Viver, morrer e saber filmar

Encenando um caso de cancro num homem com menos de 40 anos, Emmanuelle Bercot consegue um filme invulgarmente tocante: <em>Enquanto Vivo</em> é dominado pelas interpretações de Benoît Magimel e Catherine Deneuve.
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Porque razão um filme surge nas salas? Ou só está acessível através de circuitos virtuais? Não há respostas seguras, muito menos definitivas, para estas perguntas. Há até quem considere que passámos a ter em nossas casas recursos mais que suficientes para vermos qualquer filme com qualidade técnica exemplar (leia-se, por exemplo, a recente entrevista de David Cronenberg ao DN, 21 nov.). Fiquemo-nos, por isso, pela informação objetiva: Enquanto Vivo, de Emmanuelle Bercot, apresentado extra-competição no Festival de Cannes de 2021, é uma novidade dos nossos videoclubes da Internet.

Vale a pena lembrar que Bercot é uma personalidade singular da atual produção francesa. Desde logo, pela intensidade dramática de algumas das suas interpretações, por exemplo no magnífico Golias, de Frédéric Tellier (estreado há duas semanas), mas também pela originalidade de alguns dos seus trabalhos como cineasta.

Duas das suas realizações podem servir de exemplo: Ela Está de Partida (2013) e De Cabeça Erguida (2015). Em ambas encontramos Catherine Deneuve, agora regressada numa personagem que envolve um invulgar desafio de representação: ela é Crystal, mãe de Benjamin, atingido, ainda antes dos 40 anos, por um cancro irreversível no pâncreas. Assim como Deneuve sabe definir a sua personagem através de um misto imponderável de serenidade e pânico, assim também Benoît Magimel é admirável na austera representação de um sofrimento cujo ponto de fuga é o inaceitável da morte.

A riqueza cinematográfica, isto é, humana de Enquanto Vivo (título original: De Son Vivant), envolve uma evidência nem sempre devidamente valorizada. Assim, não estamos, nem de longe nem de perto, no domínio de uma certa obscenidade emocional que contamina algumas formas de fazer televisão, apenas empenhadas em rentabilizar enquanto "espectáculo" o sofrimento dos outros. O que aqui mais conta é a verdade despojada de um realismo dos corpos, das situações e dos lugares que, além do mais, evita qualquer generalização fácil, seja ela de natureza médica ou familiar.

Nesta perspetiva, é especialmente interessante - e muito eficaz em termos dramáticos - que o Dr. Eddé, o médico que acompanha Benjamin, seja uma personagem assumida por Gabriel Sara, ele próprio um especialista na área da oncologia (francês, de origem libanesa, trabalha no hospital Mount Sinaï Roosevelt, em Nova Iorque). Não se trata, entenda-se, de o reduzir a um "narrador" que conduza todo o filme. Acontece que a precisão (clínica, justamente) com que ele dialoga com Deneuve e Magimel empresta ao filme uma metódica dimensão documental tanto mais intensa quanto "encaixa" de forma exemplar numa elaborada estrutura ficcional. Até porque é através dele que começa por surgir uma questão fulcral da visão de Bercot: a aceitação dos limites da existência humana. Nesta época dominada pela noção pueril de satisfação instantânea e virtual, essa aceitação é, em última instância, uma nobre celebração da vida.

dnot@dn.pt

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