Uma BD a preto e branco que presta homenagem às “mulheres de conforto”

Uma BD a preto e branco que presta homenagem às “mulheres de conforto”

Com 'Erva', a sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim mostra-nos um episódio trágico do país, quando durante a II Guerra Mundial milhares de jovens foram forçadas a prostituir-se para os soldados japoneses.
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Através do título Erva, quis mostrar simbolicamente que a vida é preciosa e que os seres humanos têm dignidade”, escreveu Keum Suk Gendry-Kim numa pequena introdução à extraordinária novela gráfica que dedicou às “mulheres de conforto”, coreanas forçadas a prostituir-se para os soldados japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, sendo que na Ásia o conflito não começou no célebre 1 de setembro de 1939, data da invasão alemã da Polónia, mas sim uns dois anos antes, com o Japão a tentar anexar a China e depois vários países. A Coreia, essa, já era uma colónia japonesa desde 1910, quando foi derrubada a dinastia Joseon.

Com o Império Japonês a expandir-se até à Birmânia e à Indonésia, é possível encontrar “mulheres de conforto” de várias nacionalidades, mas a maioria eram coreanas, muitas delas adolescentes, como Ok-Sun Lee, que é a personagem principal de Erva, contando já quase nonagenária o que foi a sua vida, e sobretudo aquele dia em que foi raptada e levada para longe, para um bordel destinado aos militares: “não me fizeram uma pergunta sequer. Levaram-me à força… fui raptada no caminho de regresso. Um era coreano e o outro japonês. Mas, como estavam vestidos à civis, não consegui perceber se seriam polícias ou militares. Eu resisti e gritei e debati-me. Perguntei-lhes porque estavam a levar-me. Disse-lhes que os meus pais estavam à minha espera em casa. Mãe!! Pai!! Estávamos em 1942. Eu tinha quinze anos”. 

Erva
Keum Suk Gendry-Kim
Iguana
484 páginas
23,95 euros

Se estas palavras já impressionam, pelo horror que mostram de uma jovem a ser levada à força não sabe bem para onde, então quando surgem enquadradas com os desenhos de Gendry-Kim, sempre a preto e branco, ganham toda uma expressividade que nos transporta para outra época, uma época terrível de guerra, mas também uma época terrível de pobreza. A sr.ª Ok-Sun Lee, como é sempre respeitosamente referida no livro, vivia em Busan, no extremo sul da Península Coreana, numa família tão pobre que uma simples taça de arroz era um luxo, e que chegou até a dá-la para adoção. Na verdade, os supostos novos pais só queriam uma criada para casa, e quando foi raptada a jovem trabalhava numa taberna, já certa de que o sonho de ir à escola não se iria nunca realizar. 

As “mulheres de conforto” coreanas eram quase todas oriundas destas camadas mais pobres da população e isso vai ainda complicar mais a integração das que sobreviveram aos abusos e reconquistaram a liberdade quando o Japão se rendeu, a 15 de agosto de 1945, dias depois das bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasaki. No livro, é contado que depois de derrotados os japoneses, são os soldados soviéticos que chegam para receber a rendição e abusam também eles das “mulheres de conforto”.

Esta novela gráfica é quase uma reportagem. A autora teve várias conversas com a sr.ª Ok-Sun Lee, que de início sentiu muitas dificuldades em abrir-se sobre o passado, insistindo que o Japão tinha de pedir desculpas e não apenas fazer um acordo com a Coreia do Sul sobre indemnizações, como aconteceu em 2015. Depois, pouco a pouco, a velha senhora foi revelando o que foi sempre uma vida dura, já que depois da guerra foi abandonada por um marido e aceitou depois novo casamento com um homem que bebia demasiado e já tinha dois filhos, um deles deficiente. A sra. Ok-Sun Lee, que ficara estéril quando usou vapores de mercúrio para se curar da sífilis que apanhou dos militares, afeiçoou-se ao enteado, que logo a chamou de mãe, e por isso ficou a viver em Longjing, numa parte da China habitada por coreanos, a mesma região para onde tinha sido levada pelos japoneses em 1942 e colocada num barracão da base aérea de Yanji-Leste.

Keum Suk Gendry-Kim

O livro começa com a sra. Ok-Sun Lee a despedir-se da família na China para viajar pela primeira vez em mais de meio século até à Coreia. A viagem tem de ser de avião. Depois de 1945 a Coreia ficou dividida em duas e assim se mantém. Hoje há um Norte comunista (na parte em que os soviéticos receberam a rendição japonesa) e um Sul democrático (na parte onde foram os americanos a receber a rendição). Não é possível, pois, a partir da China atravessar a Coreia do Norte para chegar à Coreia do Sul, onde a sr.ª Ok-Sun Lee passou a viver, numa “casa da partilha” criada em 1995 na cidade de Gwangju, composta por um museu e um espaço habitacional para antigas “mulheres de conforto”, um eufemismo que nada esconde. Mas mais do que as companheiras de infortúnio, sr.ª Ok-Sun Lee tem a capacidade de, em longas conversas com a desenhadora, ir contando o incontável, uma história que é a sua e também de milhares de outras mulheres. O livro acaba com a desenhadora Gendry-Kim a viajar até à China, à região que em tempos foi conhecida como Manchúria, em busca do que resta ainda da base de Yanji-Leste, um barracão (será o tal barracão?) prestes a ser demolido.

Este é o segundo livro da autora sul-coreana publicado pela Iguana, depois do comovente A Espera, inspirado pela história da própria mãe de Gendry-Kim, que durante a guerra de 1950-1953 se separou da irmã, que ficou na Coreia do Norte e da qual nada mais soube. Em Portugal, mas com chancela da Levoir, estão também publicadas as novelas gráficas A Árvore Despida e Alexandra Kim: Filha da Sibéria.

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