Um policial detido pelo confinamento e libertado pelos leitores
Logo de início, o autor coloca um aviso em O Jogo da Alma a alertar que qualquer coincidência com casos reais não é propositada. Não será por acaso, pois segundo o autor, Javier Castillo, essa é uma situação frequente neste género literário: "Tanto com situações que já ocorreram, como com outras que virão a acontecer e aí parece que os personagens se inspiraram nesses factos." Garante por isso que nos seus livros tenta afastar-se ao máximo de casos conhecidos, mesmo que conceda que este segundo volume da trilogia que começou com A Menina de Neve deva o seu início a uma experiência própria, a de lhe entregarem ou deixarem nas sessões de autógrafos envelopes para si: "É frequente; cartas, prendas e coisas de que não percebemos o significado".
Foi dessa forma que encontrou a história para este livro: "Uma leitora deu-me um envelope cheio de fotos dela e nunca percebi qual era a intenção." Mas serviu como ponto de partida para este policial, que começa com uma polaroide que é deixada dentro de uma carta a uma jornalista que escreveu sobre um caso real e dessa imagem depreende-se que há mais uma vítima e assim começa a investigação para esclarecer um possível crime.
Castillo já vendeu mais de dois milhões de exemplares dos quatro policiais que publicou, foi traduzido em várias línguas, e a Netflix pretende adaptar a trilogia em curso, mas não era esse o destino do autor que trabalhava na área financeira até ter de se dedicar aos seus livros a tempo inteiro. Queria desde muito jovem ser escritor mas nunca achou possível viver dos livros, contudo o sucesso que teve ao colocar o seu primeiro romance, O dia em que perdemos a cabeça, numa plataforma online fez com que as editoras o disputassem.
Daí até ter largado o emprego e passado a dedicar-se a tempo inteiro à escrita foram poucas semanas. Resume essa época assim: "Desde criança que escrevo muito e que gostava de ler, mas escolhi Economia como curso porque achei que era uma melhor saída profissional. Continuei a escrever nos tempos livres e o sucesso do meu primeiro romance abriu a porta ao sonho de infância. Deixei o meu emprego para cumprir o meu sonho e tive de reorganizar toda a minha vida." Nunca acreditou que essa mudança na sua vida acontecesse: "Estava consciente de que escrevera uma coisa diferente mas duvidava que fosse tão apreciado. De repente tornou-se o livro mais vendido em Espanha e ao fim de um ano já tinha ultrapassado o milhão de exemplares."
Nem tudo foram rosas neste curto percurso, pois ao lançar A Menina de Neve, com uma gigante campanha de promoção, dois dias depois aconteceu o confinamento do Covid-19: "De um momento para o outro as livrarias fecharam as portas e achei que tinha tido o maior azar do mundo. Só que as pessoas, fechadas em casa, passaram a querer ler e este foi o livro virtual que a maioria escolheu. E quando as livrarias reabriram parcialmente, muitos mais correram a comprá-lo e transformou-se no livro mais vendido no período do confinamento."
O Jogo da Alma acabou por ser escrito durante o confinamento, apesar da dificuldade vivida por Javier Castillo: "Estar fechado em casa provocou-me um bloqueio total. O facto de estarmos todos presos impedia-me de escrever. Então, ocupei-me a planificar a trama, a escolher os cenários e a estruturar os personagens, até ser capaz de começar a escrever." Situou-o em Nova Iorque em vez de Espanha, como já tinha acontecido no seu primeiro livro: "O dia em que perdemos a cabeça era tão diferente que achei que não o poderia colocar em Espanha. Não era credível, enquanto nos Estados Unidos, onde tudo pode acontecer, resultava."
Em ambos os volumes desta trilogia, Castillo faz questão de criticar o que se passa no jornalismo atual: "Fico incomodado com a forma sensacionalista, obscena ou mórbida, como a comunicação social aborda as notícias. Foi por isso que criei a personagem de Miren Triggs, que dá respostas à degradação do jornalismo ao empenhar-se nas suas investigações. A crítica prolongou-se por O Jogo da Alma, onde se reflete sobre a morte dos jornais sérios e um domínio cada vez maior dos leitores que estão focados em passar a grande velocidade e sem questionarem as notícias nos ecrãs dos telemóveis."
Castillo tem esperança no renascimento do jornalismo: "Em algum momento, as pessoas irão querer conhecer a verdade em vez de ficarem pela rama e acredito que os jovens possam protagonizar essa mudança, até porque são cada vez mais leitores." Daí que recuse usar as tendências atuais: "Não quero escrever sobre o presente, por isso situo os meus romances no passado, quando a tecnologia não era tão importante mas sim as relações humanas. Uso uma polaroide como pista-chave para dar início à investigação em vez de uma imagem das redes sociais, os personagens ouvem cassetes, os telefones são fixos."
Quanto à investigação que faz para os policiais, Castillo diz que tenta encontrar a realidade perfeita num outro tempo: «São três meses a investigar, à procura de informações concretas sobre a época, como funciona uma redação, como falam os jornalistas entre eles, como o editor organiza o dia.»
No que respeita a escritores que aprecia, o destaque vai para Stieg Larsson. Não é por acaso, mas porque o sueco sustenta os seus livros no jornalismo; tal como o facto de ter uma personagem feminina muito forte, e um ritmo que também quer nos seus livros: "Poucos se converteram em mestres como Larsson." Há outros autores nórdicos de que também gosta, como Karin Fossum e Jo Nesbo, mas considera que existe uma diferença para com eles: "Eu centro-me mais nas emoções, tenho sangue latino. Isso não se vê nos nórdicos, que são mais frios. Os meus personagens acabam por chorar em algum momento." De Espanha, escolhe Vázquez Montalbán, Francisco González Ledesma e Dolores Redondo, mesmo que conclua: "Os nossos livros são muito distintos."
Qual a razão para que tantos leitores leiam Javier Castillo? O autor aponta uma: "O que me preocupa é a história. Uma das regras da minha narrativa é que cada capítulo transmita uma emoção principal e que o leitor se identifique. A emoção é o segredo, que cria nos leitores a sensação de estarem numa montanha-russa, e só respiram de alívio quando chegam ao fim."
Se em Espanha se podem apontar muitos nomes nesta área que vendem milhões de exemplares, em Portugal essa meta é muito difícil de se verificar. Javier Castillo não sabe a razão, mas diz: "Talvez o grande romance policial português esteja para surgir. Provavelmente, há alguém agora mesmo a escrever um livro que vai ser um sucesso." Acrescenta que o thriller tem uma componente que é universal: a curiosidade. Específica: "Num mundo em que tudo é instantâneo e tem muitas distrações, o thriller tem mais capacidade de absorver o leitor do que outros géneros literários. Há sempre uma pergunta que se converte num jogo em que o leitor tem de descobrir o que aconteceu, e isso empurra a leitura."
O JOGO DA ALMA
Javier Castillo
Suma de Letras
407 páginas
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Entre as cinzas dos incêndios que devastaram a Serra da Estrela surge um corpo a boiar numa piscina. Começa assim a saga que envolve o inspetor Vilar numa luta para encontrar duas respostas: o que aconteceu a esta mulher e porque é uma situação muito parecida com outra que aconteceu quatro décadas antes com a avó da vítima? O que se segue é um emaranhado de segredos que é preciso desvendar, mesmo que a tarefa seja complexa e que, como o título indicia, nem sempre seja fácil descobrir o que as famílias fazem questão de esconder. Principalmente, quando há muito evitam revelar um passado escabroso.
SEGREDOS DE FAMÍLIA
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