Peço antecipadamente desculpa se estou a cometer um lapso informativo, mas fiz uma pesquisa em várias lojas da Internet (algumas com ligação a circuitos de livrarias) e creio que a tradução portuguesa de Blonde, o prodigioso romance de Joyce Carol Oates em que se baseia o filme de Andrew Dominik, deixou de estar disponível no nosso mercado (a primeira edição surgiu em 2001, com chancela da Editorial Notícias). Mesmo algumas edições noutras línguas estão à venda com a indicação: "notifiquem-me quando disponível"..Não se tratar de ceder ao vício futebolístico de distribuir "culpas"... Haverá, uma coleção de fatores, por certo de natureza internacional, para explicar a situação, em qualquer caso desconcertante, do livro Blonde. Ainda assim, em algumas lojas virtuais portuguesas, está disponível a reedição em inglês, motivada pelo aparecimento do filme. Não encontrei (e também neste caso, a minha pesquisa pode ter sido imperfeita) a edição brasileira, com Ana de Armas na capa, lançada pela Harper Collins Brasil; pormenor bizarro: no respetivo site, refere-se que o livro inspirou, não um filme, mas a "série homónima" da Netflix..Oscilando entre o dramático e o caricato, estes são sintomas de uma perversa desqualificação cultural do livro e do trabalho literário. Na ficha do filme, a própria Netflix, fiel a uma apoteótica indiferença informativa (triunfante em quase todas as plataformas de streaming), dá-se ao luxo de "apresentar" Blonde sem citar o nome de Joyce Carol Oates... Ou então, também aqui, fui eu que vi mal e esse nome surge, algures, no meio da mistura de confusão visual e irresponsabilidade informativa que faz com que, por exemplo, Rolling Thunder Revue, documentário sobre Bob Dylan com assinatura de Martin Scorsese, surja na secção... "Mulheres atrás das câmaras"!.O negrume do filme de Dominik está, por assim dizer, sinalizado - e sem dúvida inspirado - pela abertura do livro com a mensagem letal da Morte (sim, com maiúscula, isto é, com a dignidade dramática de uma personagem), na noite de 3 de agosto de 1962, tocando à porta do número 12305 da rua, ou avenida, denominada Fifth Helena Drive: "Assim chegou a Morte avançando ao longo do Boulevard em agonizante luz sépia.".Os avisos são vários, a começar pela nota da autora, lembrando que se trata de narrar uma "vida" (é a própria escritora que coloca as aspas na palavra "life") "em forma de ficção". Como? Através da mais bela estratégia narrativa que a ficção pode envolver: não a rudimentar regra televisiva de "reprodução", mas um "princípio de apropriação". Tal prática faz com que o livro se apresente dividido em cinco capítulos, cada um correspondendo a um intervalo específico da vida de Marilyn Monroe (1926-1962), com designações mais ou menos objetivas. Apenas o penúltimo capítulo (1953-1958) usa aspas no próprio título: "Marilyn"..É esse o motor central do livro e do filme. A saber: uma mulher, um corpo, um ícone colocado entre aspas, vivendo a condição de personagem de uma história que protagoniza, destruindo-a, momento a momento, através dos êxtases do seu protagonismo. Dir-se-ia que não foi Dominik que colheu essa ideia no livro de Oates, mas sim a escritora a produzir um fascinante objeto literário que acolhe, cena a cena, o assombramento do cinema..dnot@dn.pt
Peço antecipadamente desculpa se estou a cometer um lapso informativo, mas fiz uma pesquisa em várias lojas da Internet (algumas com ligação a circuitos de livrarias) e creio que a tradução portuguesa de Blonde, o prodigioso romance de Joyce Carol Oates em que se baseia o filme de Andrew Dominik, deixou de estar disponível no nosso mercado (a primeira edição surgiu em 2001, com chancela da Editorial Notícias). Mesmo algumas edições noutras línguas estão à venda com a indicação: "notifiquem-me quando disponível"..Não se tratar de ceder ao vício futebolístico de distribuir "culpas"... Haverá, uma coleção de fatores, por certo de natureza internacional, para explicar a situação, em qualquer caso desconcertante, do livro Blonde. Ainda assim, em algumas lojas virtuais portuguesas, está disponível a reedição em inglês, motivada pelo aparecimento do filme. Não encontrei (e também neste caso, a minha pesquisa pode ter sido imperfeita) a edição brasileira, com Ana de Armas na capa, lançada pela Harper Collins Brasil; pormenor bizarro: no respetivo site, refere-se que o livro inspirou, não um filme, mas a "série homónima" da Netflix..Oscilando entre o dramático e o caricato, estes são sintomas de uma perversa desqualificação cultural do livro e do trabalho literário. Na ficha do filme, a própria Netflix, fiel a uma apoteótica indiferença informativa (triunfante em quase todas as plataformas de streaming), dá-se ao luxo de "apresentar" Blonde sem citar o nome de Joyce Carol Oates... Ou então, também aqui, fui eu que vi mal e esse nome surge, algures, no meio da mistura de confusão visual e irresponsabilidade informativa que faz com que, por exemplo, Rolling Thunder Revue, documentário sobre Bob Dylan com assinatura de Martin Scorsese, surja na secção... "Mulheres atrás das câmaras"!.O negrume do filme de Dominik está, por assim dizer, sinalizado - e sem dúvida inspirado - pela abertura do livro com a mensagem letal da Morte (sim, com maiúscula, isto é, com a dignidade dramática de uma personagem), na noite de 3 de agosto de 1962, tocando à porta do número 12305 da rua, ou avenida, denominada Fifth Helena Drive: "Assim chegou a Morte avançando ao longo do Boulevard em agonizante luz sépia.".Os avisos são vários, a começar pela nota da autora, lembrando que se trata de narrar uma "vida" (é a própria escritora que coloca as aspas na palavra "life") "em forma de ficção". Como? Através da mais bela estratégia narrativa que a ficção pode envolver: não a rudimentar regra televisiva de "reprodução", mas um "princípio de apropriação". Tal prática faz com que o livro se apresente dividido em cinco capítulos, cada um correspondendo a um intervalo específico da vida de Marilyn Monroe (1926-1962), com designações mais ou menos objetivas. Apenas o penúltimo capítulo (1953-1958) usa aspas no próprio título: "Marilyn"..É esse o motor central do livro e do filme. A saber: uma mulher, um corpo, um ícone colocado entre aspas, vivendo a condição de personagem de uma história que protagoniza, destruindo-a, momento a momento, através dos êxtases do seu protagonismo. Dir-se-ia que não foi Dominik que colheu essa ideia no livro de Oates, mas sim a escritora a produzir um fascinante objeto literário que acolhe, cena a cena, o assombramento do cinema..dnot@dn.pt