempo, num relato da sua juventude vivida entre dois continentes. Young Johnny, Lisboa & Luanda Anos 60 (edição Afrontamento), recorda-nos uma década de revolução nos costumes. Anos vertiginosos que nos deram o Maio de 68, a ida à Lua, a pílula, a minissaia, mas também a Guerra Colonial e o Muro de Berlim. De tudo isto, num registo autobiográfico que cruza factos, personalidades, encontros e desencontros, trata João van Zeller no testemunho que nos deixa da sociedade da época. Retrato histórico, mas também intimista, onde cabem amores, boémia, ingenuidade, espanto, vergonha, sucesso e insucesso. "O retrato de um Portugal desaparecido. Já esquecido para muitos que dele foram contemporâneos, e ignorado por milhões de outros portugueses", sublinha o embaixador Marcello Duarte Mathias no prefácio à obra. No dia que marca o lançamento de Young Johnny, Lisboa & Luanda Anos 60 conversamos com João van Zeller, 79 anos, homem com longa carreira internacional no setor financeiro, ligado à fundação da TVI, estando envolvido desde o seu regresso a Portugal, em 1992, no setor da Solidariedade Social..No prefácio ao seu livro o embaixador Marcello Duarte Mathias escreve que "falar de nós é falar dos outros". Mais do que uma autobiografia estamos perante um exercício de recuperação da memória coletiva? Sem dúvida, é uma década que revolucionou o mundo, com a chegada do Homem à Lua o Concílio Vaticano II, a pílula, a minissaia, o Maio de 68, os Beatles, os Rolling Stones, o Woodstock, os Yippie, a Primavera de Praga, John Kennedy, o Muro de Berlim. Uma revolução total dos costumes que influenciou a forma de estar da juventude e que eu tive a sorte de viver. No fundo, a geração baby boomers do pós-guerra a que eu pertenço..Ao longo da obra sublinha a sua ingenuidade na juventude o que o terá mantido afastado da política. Sim. O que sempre aconteceu é que fui politicamente "assético". A política nunca me atraiu. Nunca me senti nem amigo nem inimigo de ninguém devido às ideias perfilhadas, fosse em democracia ou na ditadura. A mudança do regime não alterou o meu ponto de vista. Nunca estive envolvido em movimentos políticos, não obstante a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa estar em ebulição..Em 1960, sai do Porto e vai para Lisboa estudar Direito. A capital oferece-lhe espanto, mas também um sentimento de perda e ausência. Diz-se "provinciano". Que mundo deixou e que outro mundo encontra? O Porto é uma cidade que amo. Mais fria e chuvosa leva a uma maior introspeção. O Sul abre as pessoas à natureza, à luz, à expansividade, ao relacionamento com o outro. Foi o que senti chegado a Lisboa, com a luz, a alegria das pessoas, o comportamento entre sexos, até mesmo a cor dos elétricos era mais viva. Um mundo diferente e assim continua a ser. Lisboa, desde o tempo da Reconquista, representou a corte e o poder. No Porto, está a indústria, completamente separada do poder. Repare que a palavra aristocrata não existe no Norte, existem fidalgos, o que é diferente. No Norte há uns títulos menores. O Norte, tal como atualmente, ao estar junto do poder, era empreendedor. Hoje em dia há aristocratas que são os beneficiários da atividade política, só que agora têm outros títulos como ministros, presidentes, ao invés de marqueses, etc. Em suma, em Lisboa encontrei um ambiente muito diferente, com gente que estava efetivamente chegada ao poder, que me surpreendeu, com muito dinheiro. Eu não tinha dinheiro, tive de trabalhar para pagar os meus estudos. Mas nunca fiz a distinção entre gente com dinheiro e sem dinheiro. Fui educado num meio muito transversal na sociedade, desde o pé descalço ao ricaço..Iniciados os estudos superiores refere a "banalidade real das coisas da Faculdade" ao ponto de o tornar "volátil, desassossegado, desfocado e indisciplinado". Porquê? Na Faculdade encontrávamos o maior escol de académicos que terá por ali passado. Os anos 60 reuniram os grandes mestres do Direito em Portugal, de Adelino da Palma Carlos, a Isabel de Magalhães Colaço e a Marcello Caetano. Se por um lado encontrei um nível académico exponencial nos mestres, o modelo de estudo era escolástico, muitas vezes um pouco distanciado da realidade prática da vida. A teoria predominava muito sobre a realidade e isso dececionou-me. Acontece que, naquele tempo, o Curso de Direito era uma porta aberta para muita coisa, mesmo para alunos medianos como eu. Na Faculdade encontrei um espírito revolucionário muito divertido. Nunca me deixei arrastar pela direita ou pela esquerda. Mas era um aspeto romântico, logo os estudos deixaram muito a desejar. A partir do segundo ano do curso, quando fui viver para casa de um tio [família Brion] que era engenheiro, encontrei-me com o rigor..Escreve que na época também se aburguesou... Completamente. Com o correr do tempo, as pessoas perdem o sentido idealista, muitas vezes desligado da realidade e que dificulta os sucessos na vida. Fica-se a vogar numa nuvem..Lisboa era, naquela década de 1960, uma cidade que brilhava com a noite. Como a vivia um jovem então na casa dos 20 anos, mais o seu "gang do Estoril"? Tive uma vida boémia muito divertida [risos]. Lisboa mudou completamente nesse aspeto. Há um mundo que desapareceu. Por exemplo, a boémia dos fados era interessantíssima, pois transversal socialmente, com a burguesia, a aristocracia, o povo em convívio. O Estoril juntou malta muito jovem e ingénua. Bebia-se umas cervejas até conseguirmos falar com as jovens [risos]..Foi-lhe indiferente o quadro político que se vivia em Portugal, mesmo quando trabalhou no Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), um departamento do Estado? Politicamente nunca nada me contaminou. As funções eram muito interessantes. Era uma equipa muito qualificada que fazia resumos diários para Salazar daquilo que a imprensa estrangeira publicava sobre Portugal. Muitas coisas eram censuradas, não se tornavam públicas. Mais interessante era acompanhar escritores, jornalistas, intelectuais que visitavam Portugal. Não era um guia, antes um jovem que falava várias línguas, com alguma cultura. Recordo-me do norte-americano Samuel Lowis que estudou a fundo a língua portuguesa para ler Eça de Queiroz no original..Um dos episódios que relata no seu livro envolve o intelectual suíço alemão Hugo Loetscher que regressou ao seu país convencido de que vira em si um possível agente da PIDE. Hugo Loetscher era muito antipático, mesmo desagradável [risos]. Eu, jovem, era muito aberto nas coisas que contava, mas o indivíduo ficou sempre desconfiado. No regresso ao país natal publicou um artigo arrasador sobre Portugal na revista Weltwoche, onde incluiu Salazar, a PIDE, a pobreza, a Censura, a Guerra Colonial. A televisão suíça não permitiu que fosse exibido o guião que Loetscher escreveu para um documentário. Acabou por dizer que amava Portugal e a televisão passou um documentário mais soft. Loetscher dedicou-me o seu primeiro romance, Abwässer (Esgotos), dando a entender que teria sido acompanhado por um agente da PIDE. Anos mais tarde acabámos por contactar na Suíça e mantivemos uma boa relação..De permeio, entre Lisboa e Angola, estagia um período em Londres a partir de onde escreve para o Diário Popular. Escreveu sobre cultura, espetáculo, solidariedade, mas escapou-lhe a política. Mesmo, ali, na capital inglesa, era-lhe tema indiferente? Em 1966, fui incumbido para uma comissão de serviço na Casa de Portugal em Londres. Pensei em conciliar a presença na capital inglesa com um trabalho jornalístico sobre a vida da juventude em Londres. Bati à porta do Diário Popular e fui recebido por Francisco Pinto Balsemão, Diretor Adjunto que, confesso, não sabia quem era. Tivemos uma conversa onde expus o que gostaria de fazer, negociámos o preço das fotografias [risos]. O Diário Popular emitiu uma credencial que serviu como um "abre-te, sésamo" para eventos culturais, desportivos e políticos. Ali estava um universo que, para mim, era novo, uma verdadeira revolução dos costumes. Por exemplo, acompanhei dois dias os Rolling Stones, confesso que dias muito intensos. Já no que respeita à política, tentei, a todo o custo, fazer uma entrevista a Edward Heath, líder da oposição conservadora. Partilhávamos o gosto pela música erudita e pela vela. Era um homem extremamente interessante, embora não tenha sido um grande primeiro-ministro, mas isso é outra história..Viajemos de Lisboa para África. Porque é que a sua nomeação para um cargo em Angola se deu, nas suas palavras, em "circunstâncias mirabolantes"? Em 1967, decidi fazer as duas últimas cadeiras do curso em segunda época, uma delas Processo Penal, com o Professor Cavaleiro Ferreira. Ora, eu trabalhava e não ia às aulas, mas estava muito bem preparado para o exame. Não podia perder aquele ano. Quando chego ao exame pronuncio mal a palavra "arguido", sem talhar o "u". O professor exalta-se. Fui excluído não obstante o exame fantástico. Fiquei em estado de choque, desapareci durante três dias. Findo esse tempo voltei ao SNI onde era funcionário em part time. O César Moreira Baptista, que chefiava o SNI, manda-me chamar. Vira-se para mim e pergunta-me: "quer ir para Angola?". Sem saber ao que ia, disse que sim. Três anos antes, ficara dispensado do serviço militar devido à tuberculose. Sentia-me penalizado. Custava-me ver os amigos a partirem, outros a chegarem e eu aqui..A abrir o capítulo sobre os dois anos em Angola adverte que se limita a relatar o que ali viveu. Quis isentar o seu livro de possíveis leituras políticas, ideológicas, ou outras mais? Sobre Angola tive muita dificuldade em aferir o que conto no livro. Em 1968, era muito novo, tinha 25 anos e fui com a categoria administrativa mais alta. Relato factos que, obviamente, têm leitura política, mas são factos. A minha consciência de Angola era uma tábua rasa, limpa de preconceitos ou julgamentos de fação. Uma vez mais era ingénuo, faltava-me manha. Consegui não estar envolvido nas intrigas do poder. Limitei-me a exercer as minhas tarefas no Centro de Informação e Turismo de Angola (CITA)..Em Luanda que cidade encontrou? Encontrei uma cidade fervilhante de vida e de animação. É curioso, visionar aquela época a partir dos olhos de hoje, pois está tudo muito diferente. A cidade estava num crescimento económico exponencial. Angola ficou marcada na minha existência para sempre. Quando falo com angolanos, sinto-me profundamente ligado àquela realidade..Em Angola contactou de perto com o conflito armado? Hoje em dia é muito difícil transmitir a ideia de que havia, efetivamente, conflito em determinadas zonas de Angola, mas relativamente reduzidas. Sei perfeitamente que morria gente. Mas, eu, sempre circulei por Angola com tranquilidade. A única vez em que senti que podia acontecer algo foi numa aterragem forçada no Norte de Angola. Dizia-se que podia haver problemas entre a pista de aterragem e a localidade, pois havia guerrilheiros na zona. Estive lá quase um dia sem qualquer problema. Numa outra altura, no leste do país, em Cazombo, na fronteira com a Zâmbia, estive com o tenente-coronel Gilberto Santos e Castro. Levava a equipa de cinema do CITA. Ali filmámos ações armadas dos Comandos para as Actualidades de Angola, jornal cinematográfico. O que ali havia eram situações de guerrilha..Descreve-nos a diferença abismal entre Luanda e Joanesburgo, na África do Sul, e liga-a à relação entre as diferentes raças. Quer comentar? Quando cheguei à África do Sul fiquei em estado de choque face àquele sistema repugnante. Quando voltei a Angola foi um alívio. Racismo em Angola, francamente, nunca assisti. Há, realmente, o relato de racismo que me chega na carta de uma norte-americana que tinha estado numa fazenda de café em Angola. Suponho que havia várias situações desse tipo porque alguns portugueses que iam para Angola, e faziam fortuna muito rapidamente, eram gente pouco formada moralmente o que contribuiu para situações de racismo. Agora, eu ter assistido a questões de racismo, nunca assisti..No entanto admite as diferenças culturais e sociais colossais entre brancos e negros. Havia segregação cultural e uma das razões devia-se às fraquíssimas qualificações da população negra. Na altura, começavam a aparecer dezenas de escolas e a literacia crescia exponencialmente. Havia muita gente no funcionalismo público, mas pouco qualificada. Após a visita de Marcello Caetano a Angola, o fotógrafo Alfredo Saraiva, mostra-me a foto que tirou e reparo que não havia negros. Olhei para aquilo e pensei, "como é possível?". Nesse momento achei que era o fim do caminho. Decidi que ficar ligado ao Estado Português ia acabar muito em breve..Com o tempo também sentiu que se diluíam as promessas políticas de mais autonomia deixadas por Marcello Caetano nessa sua visita a Angola em 1969? Foi encarar a realidade. Marcello Caetano fez uma série de promessas nesse sentido e depois não aconteceu absolutamente nada. Chegou a Lisboa com as suas ideias e não foi capaz de pôr em prática aquilo que ele, na realidade, pretendia, a autonomia e independência de Angola. Não tenho qualquer dúvida. A ala de extrema-direita do regime não permitiu. É a minha interpretação..No livro que agora dá aos escaparates há algum episódio que tivesse hesitado incluir? Não é fácil responder-lhe. Não fiz nada que de que tenha vergonha [risos]. Ninguém é um livro aberto, a verdade é muito cruel e a ingenuidade também é feita de uma coisa: quando somos jovens não temos inimigos, porque não ganhámos nada, não estamos a concorrer contra ninguém. Tudo corre de uma maneira diferente. A realidade trata de tornar a vida diferente..dnot@dn.pt