Um festival que cuida da nossa memória
Contas redondas, o Festival de Cannes passou a atrair à Côte d’Azur mais de quatro mil jornalistas dos meios de comunicação de todo o planeta. Paralelamente, o Mercado do Filme, a grande “feira do cinema” onde se negoceiam as formas de produção e distribuição que vão determinar, no mínimo, a circulação dos filmes ao longo do próximo ano, deverá voltar a contar este ano com mais de doze mil inscritos.
Poderíamos prolongar esta contabilidade com números mais ou menos espectaculares. Em todo o caso, vale a pena perguntar em que zona da programação temos observado um maior crescimento quantitativo. Pois bem, a resposta não é, de modo algum, a secção competitiva que se mantém no domínio do razoável para um evento que dura 12 dias, com cerca de duas dezenas de títulos (este ano 22) a concorrer para a Palma de Ouro. É no espaço dos clássicos que encontramos uma oferta cada vez mais significativa - a partir de hoje, com a apresentação da cópia restaurada de Napoleão (1927), de Abel Gance, serão mais de três dezenas de filmes.
Em finais do século passado, Cannes Classics era um nicho cuja importância simbólica se afirmava através da (re)descoberta de alguns títulos, clássicos justamente, que de uma maneira ou de outra tinham marcado a história do cinema de forma indelével. O conceito mantém-se, mas a oferta aumentou de modo exponencial, cruzando dois fatores determinantes: primeiro, a consciência histórica e prática da necessidade, por vezes da urgência, de cuidar da nossa memória cinéfila através da preservação dos filmes “antigos”; depois, o facto de esses filmes, para lá dos circuitos tradicionais das cinematecas, terem recuperado algum valor comercial, quer porque as salas têm sabido revalorizá-los, quer através da procura crescente das plataformas de streaming.
Assim, este ano, quase sempre na Sala Buñuel (o espaço do Palácio dos Festivais que se “especializou” nos clássicos), vai ser possível ver ou rever títulos como Bye Bye Brazil (1978), de Carlos Diegues, dir-se-ia o filme que encerra as convulsões criativas do Cinema Novo brasileiro, O Exército das Sombras (1969), de Jean-Pierre Melville, um dos retratos mais depurados, e também mais fascinantes, da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial, ou Os Sete Samurais (1954), objeto central na filmografia de Akira Kurosawa, decisivo na difusão internacional da produção japonesa. Isto sem esquecer a apresentação de alguns novos documentários que são outros tantos complementos no conhecimento de obras e personalidades que influenciaram os mais diversos aspectos da história dos filmes - este ano será possível descobrir trabalhos documentais sobre atrizes como Elizabeth Taylor e Faye Dunaway, o compositor Michel Legrand, ou ainda Jim Henson, personalidade central no universo televisivo e cinematográfico dos Marretas.
Três efemérides
Entre as efemérides com datas “redondas”, deparamos com o restauro de três filmes que definem momentos emblemáticos de invenção artística associada à vocação popular do cinema. São eles Os Chapéus de Chuva de Cherburgo (1964), de Jacques Demy, The Sugarland Express/Asfalto Quente (1974), de Steven Spielberg, e Paris, Texas (1984), de Wim Wenders. Além de comemorarem, respetivamente, 60, 50 e 40 anos de existência, todos eles estiveram em Cannes: o primeiro e o terceiro foram mesmo distinguidos com a Palma de Ouro; o filme de Spielberg recebeu o prémio de argumento.
Escusado será sublinhar a importância dos filmes de Demy, único título da Nova Vaga que ganhou uma Palma, e Spielberg, primeira longa-metragem para cinema de um autor que transfigurou a paisagem industrial. Seja como for, não será exagero considerar que Paris, Texas desempenhou o papel suplementar de bandeira de uma ideia independente de cinema em que a sensibilidade europeia se cruza com um património narrativo “made in USA” - desde então, para mais do que uma geração de espectadores, Wenders manteve-se como figura modelar dessa independência.
Em Cannes