O segundo romance de Francisco Mota Saraiva apresenta em definitivo um novo escritor aos leitores.
O segundo romance de Francisco Mota Saraiva apresenta em definitivo um novo escritor aos leitores.D.R.

Um romance sobre a "canalha" que vive em abandono

 O segundo romance premiado de Francisco Mota Saraiva faz uma radiografia de um país em que ninguém é feliz. Uma narrativa dura e exemplar, tão escura como iluminada.
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O conceito de Nau Catrineta atravessa todo o romance Morramos ao menos no porto do escritor Francisco Mota Saraiva, que com esta obra foi o vencedor da última edição do Prémio José Saramago. Não será por acaso que a Catrineta tem essas aparições frequentes, demasiado reais em vez de corresponder ao universo onírico que impregna a narrativa total que a obra expõe sob várias fórmulas. Em princípio, o adjetivo onírico não seria o mais adequado para definir o rumo dessa Nau porque se refere a sonhos e é sinónimo de imaginário, ilusório ou surreal, no entanto, é disso que em muito este Morramos é composto na sua essência.

A Nau Catrineta é um poema de autor desconhecido que, felizmente, Almeida Garrett recuperou no seu Romanceiro e Cancioneiro Geral (1843) e que dá voz à tradição oral de uma viagem marítima tenebrosa entre o Brasil e Lisboa. Tal como essas trevas vividas pelos tripulantes de uma nau, também neste romance de Francisco Mota Saraiva os personagens não escapam ao drama do que é viver sob certas condições de desespero. Se no poema se dizia «Lá vem a Nau Catrineta / que tem muito que contar!», também em Morramos, esse drama de uma luta pela sobrevivência é o tema principal daqueles que o autor chama para preencher as mais de duzentas páginas do livro e deixar registada uma condição social indesejada.

Pergunta-se ao escritor se pretendeu fazer um retrato não oficial do país que nos rodeia ou se a intenção era apenas a de apelar à ficção. Francisco Mota Saraiva aceita que «este é um retrato nosso, de Portugal e das suas gentes» e que que o seu desejo se clarifica por via de um «País admoestado e adormecido, uma quase distopia de um Portugal que não fez as pazes com a ditadura e que ainda não tem debaixo da língua o verdadeiro travo da democracia e do desenvolvimento do mundo ocidental». Não que fosse essa a intenção inicial: «Querer pintar o retrato de um certo país ou de uma certa gente é apenas uma decorrência de quem nele vive e que constata as dores e as situações básicas do lugar, da sociedade e da realidade que conhece.» Daí que assuma que todo o escritor deve ter «um apego à sua língua, a sua pátria no dizer do Outro, e que o bom escritor apenas poderá escrever bem na língua que lhe vem do ventre da mãe - o que é diferente da língua-mãe -, motivo pelo qual que toda a sua criação e toda a sua dor artística estarão sempre em plena comunhão com aquelas que são também as dores e os anseios onde se fala a sua língua, e onde, com espontaneidade, entra no café, no consultório médico, na bilheteira da estação, e diz boa tarde, obrigado, até já». 

Não sendo um escritor de idade avançada, tem 36 anos, o cenário do romance está em muito dominado por personagens de uma idade em muito distante da sua. Questiona-se o porquê da escolha desta temática e porque faz dessa época da vida humana um tópico importante na sua escrita. Nega que tenha tido uma infância infeliz, pelo contrário, e assegura que os verões da juventude tornaram essa felicidade ainda maior. Contudo, não refere esta estação por acaso: «Ainda muito novo, um desses dias imensos de agosto foi interrompido pela visita a um parente afastado que estava num lar, onde tudo me pareceu sujo e perturbável: os corpos, as loiças, os assentos, os rostos dos velhos. Não sei o que mais me impressionou: se a expressão deserta dos velhos, se a amabilidade indiferente dos familiares; ou se aquele jogo de dança de quase vida e de quase morte. Daí, não tendo medo de morrer, fiquei com um profundo horror em ser velho, em ser um jeito abandonado de gente, uma coisa sumida para um canto. Tenho medo de tornar-me o medo dos outros ou o meu próprio medo.» 

A sociedade que o leitor observa na leitura não será a do próprio tempo do escritor. Serão memórias ou testemunhos reais? A explicação é mais literária: «Há muito que retiro aos livros e à experiência de leitura compulsiva - está tudo em Shakespeare ou em Sófocles, também em Proust, ainda que de uma forma diferente – essa observação de ideias, de pessoas e de acontecimentos que me foram próximos, embora com a distância devida de quem imagina e transcende. Se a Agustina Bessa-Luís dizia, “o bom escritor é aquele que escreve sobre o que sabe e o que conhece”, todavia não consta que Júlio Verne tenha cruzado o centro da Terra ou descido ao fundo do mar, nem que Vítor Hugo tenha sido alguma espécie de miserável, ou que Kafka se tenha transformado num inseto, e não precisamos de fazer como Zola para escrever Germinal. A memória, a tergiversação, a mentira, apuram os sentidos que observam e decalcam. É tudo verdade. É tudo mentira. É criação.»

Sendo a resposta mais literária do que realista, Mota Saraiva não deixa de esclarecer como edifica a galeria de personagens que se vão alternando pelos capítulos. Que é muito popular: maridos em abandono, militares trapalhões, jovens de gravidez indesejada e muita canalha. Onde foi recolher essa matéria-prima e porque a elege como principal? A explicação surge rápida: «Prendo-me aos detalhes das pessoas que vão entrando na minha vida, ainda que não dela próxima. Assisti, com a distância privilegiada, mas com o olhar pegado e atento de um espectador, aos maiores traumas da cidade: a droga, a prostituição, a política, etc.. Todos esses galhos da mesma árvore de que todos caímos».

Não resiste a dar um bom exemplo do que diz: «Um dia, o pai de um amigo, advogado, ao sair do carro, virou-se para um arrumador toxicodependente e disse-lhe: “Dou-te esta moeda, com a qual irás comprar hoje a droga de que precisas para a ressaca, moeda essa que irá para um traficante que amanhã se verá metido numa alhada e que virá, depois de amanhã, até ao meu escritório pedindo-me para que eu o defenda, e a tua moeda voltará para mim, com os juros de três dias; portanto, toma lá a moeda”. Este é o ciclo da cidade suja e nojenta a que me habituei, dos seus protagonistas indigentes, pobres e ricos, analfabetos e letrados, vítimas e verdugos, todos indigentes. A mim, cabe-me o privilégio de lhes inventar uma vida que não se pode sequer imaginar.» 

A estrutura de Morramos ao menos no porto vive muito de uma construção literária como a de um caleidoscópio, em que a luz - protagonizada pelo olhar do escritor - gera reflexos diversos que colam os pedaços soltos dos personagens uns aos outros. Como foi espalhar essa cola para os reunir num único livro é a questão que se lhe põe. Responde: «Todo o livro e a sua construção literária é uma manta de retalhos a que vou atando as pontas. Do mínimo detalhe, colo aqui e ali, e tudo se vai criando a partir da mínima luz até alcançar o resplendor completo ou aquele que me parece existir, iluminando o redor daquilo a que o livro se propõe. Por isso, as vozes sucedem-se e atropelam-se até que, todas juntas e sobrepostas, dão origem a uma única camada, a um só chão. Pode resultar de um ou de vários acasos, mas depois de trabalhados o que replica é o que sucede com toda a vida e qualquer construção artística.»

Estranha-se em muito a chamada constante à narrativa de termos muito pouco usuais na atual linguagem da nossa sociedade. Para o escritor a explicação é simples: «Sou um apaixonado pelas palavras, principalmente pela sua fonética e pelo seu cheiro, pois muitas delas estão impregnadas de lembranças que ecoam em mim a dado lugar e momento. Por exemplo, o vocabulário da minha avó. Que, com pouco mais que a quarta classe, é tão rico quanto o do maior dos académicos. Então, faço anotações, classifico e recordo-o. Procuro também linguajares nas notícias, nas viagens pelo país, no Aquilino Ribeiro, na mesa do lado do café e, porque não, também em livros obscuros. Mais uma vez anoto, classifico e recordo. Ao tomá-los para a minha escrita e também para a minha forma de falar quando possível, faz com que minha pretensão de escrever seja a de como se toca um trompete de jazz ou de como o algoz da Inquisição ditava a sentença ao condenado.»

Quanto ao cenário principal de Morramos, ele tem como ponto de partida um prédio. Ao centralizar em muito a ação do romance, o edifício transforma-se num sumidouro de tudo o que empesta o mundo deste romance. Mota Saraiva revela que o romance parte de um detalhe mínimo: «Estava a olhar para o chão de uma casa em que vivi, com tetos altos, sobrado antigo em madeira, que, sendo uma casa era também de gente viva e de gente morta, repleta de sons. Então, imaginei que debaixo desse mesmo sobrado antigo de madeira existiram gentes e recordações e o meu chão era também comum a diferentes vizinhos: clandestinos, doutores, novos, velhos, laboriosos e madraços. Ou seja, uma pequeníssima babel de vozes e anseios que se atropelavam nas escadas do mesmo prédio, em que todos se escondiam uns dos outros, mesmo que se espreitassem, apegados aos seus silêncios e gritos. Que eram as únicas formas que tinham de se relacionarem uns com os outros por não encontrarem uma situação intermédia. Creio que todos os prédios serão iguais, daí este do romance também o ser assim.»

Há no início uma epígrafe de Séneca de que Francisco Mota Saraiva retira o título do livro. Até que ponto as palavras do filósofo na sua Carta a Lucílio continuam inspiradoras é a pergunta que se lhe coloca e a que responde: «Séneca é atual e inspirador, porque é exato e explícito, sem conceder naquilo que nos atormenta enquanto indivíduos. Entre os pensadores que conheci, está Séneca e também Shakespeare: o primeiro, trabalhou pelo lado da alma; o segundo, pelo lado do corpo. Quanto às Cartas a Lucílio, há muito que se tornaram para mim um exercício quase bíblico. São como um apontamento de livro de cabeceira com o qual divido os meus interesses éticos e morais, não porque procure retirar delas os seus ensinamentos filosóficos ou porque seja devoto aos ensinamentos estoicos, antes pela sua dimensão anacrónica, transcendental e intemporal, que vivem e se propagam para lá das gerações. Tudo nele é presente e tudo é atual, sendo um “anti”-tudo da sociedade que habitamos há mais de dois mil anos; portanto, como qualquer “anti”, é um revelador das nossas maiores fraquezas e das nossas mais evidentes certezas.»

Não se abandona este Morramos ao menos no porto sem se inquirir sobre a existência de um aroma a António Lobo Antunes que o envolve. É intencional, existe ou é uma interpretação errada? Francisco Mota Saraiva não foge e explica: «Sei bem o que o Lobo Antunes diria sobre isso: “Toda a gente, hoje em dia, escreve como eu”, e aos escritores que amamos é preciso matá-los (“escrever contra”). Quanto a mim, vou matando, “escrevendo contra”, uns aqui e outros ali. Uma das coisas que mais me diverte nesta coisa de entrar no ofício de escritor é dizerem que sou parecido com este e com aquele, ou que não tenho nada deste e daquele. Os estereótipos são absolutamente necessários: os académicos, os críticos, os leitores precisam disso. Nós, cidadãos, infelizmente, precisamos disso para tudo na nossa vida. Porém, o que talvez não entendamos nesta coisa da escrita é que os aromas vêm todos de Homero - que nem sabemos ao certo quem foi, sequer se existiu – e que todos os escritores têm um pouco dele e, no nosso caso, portugueses, também de Camões. O resto, os outros vícios, vamos matando e “escrevendo contra” até que um dia os calemos e digam “sinto um aroma a Francisco Mota Saraiva”.» 

O que será preciso para que um escritor que se está a estrear não morra próximo do porto a que quer chegar neste cenário editorial em que vivemos? Para Francisco Mota Saraiva só há uma condição: «Nunca abdicar de escrever uma palavra. Diz-se que Deus só nos dá até onde podemos aguentar. Eu quero escrever para lá disso.» 

MORRAMOS AO MENOS NO PORTO

Francisco Mota Saraiva

Quetzal

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