Violência coreana para desenjoar das filhoses

Com estreia em exclusivo nos canais TVCine, <em>Bargain</em> é a série que aproveita a onda de crença na produção coreana, sacudindo os conceitos de classe e capitalismo numa história de sobrevivência desnaturada. Qualquer comparação com <em>Squid Game</em>, mesmo que vaga, torna-se inevitável.
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A culpa é de Bong Joon-ho. Se não fosse o Óscar de Parasitas, a onda que gerou antes e depois do feito inédito, e a voz da sabedoria em que se converteu este realizador sul-coreano, muito provavelmente não estaríamos aqui a falar de um K-drama com selo da Paramount+. Porque a verdade é que, antes de Bargain, o sucesso astronómico de Squid Game na Netflix não nasceu do dia para a noite: houve uma conjuntura própria, uma nova abertura global às produções coreanas, muito diferente do que sucedia antes do acontecimento de Parasitas. E se referimos Squid Game a propósito da série que hoje se estreia no TVCine Edition (pelas 22h10) também não é por mera formalidade - Bargain partilha com esse fenómeno do streaming, por um lado, um dispositivo de tensão e perversão que mantém os espectadores ligados à corrente, e por outro, uma lógica de crítica social que visa o capitalismo e as suas manifestações mais perturbadoras.

Estamos num hotel em lugar remoto e é dentro de um dos quartos que se fazem os preparativos para a ação. Ali se encontra uma jovem que está prestes a vender a sua virgindade a um homem com quem fez um acordo prévio, embora algo não bata certo com a postura inocente dela quando os dois começam a entrar em pormenores sobre a questão da sua virgindade... Bem, talvez porque a suposta rapariga de 18 anos seja membro de uma rede de tráfico de órgãos e aquele homem esteja no lugar errado, à hora errada: quando se dá por isso já ele está amarrado a uma maca e submetido a leilão diante de um grupo de estranhos que se batem pelo seu rim, antes de passarem às outras partes do mecanismo biológico. Entre os licitantes, um jovem visivelmente desesperado e com dificuldades monetárias - precisa de garantir o rim para o seu pai moribundo, que aguarda um transplante - parecia ser o suficiente para fazer escalar a situação. Mas o pico da loucura vem antes sob a forma de um terramoto que provoca um enorme buraco no centro do edifício...

Filmado com uma fluidez segura que instala a sensação plena de claustrofobia, este primeiro episódio de Bargain é um delírio total. De resto, nesses 35 minutos define-se o mais relevante da experiência: uma destreza técnica que nos põe dentro do hotel em ruínas, seguindo as personagens com a ilusão ótica de que não há nenhum corte de planos. Foi pelo menos essa a intenção do realizador e showrunner Jeon Woo-sung, que consegue criar um jogo frenético com a prova de esforço da câmara. Seja como for, os olhos mais treinados também se podem divertir a identificar os cortes disfarçados.

Vencedora do prémio de Melhor Argumento no festival CanneSeries (depois do marco de ser a primeira série coreana a integrar essa competição), Bargain torna-se, a partir do segundo episódio, uma história de sobrevivência em que as três personagens principais do início se deparam com toda a sorte de obstáculos e insanidade espalhados pelos andares do hotel semidestruído. Um pouco como o comboio de Snowpiercer - Expresso do Amanhã, filme de Bong Joon-ho que explora o sistema de classes através da metáfora das carruagens, a ideia aqui é ir tentado subir os tais andares do prédio até chegar aos cofres do chefe. E, claro, não serão os únicos.

Caso neste ponto ainda não seja percetível, vale a pena sublinhar que ao longo dos seis episódios da série não há ninguém que mereça os nossos melhores sentimentos. A jovem que se fez passar por virgem é altamente dotada na mentira, e só se interessa pela própria vida e pelo lucro do patrão; o homem que foi ao engano e acabou leiloado é a personificação do ridículo e andará quase o tempo todo de cuecas e galochas naquilo que aparenta ser uma espécie de fim do mundo; e mesmo o jovem atormentado pela urgência de arranjar um rim ao pai - tinha, aliás, fechado um preço antes do sismo! - não tem grande salvação na sua atitude de carniceiro a exigir aquilo que pagou.

Em Cannes, o coargumentista Choi Byeong-yun realçou ao jornal Korea JoongAng Daily a centralidade dessa imperfeição moral das personagens: "Era uma premissa interessante fazer com que todos numa história fossem tão maus. O terramoto é metaforicamente um castigo e também uma analogia das armadilhas do capitalismo moderno. Queríamos mostrar o lado obscuro da sociedade coreana através desta história."

Não fosse a sua gestão de humor negro e suspense, esta série adaptada de uma curta-metragem de 2015 poderia ficar-se pelo esqueleto do exercício de sobrevivência. E se é verdade que perde algum gás mais ou menos a partir do terceiro episódio, sobretudo depois daquele início exemplar na formulação do impacto, não deixamos de permanecer vidrados na ginástica da câmara, que percorre o cenário entre corredores sinuosos, portas fechadas, acessos exíguos e saltos no vácuo, enquanto capta toda a violência cómica do trajeto. Escusado será dizer que o pior da humanidade tem um tom por vezes hilariante.

Consciente de que os filmes e séries coreanas estão por aí em força, o realizador Jeon Woo-sung parece preocupado com uma possível banalização criativa: "As produções coreanas estão a receber níveis de atenção nunca antes vistos e isso traz alguns efeitos secundários. Também tem que ver com a forma como, depois da pandemia, o cenário do mercado de streaming mudou e o K-drama se tornou mais acessível." Efeitos secundários? Veja-se o aproveitamento do êxito de uma série como Squid Game, que no mês passado ganhou uma versão reality show, com os concorrentes a sujeitarem-se aos desafios mais agressivos para conquistarem o prémio de 4 milhões de euros... Enfim, vivemos num mundo em que não se consegue deixar nada quietinho.

dnot@dn.pt

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