Nuno Duarte retrata em 'Pés de Barro' a construção da Ponte sobre o Tejo e dos trabalhadores que a fizeram numa obra a que a literatura nacional pouca importância deu até agora.
Nuno Duarte retrata em 'Pés de Barro' a construção da Ponte sobre o Tejo e dos trabalhadores que a fizeram numa obra a que a literatura nacional pouca importância deu até agora.D.R.-Arquivo Municipal de Lisboa

Um ovo de Colombo literário

  O Prémio Leya já chegou às livrarias e o autor, Nuno Duarte, venceu com uma obra bastante original, em que pratica uma recuperação da história e com preocupações sociais como é raro.
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O título que Nuno Duarte deu ao romance que foi selecionado entre centenas de originais a concurso pelo júri do Prémio Leya na edição de 2024 é Pés de Barro. Uma expressão que remata o romance mesmo na penúltima linha da narrativa e que só por si justifica a sua escrita. Não foi a primeira tentativa literária do escritor, pois já tem no computador alguns livros mais ou menos completos mas que nunca de lá saíram porque, considera, não terem a qualidade suficiente que deseja: “São parte do processo e prefiro olhar para eles como os exercícios que tive de fazer para conseguir escrever este.”

Quando enviou o original, Nuno Duarte não esperava ser o "eleito", bastando-lhe que alguém do grupo editorial o lesse, gostasse e tivesse interesse em publicá-lo. Admite que pode “ter esperado em ser um dos finalistas, no entanto achava-o muito difícil”. Daí que com o livro entregue aos leitores confesse: “Poucas vezes me terei enganado tanto na vida.” A nova fase de Pés de Barro é a de ser lido e o autor tem um único desejo: “Que os leitores sejam implacáveis com o livro. Exigentes, minuciosos, críticos, chatos, injustos até, mas implacáveis. Tenho aprendido que, quanto mais me apontam os defeitos, maior é a minha vontade de os corrigir. Quero ser melhor escritor.” Não deixa de referir uma situação, a de que “até agora, os leitores têm sido de uma generosidade sem limites”.

Não é, nem será, estranha esta reação a Pés de Barro pois o romance tem uma cadência muito boa, a construção é perfeita, sempre com a introdução de novos acrescentos à história principal, sendo que consegue sempre surpreender com o seu desenvolvimento. Até porque sendo o cenário do livro não tão distante assim de uma certa realidade nacional, dos anos 1960, esta vivência tem em muito sido ignorada por outros autores que, por norma, preferem pátios mais na moda do que o popular em que toda a ação deste decorre, permitindo essa reconstrução de um Portugal dos remediados que não tem tanto tempo assim de existência e dar-se a conhecer.  

A construção da Ponte sobre o Tejo foi o tema que escolheu e, mais uma vez, tem a particularidade de raramente outros autores lhe terem dedicado atenção, apesar do manancial de histórias que envolveu. Foram elas que fizeram o autor desenvolver esta narrativa em torno de uma presença que não passa despercebida desde que foi iniciada a sua construção. Justifica que a Ponte sobre o Tejo “sempre exerceu um enorme fascínio sobre mim, que a atravessava com a família a caminho das férias num velho Opel Kadett azul-escuro, que carregávamos antes das seis da manhã em Sintra”. No entanto, a ponte era o paralelo fundamental para as memórias que queria contar e que ouvia há muito da sua mulher: “A mãe dela nasceu e viveu num outro pátio lisboeta e ouvi muitas histórias sobre as pessoas que lá conheceu. Que eram, por si só, material literário e alguém tinha de fazer um livro sobre elas. Como eu necessitava de situar o meu pátio operário dos anos sessenta, por ser nessa época que as personagens e as suas vivências se tornavam reais, a construção da ponte foi uma feliz coincidência.”

Nuno Duarte considera que a ponte estava a exigir que alguém lhe contasse a sua história em ficção: “Contra todas as minhas expectativas, ainda ninguém o tinha feito. Na minha inocência de desejar escrever um romance, pensei que esse alguém poderia ser eu.” Ou seja, esta conjunção de memórias e desejos transformou-se num ovo de Colombo literário.

A profissão de Nuno Duarte é na área da Publicidade, de onde têm ido para a literatura vários criativos que se tornaram autores de renome. O autor sabe dessa situação e diz: “Parece-me muito mais fácil a um escritor escrever anúncios do que a um publicitário escrever livros. No entanto, creio que a necessidade e, de certa maneira, o engenho, serão os mesmos: contar histórias com princípio, meio e fim. A diferença fundamental é que na publicidade contamos as histórias que as marcas nos pagam para contar enquanto na literatura contamos as que queremos contar.”

O sucesso de Pés de Barro logo premiado com o Leya, ainda não criou em Nuno Duarte a expetativa de enveredar por uma carreira literária: “Sou publicitário, é essa a minha profissão. A literatura foi um atrevimento que correu bem, muito melhor do que estava à espera, mas também é aquilo que mais gosto de fazer e agora sei que consigo. Por isso, pretendo continuar a escrever, coisa que, aliás, faço todos os dias ou quase, mas, dizer que vou enveredar pela carreira literária, parece-me um atrevimento ainda maior do que ter enviado um original para o Prémio Leya.”

O romance está muito bem "costurado", daí que se deseja saber como obteve este resultado num primeiro romance? Nuno Duarte revela o que aconteceu: “Não o planeei, para além da cronologia a que estava obrigado. Contudo, deitei uma primeira versão quase terminada para o lixo porque estava cheia de problemas. Queria enfiar à força todos os dados que havia recolhido no livro e, às tantas, mais não era do que uma manta de retalhos, para pegar na metáfora da costura.” Não tendo desistido, continuou a escrevê-lo: “O que mais tarde permitiu olhar para todas essas páginas como matéria-prima para, então sim, escrever a versão final.”

Nuno Duarte venceu a edição de 2024 do Prémio Leya.
Nuno Duarte venceu a edição de 2024 do Prémio Leya.D.R.

O papel de cada personagem na história e o próprio tema do livro não surgiram logo ao início da escrita, tendo em muito contribuído para a versão final a escolha dos dois protagonistas, Victor e Dália. Que estruturou com a intenção que desejava para cada um deles: “O Victor, que é o protagonista, queria-o um jovem que fosse um retrato da época. Teria sido, porventura, mais tentador fazer dele um resistente, alguém com ideias definidas sobre o regime, mas a verdade é que esse não era o caso de uma grande parte da população. Ele não tem grande consciência política no início do livro, apenas daquilo que considera justo e injusto, é o seu percurso que o levará a essa consciência e, até, a uma intervenção política. Fiz dele um ex-prisioneiro em homenagem ao Tom Joad das Vinhas da Ira de Steinbeck. A Dália impôs-se depois, porque na primeira versão não passava de uma personagem secundária, habitante do Pátio do Cabrinha como todos os outros, só que ela começou a aparecer-me nas páginas com mais regularidade do que o esperado, com aqueles «hon» que tanto prazer me deram escrever e acabei por lhe dar um protagonismo e até, na minha opinião, o papel de heroína do livro. O ideal de beleza feminino naquele tempo era a Marilyn Monroe e a Romy Schneider e todas as outras atrizes muito louras e muito perfeitas e eu quis que a Dália fosse o oposto delas.”

Sendo Pés de Barro um retrato muito real dos anos 1960, o que pretendeu o autor deixar registado em termos de aspetos sociais e políticos nas trezentas páginas que escreveu? Responde: “O que eu queria, porque era fundamental para a história, era construir um cenário histórico que fosse credível para que, quando fosse lido por quem viveu aqueles anos não provocasse uma reação alérgica de inverosimilhança. Creio que o consegui, a julgar pelo que tenho ouvido.”

Estando o romance recheado de detalhes sobre aqueles anos, pergunta-se que pesquisa fez para se inteirar de um mundo que o autor não viveu por ainda não ter nascido. Explica o processo: “Li tudo aquilo a que consegui deitar a mão e que me fornecesse informação ou permitisse sentir aquele tempo. Desde logo livros de ficção, como o Seara de Vento do Manuel da Fonseca, por exemplo. Depois, na Biblioteca Nacional, os jornais da época, com a particularidade de o Diário de Lisboa estar disponível online, bem como no Arquivo da RTP, no Arquivo Municipal de Lisboa e no Centro de Estudos Olisiponenses, onde encontrei muita informação importante sobre o bairro de Alcântara, e também as pessoas com quem falei nessa junta de freguesia e me contaram pormenores importantes sobre a época.”

Nuno Duarte decidiu fazer um final inusitado. Sem se desvendar, questiona-se se era o único remate possível? Revela: “A partir de determinada altura, sim. Como comecei o livro sem estar todo planeado, houve muitas coisas que se foram impondo ao longo da história, surgindo organicamente, como foi o caso do final. Depois de o imaginar, nunca mais pude deixar de encaminhar o livro para ele, com um certo sadismo de quem vai tirar o tapete ao leitor.”

É impossível não referir que em Pés de Barro se sente um “aroma” a José Saramago e um paralelismo na história e personagens principais para com o Memorial do Convento. Será verdade? Nuno Duarte responde: “Não é a primeira vez que fazem essa comparação, que muito me honra, mas confesso que não foi a minha intenção. Como são dois livros sobre obras simbólicas do regime, ainda que separadas por séculos, talvez não haja como fugir a ela. A Dália, por exemplo, que já vi comparada a Blimunda, era uma personagem secundária na primeira versão, pelo que nunca a imaginei assim. E o Victor Tirapicos, como já referi, é muito mais Tom Joad do que Baltasar Sete-Sóis”.

PÉS DE BARRO

Nuno Duarte

Leya

310 páginas

Outras novidades literárias

 DIÁRIO IRREVERENTE

 A Quetzal reuniu num único volume os três primeiros do diário do escritor Vergílio Ferreira, o Conta-Corrente, que percorre os anos entre 1969 e 1981. Sendo pouco habitual a prática diarística em Portugal, o escritor destaca-se neste género como um dos mais importantes e sem receio de expor as suas ideias e opiniões de uma maneira muito frontal. Um registo que permite ter um outro olhar sobre aqueles anos e entender a visão, muitas vezes não feliz, do mundo literário e social em que vivia e do qual se sentia em muito desfasado. Existem entradas para todos os gostos: um início em que confessa o poder da passagem dos anos, um final em que regressa ao balanço sobre o tempo que não interrompe a sua corrida, e um meio com mais de mil e quinhentas páginas sobre o que o rodeia e vivencia, aqui sem peias e opinando de forma radical. Um exemplo que deveria ser seguido por outros autores com dom para a escrita!

CONTA-CORRENTE

Vergílio Ferreira

Quetzal

1168 páginas

BIOGRAFIA EXCECIONAL

O autor é um jornalista há muito dedicado à ciência e ao ambiente e o modo como elabora esta biografia da cientista Elvira Fortunato vem confirmar o seu poder de contar histórias entrelaçando-as com factos. De destacar o processo de escrita de Virgílio Azevedo, que foge à simplicidade da pergunta e resposta, digerindo o amplo conhecimento que tem da biografada e dos assuntos profissionais que era obrigatório trazer a este livro, com o subtítulo “Uma vida de paixão pela ciência”. Os temas dão a volta ao mundo e ambos conseguem sair destas duzentas páginas com o retrato da ciência a que se propuseram, a que acrescem muitos detalhes da pessoa que deste modo configura a cientista sob um olhar muito mais abrangente e desmistificador.

ELVIRA FORTUNATO

Virgílio Azevedo

Bertrand

199 páginas

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