Uma das mais admiráveis produções audiovisuais de 2024 foi a minissérie Ripley que Steve Zaillian escreveu e realizou para a Netflix, adaptando o romance O Talentoso Mr. Ripley, de Patricia Highsmith. É caso para perguntar: minissérie? Na verdade, numa entrevista sobre Ripley, Zaillian (argumentista “oscarizado” por A Lista de Schindler, de Steven Spielberg) caracterizou o seu trabalho de forma diferente - para ele, tratou-se, não de fazer oito episódios de uma hora, mas um filme de oito horas...Irónica ou não, esta perspetiva é reveladora de um contexto de crescente diluição das fronteiras tradicionais de produção e difusão - no limite mais lamentável, Juror #2, de Clint Eastwood, nem sequer teve direito a distribuição nas salas. Aliás, uma das perguntas que fica como lastro deste ano de muitos contrastes renova a perplexidade com que, da indústria ao jornalismo, nos confrontamos. A saber: quem são, onde estão, que sabem ou não sabem os espectadores de cinema destes tempos digitais? Ou ainda: as salas vão desaparecer como efeito da indiferença humana e da ignorância cinéfila de muitas formas contemporâneas de marketing, ou apenas por causa da nossa preguiça de consumidores?São interrogações regularmente lançadas por exemplos tão crus quanto desconcertantes. Nada a ver, entenda-se, com o facto de o filme A, B ou C ser “melhor” para uns e “pior” para outros. O certo é que prevalece a ideia (ou a falta de ideias) segundo a qual as sequelas, continuações ou derivações dos grandes sucessos são a chave redentora do mercado... Serão mesmo?Observe-se o caso, no mínimo, intrigante de Joker: Loucura a Dois, com Joaquin Phoenix de novo dirigido por Todd Phillips, agora na companhia de Lady Gaga. Antecipava-se como “o” sucesso de 2024, mas ficou dramaticamente distante do impacto do primeiro Joker, lançado cinco anos antes. Em Portugal, um dos territórios em que, proporcionalmente, conseguiu uma melhor performance, teve 211 mil espectadores, valor inferior a uma quarta parte dos números obtidos pelo original (895 mil) - para onde foram 600 mil espectadores? Globalmente, o mesmo original tinha ultrapassado a barreira dos mil milhões de dólares de receitas - a sequela acumulou menos de uma quinta parte (pouco mais de 200 milhões, precisamente o custo estimado da respetiva produção).Seja como for, importa não deitar fora os filmes com a água do cinema. Importa, sobretudo, recordar que os muitos desequilíbrios do mercado não devem afastar-nos do valor essencial da diversidade que, apesar de tudo, marcou a distribuição/exibição de 2024. .Sublinhe-se o empenho e a persistência dos chamados independentes, não desistindo de lançar títulos “difíceis” como Um Casal, com o documentarista Frederick Wiseman a regressar à ficção, No Interior do Casulo Amarelo, de Thien An Pham, distinguido em Cannes/2023 como melhor primeira obra (Câmara de Ouro), Tudo o que Imaginamos como Luz, com que Payal Kapadia continua a discutir as fronteiras ficção/documentário, e ainda O Amor Segundo Dalva, de Emmanuelle Nicot - além do mais, este último, encenando o drama de uma criança abusada pelo pai, mostrou que é possível tratar com infinita delicadeza os temas mais perturbantes sem ceder às histerias panfletárias do politicamente correto; o mesmo se poderá dizer, aliás, de O Quarto ao Lado, de Pedro Almodóvar, com a sua austera reflexão sobre a proximidade da morte.Neste mundo assombrado por “famosos” de coisa nenhuma, os atores e atrizes continuam a ser um elo nuclear da nossa relação com o ecrã. A retrospetiva de filmes de Ingmar Bergman ajudou-nos a revalorizar essa herança preciosa, incluindo alguns títulos que tinham permanecido inéditos nas salas comerciais, como é o caso do belíssimo Depois de Ensaio (1984). Sem esquecer que houve estreias cujas singularidades temáticas e afetivas não podem ser separadas de algumas prodigiosas interpretações. Exemplos? Babygirl e Memória, respetivamente com Nicole Kidman e Jessica Chastain..Coppola e Zemeckis.Para a história, podemos arriscar que, no plano simbólico, 2024 ficará como o ano de Megalopolis, de Francis Ford Coppola. Foi um dos títulos ignorados pelo júri do Festival de Cannes, presidido por Greta Gerwig, a par de The Shrouds, de David Cronenberg (que permanece inédito em Portugal). Tivemos, aliás, duas rimas sugestivas com as reposições, em cópias restauradas, de Do Fundo do Coração (1981), também de Coppola, e As Virgens Suicidas (1999), primeira realização da sua filha Sofia Coppola.Se há filmes que ainda conseguem produzir um efeito fraturante (adjetivo que o ruído político banalizou...), Megalopolis é, seguramente, um desses filmes. O que significa duas coisas: primeiro, que há nele um poder revelador daquilo que cada um de nós é, ou imagina ser, enquanto espectador; depois, que estamos perante um cineasta que não desistiu de questionar o seu trabalho e, nessa medida, a própria identidade artística do cinema. Semelhante postura está também presente no magnífico Here/Aqui, de Robert Zemeckis, fragmentando o ecrã como “algo” que é, de uma só vez, uma janela realista para o mundo e um retângulo de composição cuja existência se aproxima do que vemos no nosso computador.Cinema experimental? Sem dúvida - afinal de contas, ainda que rotulados de cineastas do grande espetáculo (com toda a justeza, entenda-se), Coppola e Zemeckis sempre foram autores de paciente ousadia. Comentando as reações negativas ao seu Megalopolis, Coppola lembrava apenas, com suave contundência, que em 1979 lançou um filmezinho que despertou o mesmo tipo de resistências... Já agora, lembremos o seu título: Apocalypse Now.