Velázquez, o génio ao serviço de Sua Majestade, de visita à Gulbenkian
Com uma franqueza que desconcerta os espíritos mais suscetíveis, alguma historiografia espanhola divide os monarcas descendentes de Carlos V e Isabel de Portugal em duas secções: os Áustrias maiores e os Áustrias menores. Nesta última, condenado pela reputação de pusilânime (ou de pasmado, segundo o romance de Gonzalo Torrente Ballester ), está o rei Filipe IV, III de Portugal até 1640. Apesar disso, nenhum outro monarca da História de Espanha, por mais faustoso que tenha sido, foi várias vezes retratado, a solo ou acompanhado pela família, por Diego Velázquez, o sevilhano a quem bastaria ter pintado Las Meninas para ser venerado pela posterioridade.
Um desses retratos pode ser visto no Museu Calouste Gulbenkian até 9 de setembro. Trata-se de uma obra proveniente da coleção do norte-americano Henry Frick (1849-1919), considerada um excelente exemplo da mestria de Velázquez, que se estabeleceu em 1623 como pintor da corte espanhola, inserindo-se no conjunto de uma vasta produção que procurou afirmar a imagem pública do rei, dos seus familiares mais próximos (a rainha Isabel, por exemplo, o príncipe herdeiro Baltazar Carlos, que morreu ainda criança, ou a infanta Margarida Teresa, protagonista de Las Meninas), mas também os seus principais servidores, como o todo-o-poderoso valido (e muito odiado, sobretudo em Portugal e Catalunha), Conde-Duque de Olivares.
A excelência deste retrato justificou a realização na passada segunda-feira de um colóquio (“Velázquez, Retrato e Poder”) em que participaram Xavier F. Solomon, diretor adjunto da The Frick Collection, Guillaume Kientz, CEO e diretor da Hispanic Society Museum & Library de Nova Iorque, e Pablo Pérez d’Ors, diretor do museu da Fundación Juan March, Palma.
Kientz começou por lembrar a genealogia artística de Velázquez, que levou ao expoente máximo uma tradição de retrato de corte desenvolvida já no século XVI por nomes como Antonio Moro, Sanchez Coello, Pantoja de la Cruz ou Rodrigo de Villandreno. E alongou-se, depois, pelo contexto histórico da obra em foco: realizada na Primavera de 1644, esta resulta de uma incursão militar do monarca na Catalunha, por ocasião da revolta iniciada na região em 1640.
Como chefe militar vitorioso
The Frick Collection, Nova Iorque.
Velázquez, que acompanhou o rei e as suas tropas, terá realizado esta pintura num curto espaço de tempo, em condições pouco habituais, num ateliê improvisado, em Fraga, quartel-general do exército espanhol.
Em contraste com a sobriedade de outros retratos produzidos por Velázquez e outros artistas seus contemporâneos (muito ao gosto da indumentária em uso na corte espanhola desde Filipe II (Filipe I de Portugal), em que o traje negro, apenas pontuado por alguns pormenores brancos, como a gola, eram sinónimo de distinção), o pintor optou por representar Filipe IV no papel de chefe militar vitorioso. Para isso, apresenta-o envergando sobreveste, adornada com brocados que combinam com a faixa que suporta a espada, um dos símbolos da sua autoridade, a que se junta o bastão que evoca a vitória militar do seu exército após a reconquista da cidade de Lérida. Uma vez concluída, a pintura seria enviada para Madrid, a fim de representar simbolicamente o rei numa missa na Igreja de San Martín, que celebrou a vitória.
O espanhol Pablo Pérez d’Ors reforçou este carácter excecional da obra, conhecido também como retrato de Lérida, lembrando ainda que o seu esplendor só foi verdadeiramente revelado após um grande trabalho de restauro realizado na primeira década deste século. Ainda assim, como contou Xavier Salomon, este Velázquez, mesmo muitas décadas antes do restauro, foi muito disputado por colecionadores até ser adquirido por Henry Frick, no princípio do século XX. O preço? Qualquer coisa como 500 mil dólares.
Entre os que o terão cobiçado parece ter estado o próprio Calouste Gulbenkian, que na sua biblioteca particular tem uma publicação sobre o quadro, precisamente da época em que este esteve no mercado. Em 1919, Gulbenkian conseguiu adquirir uma obra de Velázquez, Retrato de D. Mariana de Áustria, proveniente da Coleção Lyne Stephens, que mais tarde seria doado ao Museu Nacional de Arte Antiga.
Recorde-se que o ciclo “Obra Visitante” do Museu Calouste Gulbenkian, foi inaugurado há justamente dois anos, com outra obra-prima da pintura europeia, o Autorretrato com Boina e Duas Correntes, de Rembrandt, emprestado pelo Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, de Madrid.