Pode-se amar uma cidade habitada por três milhões de almas como se fosse um corpo individual, feito de ossos, músculos e sangue? Pode, e se o apaixonado for cineasta ou romancista é bem provável que a cousa amada (para manter a expressão grata a Camões) se transforme na sua principal personagem, aquela a que se volta sempre, com renovado amor, de forma mais ou menos explícita. No caso do realizador espanhol Pedro Almodóvar, essa personagem, mais do que qualquer outra das suas “chicas”, é Madrid, de tal modo que se poderia dizer que a cidade está para ele como Ema Bovary para Flaubert ou Ana Karenina para Tolstoi..Esta é a premissa da exposição Madrid, Chica Almodóvar, que pode ser visitada (de forma gratuita) no Centro Cultural Condeduque, na capital espanhola, até 20 de outubro..Concebida por Pedro Sánchez Castrejón, autor do livro Todo sobre mi Madrid - Un paseo por el Madrid de Almodóvar, a mostra estabelece um constante diálogo entre a evolução da capital da movida, desde os anos da transição para a Democracia até hoje, e a própria carreira do mais internacional cineasta espanhol da era pós-Buñuel..Esta “viagem” começa ainda na infância do futuro realizador, passada numa zona rural da Província de Castela-La Mancha, quando, à distância, Madrid brilhava como um farol de possibilidades e cosmopolitismo. Vemos os primeiros ensaios de guiões escritos nos cadernos da Telefónica, onde o jovem Pedro, que nunca frequentou qualquer escola de Cinema, foi funcionário quando finalmente chegou à metrópole por que tanto ansiara, bem como as primeiras (e muito rudimentares) máquinas de filmar. É neste contexto que surge o primeiro êxito Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón (1980) e as primeiras “chicas” Almodóvar: Carmen Maura, Alaska, Julieta Serrano e Cecilia Roth, entre outras..Mas o destaque maior era já a própria cidade, na sua trepidante descoberta da liberdade após o fim da ditadura franquista. Daí até hoje, raramente a capital espanhola foi eclipsada por qualquer outra protagonista. A tal ponto que, em 2018, o cineasta foi distinguido como filho adotivo de Madrid. No discurso de agradecimento, disse: “Não posso conceber os meus filmes sem Madrid, não apenas como fundo, mas como uma personagem mais. Não pretendo apropriar-me da cidade. Como qualquer grande urbe, Madrid faz-se de muitas cidades, povos, mentalidades de estados de alma. Eu só tive tempo e capacidade para representar a pequena parte em que vivi, e posso dizer que a vivi com muita intensidade.”.Ninguém duvida. Por esta exposição, passam muitos momentos e lugares icónicos da filmografia de Almodóvar e da cidade, tenham sido eles filmados in situ ou reconstituídos em estúdio: lá estão a varanda de todas as emoções em Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, o estúdio com vista sobre a Plaza de Callao, em A Flor do Meu Segredo, o estúdio de dança de Alicia em Fala Com Ela, mas também lugares muito emblemáticos da vida madrilena como o Círculo de Bellas Artes ou o bar Museo Chicote, no coração da Gran Vía, outrora frequentado por Ava Gardner ou Hemingway..De resto, o facto de a exposição estar patente no Centro Cultural Condeduque não deixa de ser uma curiosidade cara aos fãs de Almodóvar, já que ali foi filmada a cena de A Lei do Desejo em que, numa noite de muito calor, a personagem de Carmen Maura pede para a “regarem” com uma mangueira. Sobre esta cena, Susan Sontag diria que o seu impacto no imaginário coletivo é apenas comparável à protagonizada por Marilyn Monroe, de saias ao vento, em O Pecado Mora ao Lado..Nas 272 localizações madrilenas identificadas na exposição, destaca-se também aquela que é considerada a esquina Almodóvar - frente ao Edifício Metropolis, onde a figura alada da vitória domina uma perspetiva única da Gran Vía e da Calle de Alcalá. Morador durante muitos anos na vizinha Calle de los Madrazo, o cineasta admitiu que fotografava muito aquele lugar, que o usou várias vezes na sua filmografia, a mais recente das quais em Julieta..Mas a filmografia de Almodóvar não se deteve apenas nas zonas mais glamorosas da capital, estendeu-se também a bairros mais periféricos, e a exposição também dá conta dessas incursões, sempre feitas com respeito. Aconteceu, por exemplo, em O Que Fiz Eu para Merecer Isto (Bairro de la Concepción, nas imediações da M-30), mas também em Volver ou em Dor e Glória (ambos com cenas filmadas em Vallecas)..E porque o cinema também é envolvimento e afeto, o visitante é ainda convidado a tirar uma selfie num sofá que recria o original de Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, tendo como pano de fundo o cenário da varanda mais famosa do cinema espanhol. Para que, por instantes, entre no espírito e se sinta um pouco “chica Almodóvar”.